Processo ADIN n.º 164.265-0/6-00

Requerente: Prefeito Municipal de Catanduva

Objeto de impugnação: Lei  Municipal nº 0440, de 28 de abril de 2008, do Município de Catanduva

 

 

                          

 

                                  Colendo Órgão Especial

 Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator:

 

 

 

 

                                     Cuida-se de ação proposta pelo Prefeito Municipal de Catanduva, na qual se questiona a validade jurídico-constitucional da Lei Complementar n.º 0440, de 28 de abril de 2008, daquele Município[1], em face dos arts. 5.º e 144,  da Constituição do Estado de São Paulo.

 

                                  Narra  a  inicial que   o   veto   aposto   pelo    Prefeito Municipal de Catanduva ao projeto foi rejeitado, e a lei, de iniciativa parlamentar, foi promulgada pelo Presidente da Câmara. A edição da lei, assim, seria inconstitucional porque viola a independência e a harmonia entre os poderes (art. 5º, da Constituição Estadual).

 

                          Ao     despachar     a      inicial,    o       Excelentíssimo Desembargador Relator suspendeu liminarmente, com efeito ‘ex nunc’, a vigência e a eficácia da lei em epígrafe, até o final julgamento desta ação (fls. 18).

 

                           Notificada,  a  Câmara  Municipal  de  Catanduva prestou informações nos termos regimentais, sustentando a legalidade do ato normativo impugnado, (fls. 23/25).

 

                                      Citado o Procurador Geral do Estado para os fins do § 2.º do art. 90 da Constituição Paulista,  manifestou-se à fls. 44/45 e pronunciou-se pela ausência de interesse jurídico concreto na defesa do ato impugnado, pelo nítido contorno local da questão objetada.

 

                                     Em resumo, é o que consta nos autos.

 

                                      A despeito dos argumentos em defesa da lei ora impugnada, tem-se que a presente ação deverá ser julgada procedente.

 

                                      No Brasil, como se sabe, o governo municipal é de funções divididas. As funções administrativas foram conferidas ao Prefeito, enquanto que as funções legislativas são de competência da Câmara. Administrar significa aplicar a lei ao caso concreto. Assim, no exercício de suas funções, o Prefeito é obrigado a observar as normas gerais e abstratas editadas pela Câmara, em atenção ao princípio da legalidade, a que está pautada toda atuação administrativa, na forma do art. 111, da Carta Paulista.

 

                                      Esse mecanismo de repartição de funções, incorporado ao nosso ordenamento constitucional, e que teve como principal idealizador o filósofo Montesquieu, impede a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo[2]. Daí ser vedado à Câmara interferir na prática de atos que são de competência privativa do Prefeito, assim como a recíproca é verdadeira. 

 

 

                                      Tamanho significado apresenta esse sistema de separação das funções estatais, em nosso ordenamento jurídico, que a própria Constituição, no seu art. 60, § 4.º, inciso III, cuidou de incorporá-lo ao seu núcleo intangível, ao dispor expressamente que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a aboli-lo.

 

                                     Vistos esses aspectos, tem-se no caso sob exame que a Câmara de  Vereadores do Município de Catanduva, mais uma vez, aprovou a Lei n.º 0440/08, derivada de projeto de iniciativa parlamentar, que na verdade alterou a destinação (vocação) urbanística de um trecho de uma via pública, atitude  afeta ao Poder Executivo.

 

                                      Essa lei, porém,  não reúne a mínima condição de subsistir na ordem jurídica vigente, uma vez que, a pretexto de disciplinar assunto de interesse local, a Câmara Municipal de Catanduva acabou por interferir na esfera de competência exclusiva da Administração, acarretando, tal iniciativa, o desequilíbrio no delicado sistema de relacionamento entre os poderes municipais.

 

                                       O art. 181, da Constituição Estadual determina que “Lei municipal estabelecerá, em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes”.

