Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
Órgão Especial
Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 164.488-0/3-00
Requerente: Prefeito Municipal de Valinhos
Requerida: Câmara Municipal de Valinhos
1. Ação
direta de inconstitucionalidade. Lei municipal, de iniciativa parlamentar, que
institui isenção ou remissão tributária.
2. Contraste
com dispositivos da Constituição Federal, da Lei Orgânica do Município e da Lei
de Responsabilidade Fiscal não viabiliza o controle abstrato, concentrado e
direto de constitucionalidade de lei municipal cujo único parâmetro é a
Constituição do Estado (art. 125, § 2º, Constituição Federal).
3. Ofensa ao princípio da separação dos poderes por supressão da
iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo. Inexistência.
5. Inexistência de iniciativa legislativa
reservada em matéria tributária. Precedentes do STF.
6. Alegação de
ausência de indicação de recursos para compensação da renúncia. O art. 25 da
Constituição Estadual veda projetos de lei sem indicação de recursos próprios
para fazer face à majoração de despesa pública, não inviabilizando isenções
tributárias.
7.
Improcedência da ação.
Parecer
Egrégio Tribunal,
Colendo Órgão Especial,
Douto Relator:
1. Ação
direta de inconstitucionalidade (fls. 02/14) impugnando a Lei n. 4.254, de 12
de março de 2008, do Município de Valinhos, de iniciativa parlamentar, que
autoriza o Poder Executivo a conceder isenção ou remissão do Imposto Predial e
Territorial Urbano incidente sobre imóveis edificados atingidos por enchentes e
alagamentos causados pelas chuvas ocorridas no município a partir de 01 de
janeiro de 2000, foi proposta sob o fundamento de iniciativa legislativa
reservada ao Chefe do Poder Executivo e falta de indicação de recursos para
compensação da renúncia com a conseqüente violação a dispositivos da
Constituição Federal (art. 2º), da Constituição Estadual (art. 5º), da Lei
Orgânica do Município de Valinhos (arts. 1º, I, 8º, XIV, 51, 80, XI e XV, 151,
III, § 4º, 153, 209, V e XIII) e da Lei Complementar n. 101/00 (art. 14).
2. Com
liminar concedida (fl. 46), foram prestadas informações (fls. 51/52) e a douta
Procuradoria-Geral do Estado manifestou desinteresse no processo (fls. 81/83).
3. É o
relatório.
4. O
contraste da lei local com dispositivos da Constituição Federal, da Lei
Orgânica do Município e da Lei de Responsabilidade Fiscal não viabiliza o
controle abstrato, concentrado e direto de constitucionalidade de lei municipal
cujo único parâmetro é a Constituição do Estado (art. 125, § 2º, Constituição Federal).
Neste sentido:
“as ações diretas de inconstitucionalidade devem
ater-se a contrastes com dispositivos constitucionais, não com normas de
direito comum, independente de sua hierarquia. A violação de dispositivo de
leis ordinárias, leis complementares e mesmo de preceitos inseridos em lei
orgânica do município, não pode ser invocada em ação direta” (TJSP, ADI
46.911-0/4-00, Órgão Especial, Rel. Des. Franciulli Netto, v.u., 08-09-1999).
5. Portanto, sob o mote de violação ao
princípio da separação de poderes a ação só pode ser conhecida à luz do art. 5º
da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória para
os Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual, e que
assim dispõe:
“Art. 5º. São Poderes do Estado, independentes
e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
6. Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito
assentado na idéia de que as funções estatais são divididas e entregues a
órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando
interferências indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício dessas
atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois, observa a doutrina que:
“O princípio da separação dos poderes (ou
divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto,
entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das
respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções
principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com
os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que,
teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles
Teixeira. Curso de Direito Constitucional,
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).
7. Como conseqüência do princípio da separação dos poderes, a
Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal,
comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro.
Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas da função
administrativa, como, por exemplo, dispor sobre a sua organização e seu
funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de poderes:
“consiste um confiar cada uma das funções
governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes
(...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a)
especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no
exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que,
além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente
independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José
Afonso da Silva. Comentário contextual à
Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).
8. Também por decorrência do citado princípio da separação de
poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro
para evitar abusos e disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a
participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a
doutrina:
“É a esse arranjo, mediante o qual, pela
distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos
estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam,
já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles
recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um
verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium
of powers).
(...)
A distribuição das funções entre os órgãos
do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa
do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as
exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada
poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a
outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos
termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete,
criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do
princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções
correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).
9. Assim, se em princípio a competência normativa é do domínio
do Poder Legislativo, certas matérias por tangenciarem assuntos de natureza
eminentemente administrativa e, concomitantemente, direitos de terceiros ou o
próprio exercício dos poderes estatais, são reservadas à iniciativa legislativa
do Chefe do Poder Executivo.
