Ação Direta de Inconstitucionalidade

Autos n. 164.489.0/8-00

Autor: Prefeito Municipal de Valinhos

Objeto de impugnação: Lei Municipal n. 4.255, de 6 de março de 2008, de Valinhos

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

                Colendo Órgão Especial

 

         O Prefeito Municipal de Valinhos propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade em face da Lei Municipal n. 4.255, de 6 de março de 2008, alegando a violação dos arts. 5º e 144 da Constituição do Estado de São Paulo, além de dispositivos da lei orgânica local.

         A lei municipal questionada, que se encontra reproduzida a fls. 31, institui a Micro-Bacia Hidrográfica como Unidade do Gerenciamento Ambiental no Município de Valinhos.

         Em seu art. 1º dispõe:

“Fica instituída a micro-bacia hidrográfica como unidade gerencial para os fins de definição de políticas públicas de meio ambiente, elaboração de normas para uso e ocupação do solo e práticas conservacionistas e compensatórias”.

         O fundamento jurídico da ação é o fato de que haveria usurpação, por parte do Poder Legislativo municipal, de atribuições e atividades próprias do Poder Executivo.

         Ao despachar a inicial (fls. 34), sua Excelência, o Desembargador Relator, Dr. Relato Nalini, deferiu o pedido de suspensão liminar.

         Notificada, a Câmara Municipal prestou informações (fls. 39/69).

         O Procurador-Geral do Estado, por sua vez, defendeu a exegese segundo a qual a sua intervenção nos feitos desta natureza não é obrigatória, mas sim condicionada à verificação prévia da existência de interesse estadual na preservação da norma impugnada (fls. 74/76).

         É o breve relato.

         O pedido de declaração de inconstitucionalidade é improcedente.

         Analisadas as questões discutidas na presente ação sob o prisma formal, é possível chegar-se à conclusão acerca da inconstitucionalidade da lei sindicada na presente ação direta, em função do vício de iniciativa.

         Porém, a declaração de inconstitucionalidade não é a solução mais adequada se considerarmos os aspectos materiais envolvidos no deslinde da causa. Vejamos.

         No Brasil, como se sabe, o governo municipal tem suas funções divididas, sendo que as administrativas foram conferidas ao Prefeito, enquanto que as funções legislativas são de competência da Câmara. Administrar significa aplicar a lei ao caso concreto. Assim, no exercício de suas funções, o Prefeito é obrigado a observar as normas gerais e abstratas editadas pela Câmara, em atenção ao princípio da legalidade, a que está pautada toda atuação administrativa, na forma do art. 111, da Carta Paulista.

         Esse mecanismo de repartição de funções, incorporado ao nosso ordenamento constitucional, impede a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência revelou conduzir ao absolutismo.

         Daí por que é vedado à Câmara interferir na prática de atos que são de competência privativa do Prefeito, assim como a recíproca é verdadeira. 

         Considerada essa premissa, podemos concluir pela inconstitucionalidade, pois a lei sindicada na presente ação é de iniciativa parlamentar e institui Micro-Bacia Hidrográfica, bem como dispõe sobre o gerenciamento ambiental no Município de Valinhos. Ou seja, regulamenta o uso e a ocupação do solo e dispõe sobre a atuação dos órgãos administrativos municipais.

         Sendo assim, não reuniria condições para subsistir na ordem jurídica vigente, uma vez que, a pretexto de disciplinar assunto de interesse local, a Câmara Municipal de Valinhos teria interferido na esfera de competência exclusiva da Administração.

         Pode-se argumentar, por exemplo, que a Câmara Municipal, por meio da edição da Lei Municipal n. 4.255/2008, ofendeu o art. 181 da Constituição Estadual, assim redigido: “Lei municipal estabelecerá, em conformidade com as diretrizes do plano diretor, normas sobre zoneamento, loteamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, índices urbanísticos, proteção ambiental e demais limitações administrativas pertinentes”.

         Ou seja, segundo esse raciocínio, a Câmara Municipal acabou por promover o ordenamento territorial e, portanto, infringir a Constituição de São Paulo.