 

                                     Como se vê, a edição de Lei como a impugnada, se de iniciativa do executivo e de acordo com o plano diretor é permitida ao Município: é que a edição do plano diretor compete privativamente ao Município, não no exercício da competência  para  legislar  sobre  direito  urbanístico  ou  ambiental,  mas  para   promover ordenamento territorial, no sentido de estabelecer limitações ao direito de propriedade por meio de índices urbanísticos (cf. Victor Carvalho Pinto, “Regime Jurídico do Plano Diretor”, em Temas de Direito Urbanístico, III, São Paulo, Ministério Público/Imprensa Oficial, 2001, p. 421).

 

                                     Eventuais modificações das vocações  de parcelas territoriais em loteamentos já aprovados e registrados, é, evidentemente,  matéria sujeita a prévio planejamento,  estudos, consultas à população  diretamente atingida pelas modificações, como adquirentes de lotes (art. 28, da Lei Federal n. 6.766/79).

 

                                      Quanto à exigência de planejamento relativo ao ordenamento e ocupação do solo, decidiu essa Egrégia Corte, em magnífico Acórdão da lavra do Des. Dante Busana abaixo transcrito, que embora colacionado na inicial essencial sua repetição, vez que à ele quase nada pode ser acrescido sobre o tema:

 

“A Constituição do Estado, com efeito, em consonância com a Carta Magna, contempla a obrigatoriedade do planejamento em matéria urbanística, que hoje se apresenta institucionalizada, através de expressa previsão constitucional. É nesse sentido a lição de José Afonso de Silva, realçando que, atualmente, “o processo de planejamento passou a ser um mecanismo por meio do qual o administrador deverá executar sua atividade governamental, na busca da realização das mudanças necessárias à consecução do desenvolvimento econômico-social”. E mais adiante, conclui o renomado autor: “O planejamento, assim, não é mais um processo dependente da mera vontade dos governantes. É uma previsão constitucional e uma provisão legal. Tornou-se imposição jurídica, mediante a obrigação de elaborar planos, que são os instrumentos consubstanciados do respectivo processo” (ob. cit., pág. 86). Nesse assunto, a Constituição Federal, em diversas passagens, alude ao dever de planejar, em geral e em matéria urbanística especialmente, ao se referir à competência para elaborar planos de ordenação do território (artigo 21, inciso IX), plano de desenvolvimento equilibrado da atividade econômica (artigo 174, § 1º) e os planos definidores da política de desenvolvimento urbano (artigo 182). Interessa sobremodo, em Direito Urbanístico, a letra do artigo 30, inciso VIII, da Lei Maior, segundo a qual compete aos Municípios “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”. A Constituição do Estado também contém expressa previsão dessa obrigatoriedade, ao se referir, já no caput de seu artigo 180, ao “estabelecimento de diretrizes” relativas ao desenvolvimento urbano pelo Estado e Municípios. No inciso II desse mesmo artigo, agora de maneira enfática, exige “a participação das respectivas entidades comunitárias no estudo, encaminhamento e solução dos problemas, planos, programas e projetos” concernentes ao desenvolvimento urbano. (...) Daí, por sinal, a pertinente observação de José Afonso da Silva, baseada na experiência alemã relatada por Joseff Wolff, no sentido de que o planejamento é “o princípio de toda atividade urbanística, pois quem impulsiona e exerce essa ação de ordenação precisa ter consciência do que quer alcançar com tal influxo. Deve ter uma idéia clara do que seja desejável para o lugar ou território em questão, mas também do que razoavelmente pode lograr com os meios de que dispõe” (ob. cit., pág. 32) (ADIn 66.667-0/6, Rel. Des. Dante Busana, j. em 12 de setembro de 2001)”.