10. Feita esta breve exposição, corolário é a regra da iniciativa
legislativa comum ou concorrente e a exceção é cingida a expressas previsões
constantes do texto constitucional. Daí decorre, também, que as exceções não se
presumem, sob pena de tornar a regra em exceção e vice-versa, como, aliás, se
extrai da transcrição da lúcida e abalizada opinião de J. H. Meirelles
Teixeira, acima reproduzida, ao salientar que:
“as exceções ao princípio da separação,
isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em
funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão
admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não
é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas
exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que
a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua
natureza específica”.
11. Fixadas estas premissas, as reservas de iniciativa
legislativa a autoridades, agentes, entidades ou órgãos públicos diversos do
Poder Legislativo devem sempre ser interpretadas restritivamente na medida em
que, ao transferirem a ignição do processo legislativo, operam reduções a
funções típicas do Parlamento e de seus membros.
12. No rol do § 2º do art. 24 da Constituição Estadual, que
inscreve iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, não se
alinham disposições em matéria tributária. Essa constatação também se capta do
simétrico art. 61, § 1º, da Constituição Federal, cuja única referência
explícita encontrada em sentido contrário consta da alínea b do inciso II, relativa à disciplina de matéria tributária e
orçamentária dos Territórios, preceito que, como decidido na Suprema Corte, não
é de observância obrigatória para os Estados-membros:
“III. Processo
legislativo: matéria tributária: inexistência de reserva de iniciativa do Executivo,
sendo impertinente a invocação do art. 61, § 1º, II, b, da Constituição, que
diz respeito exclusivamente aos Territórios Federais” (STF, ADI 3.205-MS,
Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-10-2006, v.u., DJ 17-11-2006,
p. 41).
13. Tampouco dos arts.
14. A reserva de iniciativa legislativa em favor do Chefe do
Poder Executivo existe apenas no caso do plano plurianual, da lei de diretrizes
orçamentárias e da lei orçamentária anual (art. 174, Constituição Estadual). As
mesmas conclusões servem para a Constituição Federal.
15. Imprestável argumentar que a isenção tributária terá reflexos
orçamentários e está compreendida na lei orçamentária e, por isso, a iniciativa
legislativa seria reservada ao Chefe do Poder Executivo.
16. A resposta a esse entendimento foi bem sintetizada na fundamentação
de acórdão da lavra do eminente Ministro Eros Grau – e que tem serventia para o
desate deste processo em todo o seu alcance:
“3. Afasto a alegação de vício formal. Isso
porque a Lei n. 8.366 não tem índole orçamentária. O texto normativo impugnado
dispõe sobre matéria de caráter tributário, isenções, matéria que, segundo
entendimento dessa Corte, é de iniciativa comum ou concorrente; não há, no
caso, iniciativa parlamentar reservada ao Chefe do Poder Executivo. Tem-se por
superado, nesta Corte, o debate a propósito de vício de iniciativa referente à
matéria tributária. Nesse sentido, ADI n. 3.205, Relator o Ministro SEPÚLVEDA
PERTENCE, DJ de 17/11/06; ADI n. 2.659, Relator o Ministro NELSON JOBIM, DJ de
06/02/04, entre outros” (STF, ADI 3.809-5-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros
Grau, 14-06-2007, v.u., DJ 14-09-2007, p. 30).
17. Destarte, por este ângulo a ação não merece ser acolhida, até
porque conclusão oposta contrasta com o entendimento unânime da Suprema Corte.
18. Remanesce o exame de violação ao art. 25 da Constituição do
Estado de São Paulo. Esse dispositivo está assim redigido:
“Art. 25. Nenhum projeto de lei que a
implique criação de cargo ou o aumento de despesa pública será sancionado sem
que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos
novos encargos”.
19. O preceito concentra em
seu bojo uma nítida e salutar preocupação com a responsabilidade fiscal.
20. Entretanto, a lei local
impugnada não implica, de per si,
majoração de despesa pública, ainda que importe renúncia de previsão de receita
pública.
21. Mesmo sob este enfoque,
convém ponderar que não há óbice na medida em que incide sobre a previsão, não
sobre a execução e realização.
22. De qualquer sorte, não
há contraste com o teor do dispositivo enfocado e não serve ao debate o
eventual divórcio com o art. 14 da Lei Complementar n. 101/00 porque o controle
de constitucionalidade, nesta sede especial, tem como único parâmetro a Constituição do Estado.
23. Em suma, o
art. 25 da Constituição Estadual veda projetos de lei sem indicação de recursos
próprios para fazer face à majoração de despesa pública, não inviabilizando
isenções tributárias.
24. Opino pela improcedência da ação.
É o parecer.
São Paulo, 22 de setembro de 2008.
MAURÍCIO AUGUSTO GOMES
PROCURADOR
DE JUSTIÇA
no
exercício de função delegada
pelo
Procurador-Geral de Justiça