         Ainda conforme esse prisma, embora seja inegável a competência das Câmaras Municipais para legislar sobre os assuntos de interesse local, esta tem limites que devem necessariamente ser observados, e que decorrem da imperiosidade de preservar-se a convivência pacífica dos poderes políticos, entre os quais não existe nenhuma relação de hierarquia e subordinação, mas sim de independência e harmonia, em face do contido no art. 5.º, da Constituição do Estado de São Paulo.

         Por isso, considerando que a administração municipal está afeta ao Prefeito eleito, é ele quem define as prioridades e as políticas públicas a serem implementadas, bem assim os serviços públicos que serão prestados à população, tudo sob a perspectiva e motivação do atendimento do interesse público.

         Nessa seara, a Câmara não tem como impor suas preferências, podendo quando muito formular indicações, mas não sujeitar aquela autoridade ao cumprimento de lei que, longe de fixar uma regra geral e abstrata, constitui verdadeira ordem ou comando, para que se faça algo.

         O autor da presente ação direta, por valer-se do mencionado raciocínio, pleiteia seja julgado procedente o pedido declaratório de inconstitucionalidade, eliminando-se a lei municipal atacada do ordenamento jurídico.

         Porém, com todo o respeito à interpretação dada pelo autor na inicial, a Procuradoria-Geral entende que não é o caso de se pronunciar a inconstitucionalidade da lei municipal n. 4.255/2008, pelos motivos que passa a expor.

         A Constituição Federal de 1988 foi pioneira ao determinar, no plano constitucional, a tutela do bem ambiental, elevando-o à condição de direito/garantia fundamental.

         Esse caráter já foi proclamado pelo próprio Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.540/DF, em acórdão do qual foi relator o eminente Ministro Celso de Mello[1]:

 

 

       “MEIO AMBIENTE - DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF, ART. 225) - PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE - DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE - NECESSIDADE DE IMPEDIR QUE A TRANSGRESSÃO A ESSE DIREITO FAÇA IRROMPER, NO SEIO DA COLETIVIDADE, CONFLITOS INTERGENERACIONAIS - ESPAÇOS TERRITORIAIS ESPECIALMENTE PROTEGIDOS (CF, ART. 225, § 1º, III) - ALTERAÇÃO E SUPRESSÃO DO REGIME JURÍDICO A ELES PERTINENTE - MEDIDAS SUJEITAS AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE LEI - SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - POSSIBILIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, CUMPRIDAS AS EXIGÊNCIAS LEGAIS, AUTORIZAR, LICENCIAR OU PERMITIR OBRAS E/OU ATIVIDADES NOS ESPAÇOS TERRITORIAIS PROTEGIDOS, DESDE QUE RESPEITADA, QUANTO A ESTES, A INTEGRIDADE DOS ATRIBUTOS JUSTIFICADORES DO REGIME DE PROTEÇÃO ESPECIAL - RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA (CF, ART. 3º, II, C/C O ART. 170, VI) E ECOLOGIA (CF, ART. 225) - COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS - CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO DESSE ESTADO DE TENSÃO ENTRE VALORES CONSTITUCIONAIS RELEVANTES - OS DIREITOS BÁSICOS DA PESSOA HUMANA E AS SUCESSIVAS GERAÇÕES (FASES OU DIMENSÕES) DE DIREITOS (RTJ 164/158, 160-161) - A QUESTÃO DA PRECEDÊNCIA DO DIREITO À PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE: UMA LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL EXPLÍCITA À ATIVIDADE ECONÔMICA (CF, ART. 170, VI) - DECISÃO NÃO REFERENDADA - CONSEQÜENTE INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE MEDIDA CAUTELAR. A PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE: EXPRESSÃO CONSTITUCIONAL DE UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE À GENERALIDADE DAS PESSOAS.

       Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e futuras gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ 164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em geral. Doutrina. A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA EM DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE.

       A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a "defesa do meio ambiente" (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina. Os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural. A QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF, ART. 3º, II) E A NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE (CF, ART. 225): O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO ENTRE AS EXIGÊNCIAS DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA.

