Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo n.º 164.264-0/1-00

Autor: Prefeito Municipal de Catanduva

Objeto de impugnação: Lei n.º 0439, de 28 de abril de 2008, do Município de Catanduva.

 

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

 

 

 

 

 

                   Cuida-se de ação proposta pelo Prefeito Municipal de Catanduva na qual se questiona a validade jurídico-constitucional da Lei n.º 0439, de 28 de abril de 2008, do Município de Catanduva, de iniciativa parlamentar, em face dos arts. 5 e  144,  da Constituição do Estado de São Paulo.  Ao despachar a inicial, o Excelentíssimo Desembargador Relator suspendeu liminarmente, com efeito ‘ex nunc’, a vigência e a eficácia da lei em epígrafe, até o final julgamento desta ação (fls.29/34).  Notificada, a Câmara de Itapetininga prestou informações nos termos regimentais (fls.41/44), defendendo a sua competência legislativa plena para disciplinar os assuntos de interesse local (CF., art. 30, I), alegando que o móvel da edição da norma está em sintonia com as disposições legais. Por tais razões não ocorreu a violação da regra da iniciativa reservada e do princípio da independência harmônica entre os poderes. O Procurador-Geral do Estado foi citado, e deixou de defender o ato impugnado, afirmando que o seu conteúdo é de interesse local, fls. 107/109.  

 

                                 Em resumo, é o que consta nos autos.

 

                                   A presente ação deve ser julgada procedente.

 

                   A  Lei Complementar n. 0439, de 28 de abril de 2008, que “Dá nova Redação aos arts. 2º , 7º  e acrescenta §1º , parágrafo único do art. 8º , da Lei Complementar n. 0191, de 21 de março de 2007”, apresenta a seguinte redação:

                   Art. 1º - Os  artigos 2º e 7º , acrescenta-lhe parágrafo primeiro e o parágrafo único do art. 8º , da Lei Complementar n. 0191, de 21 de março de 2002, que ‘ disciplina a instalação de torres de transmissão de telefonia celular no Município de Catanduva e dá outras providências’, passam a ter a seguinte redação:

 

                   Art. 2º - A instalação e operação de antenas somente será permitida fora do perímetro urbano, observando-se a distância mínima de 6 (seis) metros, medida em projeção horizontal do lóbulo principal e as divisas do imóvel, devendo também serem observadas, concomitantemente, as distâncias de 3 (três) metros da base da torre com a lateral e fundos do imóvel e 5 (cinco) metros com a frente do mesmo, e às normas técnicas previstas pela internacional Nom-lonizing – ICNIRP.

 

                   Art. 7º - Os pedidos de instalação de antenas transmissoras serão avaliados inicialmente pela Secretaria Municipal de Obras, Serviços e Meio Ambiente da Prefeitura Municipal de Catanduva, quanto ao zoneamento, aspecto urbanístico e construtivo, exigindo-se as aprovações do projeto de implantação da mesma, sendo encaminhados, a Secretaria Municipal de Saúde para análise e deliberação, apresentando ainda os seguintes documentos:

                   I- Anotação de Responsabilidade Técnica- ART e Estudo de Viabilidade Urbanística – EVU;

                   II- Norma de segurança para o operador do equipamento, determinando o máximo de exposição para cada freqüência de transmissão.

                   §1º - A instalação e funcionamento dos equipamentos previstos no “caput”, deste Artigo, deverão obedecer ao disposto em normas técnicas da Internacional Nom- Ionizing Radiation ICNIRP.

                  

                   Art. 8º ....

                   Parágrafo Único – A falta de atendimento do disposto nesta Lei Complementar pelas empresas concessionárias de telefonia celular será punido com:

                   I- notificação na primeira ocorrência;

                   II- multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) na segunda ocorrência;

                   III- o dobro do valor do inciso anterior, no caso de reincidência, e,

                   IV- suspensão do funcionamento do equipamento até adequação do mesmo a presente Lei Complementar.

                   Art. 2º- Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”. 

                   O regime jurídico dos serviços e servidores públicos deve sempre ser regulado por lei cuja iniciativa é reservada ao Poder Executivo, que tem a incumbência de planejar, organizar, dirigir e executar os serviços públicos municipais.

 

                   A norma impugnada, de iniciativa parlamentar, todavia, delineou conduta concreta afeta só à Administração, vale dizer, tratou de regras de relacionamento do Poder Público Municipal e empresas prestadoras de serviços públicos de interesse coletivo, cuja legitimidade só é afeta ao Poder Executivo, até porque vislumbra-se a modalidade da tarifa como forma de remuneração pelos usos dos espaços mencionados na  aludida norma. As imposições à Administração constantes da lei inquinada, cuja origem propositva foi do parlamento, traduzem irremediável ofensa aos princípios da harmonia e independência entre os poderes, exigindo sua retirado do mundo jurídico pela via eleita pelo requerente.