 

                                               Reportando-se à noção de planejamento, Hely Lopes Meirelles conclui “que a elaboração de Plano Diretor é tarefa de especialistas nos diversos setores de sua abrangência, devendo por isso mesmo ser confiada a órgão técnico da Prefeitura ou contratada com profissionais de notória especialização na matéria, sempre sob supervisão do Prefeito” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, RT, 1985, p. 397). Por este mesmo motivo, José Afonso da Silva sustenta que a elaboração do Plano Diretor é da competência do Executivo Municipal, por intermédio dos órgãos de planejamento da Prefeitura, e que a iniciativa da lei respectiva é do Prefeito, sob cuja orientação se prepara o plano (Direito Urbanístico Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 1997, pp. 138-140).  As mesmas exigências devem ser observadas nas leis modificadoras de planos diretores, ou de qualquer ingerência ou modificações das vocações estabelecidas no próprio Plano Diretor ou nos decretos que aprovam os projetos de loteamentos e demais espécies de  parcelamento e ocupação do solo urbano. Isso não ocorreu  no processo legislativo que redundou na Lei Complementar n. 0440/08, do Município de Catanduva.

 

                                     Essa Egrégia Corte já decidiu que se a Constituição Estadual impôs “o estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano” (artigo 180, caput), a elaboração de “planos, programas e projetos” em matéria urbanística (artigo 180, inciso II), bem como a subordinação da legislação municipal respectiva às diretrizes  do plano diretor (...), como conseqüência  a de que só ao Poder Executivo cabe a iniciativa do processo legislativo, sempre que a matéria reservada à lei seja de tal natureza que reclame a feitura de planos prévios (ADIn 66.667-0/6, Rel. Des. Dante Busana, j. em 12 de setembro de 2001).

                          

                                      Com efeito, é inegável a competência das Câmaras Municipais  para legislar sobre os assuntos de interesse local, mas há alguns limites que devem necessariamente ser observados, e que decorrem da imperiosidade de preservar-se a convivência pacífica dos poderes políticos, entre os quais não existe nenhuma relação de hierarquia e subordinação, mas sim de independência e harmonia, em face do contido no art. 5.º, da Constituição do Estado de São Paulo.

 

                                      Como já visto inicialmente, a  administração municipal está afeta ao Prefeito eleito. É ele quem define as prioridades e as políticas públicas a serem implementadas, bem assim  os serviços públicos que serão prestados à população, tudo sob a perspectiva e motivação do atendimento do interessa público. Nessa seara, a Câmara não tem como impor suas preferências, podendo quando muito formular indicações, mas não sujeitar aquela autoridade ao cumprimento de lei que, longe de fixar uma regra geral e abstrata, constitui verdadeira ordem ou comando, para que se faça algo.

 

                                      Logo, se a iniciativa em exame for considerada válida – o que corresponde, na prática, a uma tentativa de restabelecer-se o sistema que vigorava ao tempo  das  Comunas ,  ocorrerá uma hipertrofia do Legislativo, que sempre poderá impor suas vontades ao Executivo, por meio da edição de leis[3], criando uma verdadeira relação de subordinação e hierarquia entre os poderes, incompatível com o sistema adotado pela Constituição em vigor, o qual se baseia na independência e harmonia entre os poderes, cuja observância é vital para a preservação do Estado de Direito.

 

                                      Na ordem constitucional vigente, como anotado em tópico precedente, não existe a mínima possibilidade de a administração municipal ser exercida pela Câmara de Vereadores, por intermédio da edição de leis. Em relação a esse aspecto, aliás, não paira nenhuma controvérsia, uma vez que a atual Constituição é suficientemente clara ao atribuir ao Prefeito a competência privativa para exercer, com o auxílio dos Secretários Municipais, a direção superior da Administração Municipal (CE., art. 47, inciso II) e a praticar os atos de administração, nos limites de sua competência (CE., art. 47, inciso XIV).

 

                                      Bem por isso, ELIVAL DA SILVA RAMOS adverte que: “Sob a vigência de Constituições que agasalham o princípio da separação de Poderes, no entanto, não é lícito ao Parlamento editar, a seu bel-prazer, leis de conteúdo concreto e individualizante. A regra é a de que as leis devem corresponder ao exercício da função legislativa. A edição de leis meramente formais, ou seja, ‘aquelas que, embora fluindo das fontes legiferantes normais, não apresentam os caracteres de generalidade e abstração, fixando, ao revés, uma regra dirigida, de forma direta, a uma ou várias pessoas ou a determinada circunstância’, apresenta caráter excepcional. Destarte, deve vir expressamente autorizada no Texto Constitucional, sob pena de inconstitucionalidade substancial.” (“A Inconstitucionalidade das Leis - Vício e Sanção”, Saraiva, 1994, p. 194).