       O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações. O ART. 4º DO CÓDIGO FLORESTAL E A MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.166-67/2001: UM AVANÇO EXPRESSIVO NA TUTELA DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE.

       A Medida Provisória nº 2.166-67, de 24/08/2001, na parte em que introduziu significativas alterações no art. 4º do Código Florestal, longe de comprometer os valores constitucionais consagrados no art. 225 da Lei Fundamental, estabeleceu, ao contrário, mecanismos que permitem um real controle, pelo Estado, das atividades desenvolvidas no âmbito das áreas de preservação permanente, em ordem a impedir ações predatórias e lesivas ao patrimônio ambiental, cuja situação de maior vulnerabilidade reclama proteção mais intensa, agora propiciada, de modo adequado e compatível com o texto constitucional, pelo diploma normativo em questão.

       Somente a alteração e a supressão do regime jurídico pertinente aos espaços territoriais especialmente protegidos qualificam-se, por efeito da cláusula inscrita no art. 225, § 1º, III, da Constituição, como matérias sujeitas ao princípio da reserva legal.

       É lícito ao Poder Público - qualquer que seja a dimensão institucional em que se posicione na estrutura federativa (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) - autorizar, licenciar ou permitir a execução de obras e/ou a realização de serviços no âmbito dos espaços territoriais especialmente protegidos, desde que, além de observadas as restrições, limitações e exigências abstratamente estabelecidas em lei, não resulte comprometida a integridade dos atributos que justificaram, quanto a tais territórios, a instituição de regime jurídico de proteção especial (CF, art. 225, § 1º, III)”.

 

         Portanto, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito constitucional fundamental.

 

         E como adverte Luís Roberto Barroso[2], “a supremacia constitucional, em nível dogmático e positivo, traduz-se em uma superlegalidade formal e material. A superlegalidade formal identifica a Constituição como a fonte primária da produção normativa, ditando competências e procedimentos para a elaboração dos atos normativos inferiores. E a superlagalidade material subordina o conteúdo de toda a atividade normativa estatal à conformidade com os princípios e regras da Constituição. A inobservância dessas prescrições formais e materiais deflagra um mecanismo de proteção da Constituição, conhecido na sua matriz norte-americana como judicial review, e batizado entre nós de ‘controle de constitucionalidade’”.

         Os parâmetros para o controle de constitucionalidade, portanto, são os aspectos formais e materiais da produção normativo infraconstitucional. Daí a razão pela qual se fala em inconstitucionalidade formal e material.

         A análise puramente formal das questões discutidas na presente ação direta pode, de fato, levar o interprete a concluir pela inconstitucionalidade da lei municipal de Valinhos.

         Afinal, ela institui a micro-bacia hidrográfica como unidade do gerenciamento ambiental no município de Valinhos, o que, aparentemente, traduz-se numa interferência da Câmara Municipal no Poder Executivo.

         A lei ainda dispõe, em seu art. 3º, que qualquer dano ambiental causado em qualquer local do município só poderá ser compensado em área localizada na mesma micro-bacia onde ele foi causado.

         Também estabelece (art. 4º) que as medidas compensatórias exigidas quando da implantação de qualquer atividade, só poderão ser feitas na mesma micro-bacia e de preferência o mais próximo possível da área meramente afetada devido a implantação da atividade.

         Por fim, exige que seja evitada a transposição de bacias quando do tratamento de efluentes (art. 5º).

         A visão formalista do direito conduz, pois, à conclusão de que a Câmara Municipal está impondo condicionamentos à atividade do Poder Executivo, o que, de fato, pode levar o intérprete a concluir pela inconstitucionalidade.

         Todavia, como se disse acima, bem analisadas as questões, a lei municipal não apresenta qualquer vício de inconstitucionalidade. Nem mesmo formal.

         Ao instituir o bem ambiental como bem jurídico fundamental, o legislador constituinte trouxe um importante dever ao Poder Público e, portanto, também aos prefeitos municipais: determinou ao Poder Público uma série de deveres fundamentais.