 

                   O ordenamento jurídico brasileiro, como se sabe, dispõe que o governo municipal é de funções divididas. As funções administrativas foram conferidas ao Prefeito, enquanto que as funções legislativas são de competência da Câmara. Administrar significa aplicar a lei ao caso concreto. Assim, no exercício de suas funções, o Prefeito é obrigado a observar as normas gerais e abstratas editadas pela Câmara, em atenção ao princípio da legalidade, a que está pautada toda atuação administrativa, na forma do art. 111 da Carta Paulista.

 

                   Esse mecanismo de repartição de funções, incorporado ao nosso ordenamento constitucional, e que teve como principal idealizador o filósofo Montesquieu, impede a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo[1]. Daí ser vedado à Câmara interferir na prática de atos que são de competência privativa do Prefeito, assim como a recíproca é verdadeira. 

 

                   Tamanho significado apresenta esse sistema de separação das funções estatais, em nosso ordenamento jurídico, que a própria Constituição, no seu art. 60, § 4.º, inciso III, cuidou de incorporá-lo ao seu núcleo intangível, ao dispor expressamente que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a aboli-lo. 

 

                   Vistos esses aspectos, tem-se no caso sob exame que a Câmara de  Vereadores de Catanduva aprovou a Lei n.º 0439/08, derivada de projeto de iniciativa parlamentar, impondo obrigações ao Executivo com nítida  vocação Administrativa típica, o que não pode ser admitido.

 

                   Essa lei, destarte, malgrado os elevados propósitos que nortearam a sua edição, não reúne a mínima condição de subsistir na ordem jurídica vigente, uma vez que, a pretexto de disciplinar assunto de interesse local, a Câmara Municipal de Catanduva acabou por interferir na esfera de competência do Executivo, acarretando, tal iniciativa, o desequilíbrio no delicado sistema de relacionamento entre os poderes municipais.

                                              

                   Com efeito, é irrecusável a competência da Câmara para legislar sobre os assuntos de interesse local, inclusive daqueles que digam respeito à ao desenvolvimento do senso de cidadania, exercício de direitos, etc., mas há alguns limites que devem ser observados, e que decorrem, basicamente, da necessidade de preservar-se a convivência pacífica dos poderes políticos, entre os quais não existe nenhuma relação de hierarquia e subordinação, mas sim de independência e harmonia, em face do contido no art. 5.º da Constituição do Estado de São Paulo.

 

                   Como já visto inicialmente, a administração municipal incumbe ao Prefeito, que é quem define as prioridades da sua gestão, as políticas públicas a serem implementadas e os serviços públicos que serão prestados à população, bem assim o regime jurídico dos servidores. Nessa seara, a Câmara não tem como impor suas preferências, podendo quando muito formular indicações, mas não sujeitar aquela autoridade ao cumprimento de lei que, longe de fixar uma regra geral e abstrata, constitui verdadeira ordem ou comando, para que se faça algo.

                    

                   Logo, se a iniciativa em exame for considerada válida – o que corresponde, na prática, a uma tentativa de restabelecer-se o sistema que vigorava ao tempo das Comunas -, ocorrerá uma hipertrofia do Legislativo, que sempre poderá impor suas vontades ao Executivo, por meio da edição de leis[2], criando uma verdadeira relação de subordinação e hierarquia entre os poderes, incompatível com o sistema adotado pela Constituição em vigor, o qual se baseia na independência e harmonia entre os poderes, cuja observância é vital para a preservação do Estado de Direito.

 

                   Advém, daí, a necessidade de saber se a Câmara dispõe de ampla liberdade para editar leis meramente autorizativas ou se há algum limite a essa prerrogativa, máxime nos casos em que a autorização é dada para a prática de ato que se insere na esfera de competência de outro Poder.

 

                   Na ordem constitucional vigente, como anotado em tópico precedente, não existe a mínima possibilidade de a administração municipal ser exercida pela Câmara, por intermédio da edição de leis. Em relação a esse aspecto, aliás, não paira nenhuma controvérsia, uma vez que a atual Constituição é suficientemente clara ao atribuir ao Prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da administração municipal (CE., art. 47, inciso II) e a praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (CE., art. 47, inciso XIV).

 

                   Bem por isso, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que: “Sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial.” (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).       Nesse contexto, a aprovação de lei, pela Câmara, que cria uma coordenadoria administrativa para autorizar  o Executivo a implantar  Programas para  Jovens só pode ser interpretada como atentatória ao postulado básico da independência e harmonia entre os poderes (CE., art. 5.º, caput), visto que a Constituição em vigor não exige nenhuma autorização especial para a prática de ato que se insere na órbita de competência tipicamente administrativa.  