 

                                      Nesse contexto, a aprovação de lei, pela Câmara, que obriga o Executivo a reconhecer uma mudança casuística de área estritamente residencial para comercial, só pode ser interpretada como atentatória ao postulado básico da independência e harmonia entre os poderes (CE., art. 5.º, caput), visto que a Constituição em vigor não exige nenhuma autorização especial para a prática de ato que se insere na órbita de competência tipicamente administrativa.

 

                                      Ademais, como já anotado, a ordenação do solo  reclama estudos prévios  a cargo da Administração, além de vincular-se às diretrizes do Plano Diretor e aos projetos dos loteamentos e outros parcelamentos.

 

                                      Em suma, a Câmara Municipal de Catanduva não pode arrogar  a  si  a  competência  para  autorizar  a  prática de atos concretos de administração, como aquela tratada pela Lei Complementar n° 0440/08, do Município de Catanduva.

 

 

                                      Em face do exposto, aguardo o julgamento de procedência desta ação direta, confirmando-se a liminar deferida de início, a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei n.º 0440, de 28 de abril de 2008, do Município de Catanduva, por afronta aos arts. 5.º, 37,  47, II, e 181, da Constituição Paulista, cuja observância é obrigatória pelos Municípios, por força do art. 144, dessa mesma Carta Política.

 

                                      São Paulo, 29 de julho de 2008.

 

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça



[1] “Dá destinação peculiar à Avenida Daniel Soubhia no trecho compreendido entre á rua Mato grosso e Rua Floresta Azul”

            Lei Complementar n.º 0440, de 28 de abril de 2008. 

            Art. 1º - Fica o Município de Catanduva autorizado a dar destinação peculiar à Avenida Daniel Soubhia, no trecho compreendido entre a rua Mato Grosso e a Rua Floresta Azul, permitindo no trecho acima relacionado a implantação e o funcionamento de escritórios ou consultórios destinados ao desenvolvimento de atividades de profissionais liberais, farmácias, escolas de idioma, floriculturas, revendas de autom´[oveis , comércio de materiais médicos e odontológicos e demais modalidades de atividades comerciais, desde que não causem perturbação da tranqüilidade e do bem estar dos habitantes locais, sendo proibido, portanto a instalação de bares, boates, discotecas, clubes noturnos, fliperamas, bilhares e outros estabelecimentos similares ou que contenham estes equipamentos.

            Art. 2º - Esta lei complementar entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

                                                                

 

[2] Em sua magistral obra “Esprit des lois”, Montesquieu formulou a seguinte advertência: “tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executá-las e o de julgar.”

[3] R. Carré de Malberg distingue Estado legal e Estado de Direito: “El Estado de derecho se establece simple y únicamente en interés y para la salvaguardia de los ciudadanos; sólo tiende a asegurar la protección de su derecho o de su estatuto individual. El régimen del Estado legal está orientado en otra dirección. Se relaciona con un concepto político referente a la organización fundamental de los poderes, concepto según el cual debe la autoridad administrativa, en todos los casos y respecto a todas las materias, subordinarse al órgano legislativo, en el sentido de que no podrá actuar sino en ejecución o por autorización de una ley. Esta subordinación no se reduce desde luego a aquellos actos de administración que producen efectos de orden individual respecto a los administrados, sino que se extiende, en principio, a todas las medidas de administración, hasta aquellas – reglamentarias o particulares – que, sin tocar al derecho de los administrados, conciernen únicamente al funcionamiento interno de los servicios administrativos y sólo deben dejar sentir sus efectos en el interior del organismo administrativo.” (Teoría General del Estado, Traducción de José Lión Depetre, Facultad de Derecho/UNAM e Fondo de Cultura Económica, México, 2001, p. 451)