         Com efeito, estabelece o art. 225, caput, que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações - negritamos.

         O § 1º do mencionado dispositivo legal explicita diversos deveres:

       Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:

       I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

       II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;

       III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

       IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;

       V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;

       VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

       VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

 

         Portanto, não há dúvida: INCUMBE AO PODER PÚBLICO A DEFESA DO MEIO AMBIENTE ECOLGICAMENTE EQUILIBRADO. Não há discricionariedade.

         A EXPRESSÃO “PODER PÚBLICO” ABRANGE A CÂMARA MUNICIPAL.

         Ou seja, à Câmara Municipal também incumbe a defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

         Não há competência privativa ou exclusiva do Poder Executivo.

         Assim, a Câmara agiu nos limites de sua competência para legislar sobre assuntos de interesse local (CF, art. 30, I) e respaldada pelo art. 225 da Constituição Federal, que erigiu o bem ambiental à condição de bem jurídico fundamental.

         Todos os Poderes dos Municípios devem agir para a defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

         Nesse contexto, afigura-se louvável a iniciativa da Câmara Municipal de Valinhos, podendo-se extrair da análise sistemática do texto constitucional federal a exegese segundo a qual a Câmara Municipal tem iniciativa legislativa para a defesa do meio ambiente, não sendo justa a conclusão no sentido que há reserva de iniciativa sobre essa matéria em favor do Executivo.

         Acrescente-se que as determinações contidas na legislação municipal, a rigor, não inovam em Direito Ambiental, pois a reparação do dano, sob a forma de compensação, de fato, deve ser feita na mesma bacia hidrográfica onde ele foi causado. A recomendação para que não haja transposição de bacias, quando do tratamento de efluentes, também atende a todos os princípios de direito ambiental, especialmente o que determina a correção na fonte.

         José Joaquim Gomes Canotilho[3], sobre o princípio da correção na fonte, ensina que “este é um princípio bastante recente no Direito do Ambiente que aparece também designado na doutrina como princípio do produtor-eliminador, princípio da auto-suficiência ou princípio da proximidade”.

         Ainda segundo o autor, “este é um princípio muito fecundo, que permite responder às questões de quem, onde e quando deve desenvolver ações de proteção do ambiente. Visa, portanto, pesquisar as causas da poluição para, sempre que possível, as eliminar ou, pelo menos, para as moderar, evitando que a poluição se repita.

         Onde: Entendendo a fonte num sentido espacial, a correção implica a proibição de transporte de produtos nocivos para o ambiente do local onde são produzidos, e onde deveriam ser reciclados, tratados ou eliminados, para outro local mais ou menos distante. Neste sentido, o princípio da correção na fonte tem uma especial aplicação no campo dos resíduos, legitimando restrições à liberdade de circulação de mercadorias através do encerramento das fronteiras aos resíduos perigosos provenientes de outros Estados. O princípio da correção na fonte impede o ‘turismo dos resíduos’”.

         O legislador municipal, ao estabelecer, no art. 4º da lei impugnada, que as medidas compensatórias devem ser feitas na mesma micro-bacia e de preferência o mais próximo possível da área meramente afetada devido a implantação da atividade, também adotou critérios ambientalmente corretos.

         Conforme Marcos Destefenni[4], “a compensação é uma forma alternativa à reparação específica do dano ambiental, consistente na adoção de uma medida de equivalente importância ecológica, dentro do mesmo ecossistema onde ocorreu o dano, mediante a observância de critérios técnicos especificados por órgãos públicos e mediante a aprovação prévia do órgão ambiental competente, admissível desde que seja impossível a reparação específica.

                   A compensação, portanto, depende de uma série de requisitos:

                   a) ser absolutamente necessária;

                   b) não ser possível uma reparação específica;

                   c) consistir numa medida de equivalente importância ecológica;

                   d) que a medida seja adotada dentro do mesmo ecossistema onde ocorreu o dano ambiental;

                   e) que sejam observados critérios técnicos;

                   f) que haja ciência por parte dos órgãos públicos;

                   g) que os órgãos públicos previamente autorizem as medidas.