 

                   Em suma, a Câmara Municipal de Catanduva não pode arrogar a si a competência para autorizar a prática de atos concretos de administração ou obrigar o Poder Executivo a realizar tarefas não previstas como de obrigação legal ou fazê-las de formas diversas daquelas já previstas na Constituição Federal ou do Estado.

 

                   O Prefeito, enquanto chefe do Poder Executivo, exerce tarefas específicas à atividade de administrador, tendente à atuação concreta, referentes ao “planejamento, organização e direção de serviços e obras da municipalidade. Para tanto, dispõe de poderes correspondentes de comando, de coordenação e de controle de todos os empreendimentos da Prefeitura ... A execução das obras e serviços públicos municipais está sujeita, portanto, em toda a sua plenitude, à direção do Prefeito, sem interferência da Câmara, tanto no que se refere às atividades internas das repartições da Prefeitura (serviços burocráticos ou técnicos), quanto às atividades externas (obras e serviços públicos) que o Município realiza e põe à disposição da coletividade” (Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, RT, 3ª ed., pp. 870/873). Em idêntica lição, José Afonso da Silva, “O Prefeito e o Município”, Fundação Pref. Faria Lima, 1977, pp. 134/143.

 

                   Por outro lado, disciplinando atividade abstrata e genérica, a Câmara Municipal “não administra o Município, estabelece, apenas, normas de administração” (Hely Lopes Meirelles, ob. cit., p. 444).

 

                   Assim o Município, ao lado de sua autonomia política e financeira, tem, igualmente, liberdade para organizar assuntos de seu peculiar interesse, tais como a estruturação do serviço público, que é atividade reservada do chefe do Poder Executivo. Na lição de Hely Lopes Meirelles, esta exclusividade é destinada aos temas que disponham sobre “a criação, estruturação e atribuição das secretarias, órgãos e entidades da administração pública municipal; a criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, fixação e aumento de sua remuneração; o regime jurídico dos servidores municipais; e o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias, os orçamentos anuais, créditos suplementares e especiais” (ob. cit., p. 530).

                   E sobre o tema  em foco destaca-se trecho do Acórdão da lavra do Eminente Desembargador DENSER DE SÁ,  Segundo a doutrina a administração da cidade é da competência do Prefeito, tendo o Poder Legislativo a função de aprovar ou desaprovar os atos do Alcaide, funcionando como fiscal do governo. (...) Não é dado aos vereadores resolver todos os assuntos por meio de lei. A Câmara Municipal somente pode estabelecer programas gerais, com base na Constituição se não criar atribuições para órgãos públicos ou determinar seu modo de execução, incumbências do Prefeito Municipal” (Oesp – Adin n. 104.747-0/7, DJ de 10.03.04).

        

                   Como se vê,  referido dispositivo   -- de lei de iniciativa de vereador --   desrespeitou os artigos  5.º, 47,II,   111   e  144 da Constituição do Estado.  De fato, assim dispõem  as referidas normas constitucionais:

 

 

                                         Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

                                         Art. 47 – Compete Privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

                                         II- exercer, com auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual.

   

 

                                         Art. 111 - A administração pública direta, indireta ou funcional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação e interesse público.

                     

                                         Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.”

                                     

                   Em face do exposto, aguardo o julgamento de procedência desta ação direta - confirmando, assim, a liminar inicialmente deferida – a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei n.º 0439, de 28 de abril de 2008, do Município de Catanduva, por afronta aos arts. 5.º,  47,II, 111 e 144 da Constituição Paulista.

 

 

São Paulo, 19 de agosto de 2008.

 

 

MAURÍCIO AGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça



[1] Em sua magistral obra “Esprit des lois”, Montesquieu formulou a seguinte advertência: “tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executá-las e o de julgar.”

[2] R. Carré de Malberg distingue Estado legal e Estado de Direito: “El Estado de derecho se establece simple y únicamente en interés y para la salvaguardia de los ciudadanos; sólo tiende a asegurar la protección de su derecho o de su estatuto individual. El régimen del Estado legal está orientado en otra dirección. Se relaciona con un concepto político referente a la organización fundamental de los poderes, concepto según el cual debe la autoridad administrativa, en todos los casos y respecto a todas las materias, subordinarse al órgano legislativo, en el sentido de que no podrá actuar sino en ejecución o por autorización de una ley. Esta subordinación no se reduce desde luego a aquellos actos de administración que producen efectos de orden individual respecto a los administrados, sino que se extiende, en principio, a todas las medidas de administración, hasta aquellas – reglamentarias o particulares – que, sin tocar al derecho de los administrados, conciernen únicamente al funcionamiento interno de los servicios administrativos y sólo deben dejar sentir sus efectos en el interior del organismo administrativo.” (Teoría General del Estado, Traducción de José Lión Depetre, Facultad de Derecho/UNAM e Fondo de Cultura Económica, México, 2001, p. 451)