Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo nº 164.490-0/2-00

Requerente: Prefeito do Município de Valinhos

Objeto: Lei Municipal nº 4.256, de 6 de março de 2008, do Município de Valinhos

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 4.256, de 6 de março de 2008, do Município de Valinhos, que dispõe sobre a realização de exame de acuidade visual em alunos matriculados no ensino fundamental da rede pública, cujo projeto é de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que institui programa e gera ônus à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes, previsto no artigo 5º da Constituição do Estado. Lei “autorizativa” que, na verdade, contém determinação e, por isso, não afasta a usurpação da competência material do Prefeito. Criação de programa e, em conseqüência, de despesa, sem indicação da receita. Ofensa aos artigos 25 e 176, I, da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

1) Relatório.

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Valinhos, tendo por objeto a Lei Municipal n.º 4.256/08, que “dispõe sobre a realização de exame de acuidade visual em alunos matriculados no ensino fundamental da rede pública”.

Sustenta o Alcaide que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Afirma-se a inconstitucionalidade formal da norma, por versar matéria cuja iniciativa de lei está reservada ao chefe do Poder Executivo, concluindo-se pela ofensa ao princípio da harmonia e independência dos poderes realçado no artigo 5º da Constituição Paulista. Fala-se, também, na contrariedade do art. 25 da CE, eis que o texto aprovado não contém indicação da fonte de custeio do novo encargo.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 95).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 61/93 acerca do processo legislativo.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 104/106).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

2) Fundamentação.

O processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes[1].

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República[2], conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo difuso ou concentrado por parte do Poder Judiciário.

A iniciativa é o ato que deflagra o processo legislativo. Pode ser geral ou reservada (ou privativa). No primeiro caso, vereador, Mesa, comissão da Câmara, prefeito ou a população podem titularizar o projeto. No segundo, há um único titular.

A lei impugnada originou-se de projeto de autoria de vereador, o que se constitui clara ofensa ao princípio constitucional da separação dos Poderes, vez que cabe exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo projetar a normatização destinada a organizar, superintender e dirigir os serviços públicos ou mesmo instituir programas, como o da espécie, que é destinado a aferir a acuidade visual dos alunos da rede pública.

Apreciando iniciativa análoga, da Comarca de Mauá, esse E. Tribunal de Justiça reconheceu a inconstitucionalidade de lei concebida por Edil que determinava a submissão de alunos das escolas públicas aos exames auditivo e oftalmológico.

Eis o v. Acórdão:

Vistos, relatados e discutidos estes autos de AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE n° 94.237-0/4, da Comarca de São Paulo, em que é requerente PREFEITO DO MUNICÍPIO DE MAUÁ, sendo requerido PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE MAUÁ:

ACORDAM, em Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por votação unânime, incorporado o relatório constante dos autos, julgar procedente a ação.

Cuida-se de Ação Direta de Inconstitucionalidade, proposta pelo Sr. Prefeito Municipal de Mauá, em face da Lei n°2.983, de 25 de agosto de 1998, que determinou a "obrigatoriedade de realização de testes de acuidade visual e auditiva nas Escolas Municipais de Primeiro Grau, nas EMEIS e nas Creches Municipais", promulgada pela Câmara Municipal de Mauá ante a rejeição do veto que lhe havia sido oposto.

Ora, um tal dispositivo e os regulamentares que se lhe seguem, sobre regerem matéria tipicamente administrativa, excluem de forma peremptória a discricionariedade da administração quanto ao tema, sendo portanto, inconstitucionais, por ofensa ao princípio de separação dos poderes inserto no texto constitucional estadual (CE/89 - arts. 5º e 144). Ademais, é de competência exclusiva do Executivo, pois, somente a ele cabe analisar a viabilidade orçamentária para o projeto que institui.

Do exposto, julgam procedente a ação, para os fins declinados na inicial. Custas da lei.

O julgamento teve a participação dos Desembargadores NIGRO CONCEIÇÃO (Presidente, com voto), LUÍS DE MACEDO, VISEU JÚNIOR, GENTIL LEITE, DANTE BUSANA, DENSER DE SÁ, MOHAMED AMARO, LUIZ TÂMBARA, FLÁVIO PINHEIRO, GILDO DOS SANTOS, VALLEVI BELLOCCHI, SINÉSIO DE SOUZA, THEODORO GUIMARÃES, PAULO FRANCO, BARBOSA PEREIRA, RUY CAMILO, MATTOS FARIA, OLIVEIRA RIBEIRO, CEZAR PELUSO, ERNANI DE PAIVA, LAERTE NORDI, SOUSA LIMA e SILVEIRA NETO, com votos vencedores.

No caso em análise, é nítida a ofensa ao princípio basilar da separação de poderes, pois, na esteira do entendimento consolidado nesse Sodalício:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

Nem se alegue que, tratando-se de lei autorizativa, o vício estaria superado. Deve-se atentar para o fato de que o Executivo não necessita de autorização para administrar e, no caso em análise, não a solicitou. 

Sérgio Resende de Barros, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina:

"...insistente na pratica legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui  um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa,  praticada cada vez mais exageradamente autorizativa  é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos  que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente"[3].

Bem por isso, não passou despercebido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que "a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo portanto inconstitucional" (ADIN n°593099377 – rel. Des. Maria Berenice Dias – j. 7/8/00).

Esse E. Sodalício também vem afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que as tais “autorizações” são eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.

VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça”[4].

Também é forte o argumento contido na inicial de que a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com as disposições dos artigos 25 e 176, inc. I, da Constituição Bandeirante.

3) Conclusão.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei n.º 4.256/08 do Município de Valinhos.

São Paulo, 15 de outubro de 2008.

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça

jesp



[1] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 675.

[2] Alexandre de Moraes. Direito Constitucional, 23ª. ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 641.

[3] Leis Autorizativas. Revista da Instituição Toledo de Ensino, agosto a novembro de 2000, Bauru, p. 262.

[4] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748.