                   A ausência de qualquer requisito pode desfigurar a compensação. Por exemplo, se a medida não for adotada dentro do mesmo ecossistema onde ocorreu o dano ambiental não se deve falar em ‘compensação’, mas sim em verdadeira ‘indenização’” – destaques nossos.

                   Portanto, se é da essência da compensação que as medidas sejam adotadas dentro do mesmo ecossistema, em nada a legislação municipal inovou.

                   Nesse sentido também Filippe Augusto Vieira de Andrade e Maria Aparecida Alves Gulin Villar[5], “a compensação de danos ambientais tende a viabilizar, v.g., a aplicação de recursos à proteção ou recuperação de áreas do próprio local degradado ou às suas imediações ou entorno. Pode ainda resultar na conservação in situ da diversidade biológica nativa contida em espaços territoriais carentes de medidas especiais de proteção e conservação” – destaques nossos.

                   Ademais, o princípio constitucional da efetividade das normas constitucionais também foi plenamente realizado pela lei municipal.

         Luís Roberto Barroso[6], sobre o mencionado princípio, profere lição ímpar: “A efetividade significa a realização do Direito, o desempenho concreto de sua função social. Ela representa a materialização, no mundo dos fatos, dos preceitos legais e simboliza a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social”.

         Por isso, a Câmara Municipal de Valinhos, ao editar a Lei n. 4.255/2008, cumpriu o seu dever, não se omitiu, e legislou para transformar o dever ser em realidade.

         Pode-se ir além.

         A omissão do Poder Executivo não pode ser pretexto para que ele venha, posteriormente, a valer-se do princípio da separação de poderes para tentar eliminar do ordenamento jurídico lei municipal que atende aos ditames da Constituição Federal.

         Conforme ressalta a doutrina contemporânea do Direito Constitucional, a Lei Maior pode ser violada por ação ou por omissão.

         A omissão inconstitucional também pode ser analisada pelo Tribunal competente para o exercício da Jurisdição Constitucional.

         Robert Alexy[7] já advertiu: “Como o tem mostrado a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal (alemão), de modo algum um tribunal constitucional é impotente frente a um legislador inoperante. O espectro de suas possibilidades processuais-constitucionais se estende, desde a mera constatação de uma violação da Constituição, através da fixação de um prazo dentro do qual de levar-se a cabo uma legislação concorde com a Constituição, até a formulação judicial direta do ordenado pela Constituição”.

         Um dos mais notáveis instrumentos de que se pode valer o Tribunal Constitucional para coibir a inconstitucionalidade por omissão é a troca do sujeito legitimado.

         A questão é muito bem exposta pelo nobre Procurador da República, Walter Claudius Rothenburg[8]: “É quanto à manipulação do conteúdo das decisões em sede de fiscalização de constitucionalidade que o órgão controlador reúne melhores condições de interferir na realidade. Para tanto, concorrem as modernas técnicas de decisão ‘mitigada’ (como o reconhecimento de inconstitucionalidade sem a correspondente nulidade ou sem redução de texto, ou a interpretação conforme a constituição) e podem concorrer novas dimensões que sejam emprestadas ao controle da inconstitucionalidade omissiva (permitindo ao órgão encarregado desse controle encontrar um modo de suprir efetivamente a omissão).

         Técnicas de fiscalização de constitucionalidade que autorizem modular os efeitos da decisão podem tanto respeitar, em alguma medida, a legitimação inicialmente prevista na constituição para o desempenho dos comandos constitucionais (como quando o órgão encarregado da fiscalização procede a uma interpretação conforme, numa tentativa de salvamento do ato; quando se reporta ao sujeito originário, recomendando-lhe que tome providências antes que a situação transite para uma insuperável inconstitucionalidade; quando, finalmente, e no respeito à clara vontade contrastante do editor do ato reputado inconstitucional, limita-se a anular este), quanto infirmar mais incisivamente a legitimação originária, seja assumindo o próprio órgão controlador a competência constitucional (por exemplo, garantindo a efetividade de um direito constitucional a despeito da falta de integração normativa ou da não-implementação de política pública), seja ainda atribuindo-a a outro sujeito (por exemplo, admitindo a constitucionalidade de lei oriunda da derrubada parlamentar de veto presidencial aposto a projeto de lei de autoria popular, mas cuja iniciativa estava reservada ao Presidente da República, que injustificada e intoleravelmente não o apresentava)”.

         Portanto, ainda que não se conclua que a Câmara Municipal de Valinhos não tenha poder de iniciativa legislativa para editar norma protetiva do meio ambiente, a omissão do Chefe do Poder Executivo não pode invalidar a atuação do parlamento, sendo razoável que se declare a constitucionalidade de norma que cumpre o dever estatuído pelo art. 225 da Constituição Federal.

         Na magistral lição de Juarez Freitas[9], “no centro do dilema entre legalidade e legitimidade, o juiz há de posicionar-se de modo transdogmático, na busca de um sistema jurídico aberto, epistemologicamente, à sociedade que, em regra, deslegitima os logicismos formais de todas as correntes positivistas que desprezam os princípios fundamentais, garantidos e assegurados na própria Constituição. Tais princípios, a propósito, exigem que a legalidade se subordine à legitimidade, esta última consagrada pro estes mesmos princípios, aos quais se deve garantir a maior eficácia, sob pena de reduzi-los a meros enunciados retóricos, sem a efetividade concreta que a sociedade tanto solicita”.

         O citado autor[10], aliás, formula um exemplo perfeitamente coincidente com o caso em tela. Por isso, pedidos licença para transcrevê-lo:

         “Só à guisa de exemplificação, admitamos a hipótese de que um juiz federal, atribuindo a pecha de inconstitucionalidade à Lei Estadual, pois a competência para legislar sobre florestas é exclusiva da União, julgue improcedente a impetração de mandado de segurança contra ato de autoridade do Estado-membro, que determina a sustação dos pedidos de exploração florestal para o abate e a industrialização de árvores nativas, argumentando que não se pode ter do Direito uma estreita visão positivista, desconhecendo que ao Direito do Estado deve-se antepor a prova do ‘jusnaturalismo’. Admitir-se – pensou ele – que a norma escrita, posta pelo Estado, contém, única e exclusivamente, o Direito, é cair em grave risco, razão pela qual aplica o dispositivo por ele considerado, equivocadamente, inconstitucional.

         Faltou a este juiz imaginário uma correta formação dialética, pois, ao invés de reconhecer a inconstitucionalidade do diploma estadual, julgando que o ato da autoridade impetrada deveria ser mantido pelo direito natural à vida e à dignidade humana, deveria considerá-lo constitucional, pois tais direitos, não apenas retoricamente, constituem os fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito”.

         Posto isso, aguarda-se seja julgada totalmente improcedente a presente ação direta, a fim de que seja declarada a constitucionalidade da Lei Municipal n. 4.255, de 6 de março de 2008, do Município de Valinhos.

São Paulo, 14 de julho de 2008.

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA,

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça



[1] Julgamento proferido pelo Tribunal Pleno, em 1/9/2005. DJ de 3-2-2006, p. 14.

[2] Interpretação e aplicação da Constituição, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 153.

[3] Introdução ao direito do ambiente, Lisboa: Universidade Aberta, 1998, p. 46-47.

[4] A responsabilidade civil ambiental e as formas de reparação do dano ambiental, Campinas: Bookseller, 2005, p. 190-191.

[5] A compensação como forma de reparação por danos causados ao meio ambiente, in Justiça Penal n° 6, Coord. Jaques de Camargo Penteado, São Paulo: RT, 1999, p. 200.

[6] Interpretação e aplicação da Constituição, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 220.

[7] Teoria de los derechos fundamentales, Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1993, p. 496-497.

[8] Inconstitucionalidade por omissão e troca de sujeito: a perda de competência como sanção à inconstitucionalidade por omissão, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 198-199.

[9] A substancial inconstitucionalidade da lei injusta, Petrópolis: Vozes/EDIPUCRS, 1989, p. 107.

[10] A substancial inconstitucionalidade, cit., p. 90.