AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

 

Autos n. 164.689-0/0-00

Autor: Prefeito Municipal de Jacareí

Objeto: Lei Municipal n. 5.173, de 9 de maio de 2008

 

 

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

 

 

                Colendo Órgão Especial

 

 

 

 

         Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Prefeito de Jacareí, na qual sustenta a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 5.173, de 9 de maio de 2008, que dispõe sobre os serviços de transporte de pequenas cargas, mediante a utilização de motocicletas ou similares, denominado MOTO-FRETE.

 

         Segundo a inicial, a iniciativa legislativa da Câmara Municipal violou a competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte (art.22 XI da CF/88), além de apresentar vício de iniciativa e afrontar o princípio da separação de poderes. A pretensão de irritar a lei municipal é amparada em precedentes do Supremo Tribunal Federal, no sentido de inconstitucionalidade de leis locais sobre o tema, sobretudo em função da competência privativa da União.

 

         Foi negada a liminar (fls. 158/159), vindo aos autos informações prestadas pela Presidência da Câmara Municipal (fls. 171 e s.).

 

         O Senhor Procurador-Geral do Estado, citado, declinou da defesa do ato normativo impugnado (fls. 164/166).

 

         É a síntese do necessário.

 

         A Lei n. 5.173, de 9 de maio de 2008, do município de Jacareí, ao dispor sobre os serviços de transporte de pequenas cargas, mediante a utilização de motocicletas ou similares, é verticalmente incompatível com o texto da Constituição Estadual, razão pela qual é procedente o pedido inicial. Vejamos.

 

         Quando o legislador municipal edita ato normativo que tangencia a competência do legislador federal, não se tem pura e simplesmente por violada uma norma contida na Constituição Federal, mas sim, de modo patente e direto, um princípio constitucional latente na Lei Maior, qual seja, o princípio da repartição constitucional de competências. Este decorre do pacto federativo assentado na Constituição de 1988, extraível dos art. 1º e 18 da Lei Maior, bem como de outros dispositivos constitucionais que indicam as matérias atribuídas às competências administrativas e legislativas de cada ente da Federação.

 

         É assente na doutrina que a competência legislativa, em nosso sistema constitucional, é definida pelo critério da predominância do interesse.

 

         É a clássica lição de José Afonso da Silva, para quem “o princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado Federal é o da predominância do interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local (...)” (Curso de direito constitucional positivo, 28ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.478).

 

         Note-se, a propósito, que não se trata de invocar norma da Constituição Federal como parâmetro para o controle da constitucionalidade de lei municipal pelo E. Tribunal de Justiça. Isso, de fato, não seria possível, pois significaria usurpação da competência do E. STF.

 

         Entretanto, a repartição constitucional de competências é princípio estabelecido pela CF/88 (art. 1º e 18), pois reflete um dos aspectos mais relevantes do pacto federativo, ao definir os limites da autonomia dos entes que integram a Federação brasileira. Isso decorre claramente da interpretação sistemática da Constituição Federal.

 

         Daí que, violando-se um princípio constitucional (pacto federativo – repartição constitucional de competências), o que se tem é a ofensa ao art. 144 da Constituição Paulista.

 

         Relevante notar que em decisão recente, quando do julgamento da ADI 130.227.0/0-00 em 21.08.07, rel. des. Renato Nalini, esse E. Tribunal de Justiça acolheu a tese acima aventada (possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de lei municipal por violação do princípio da repartição de competências estabelecido pela Constituição Federal), sendo relevante trazer excerto de voto do i. Desembargador Walter de Almeida Guilherme, imprescindível para a elucidação da questão:

 

(...) Ora, um dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...’.

Sendo a organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na Constituição Federal.

Assim, quando o referido art.144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência legislativa da união, não estão obedecendo ao princípio federativo, e, pois, afrontando estão o art.144 da Constituição do Estado (...)” (trecho do voto do i. des. Walter de Almeida Guilherme, no julgamento da ADI 130.227.0/0-00).

 

 

         No caso ora em exame, o legislador municipal, de fato, legislou sobre trânsito e transporte, matéria cuja competência legislativa é privativa da União, nos termos do art.22 XI da CF/88, sendo oportuno lembrar, ademais, que também o art.21 XX da CF/88 prevê a competência exclusiva da União para instituir diretrizes relacionadas ao transporte urbano.

         Com a devida vênia a entendimento diverso, não é apropriada a argumentação no sentido de que, na hipótese, o legislador municipal teria simplesmente, e de forma legítima, regulado uma modalidade de transporte coletivo, com fundamento na competência prevista no art. 30 V da CF/88, que assegura aos Municípios a possibilidade de “organizar e prestar, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”.

 

         Tal competência municipal deve ser compreendida dentro da perspectiva de predominância de interesse, elemento central na repartição constitucional de competências.

 

         Em outras palavras, é correto concluir que determinada matéria pode, de fato, ser alvo, concomitantemente, de legislação federal e municipal, mas desde que nesta última sejam abordados aspectos essencialmente locais.

 

         No caso em exame, é possível afirmar que estão inseridos na competência privativa do legislador federal para regular a matéria atinente a trânsito e transporte, v.g.: (a) a existência de determinada modalidade de transporte (como o de “moto-frete”); (b) as condições mínimas de segurança do equipamento a ser utilizado; (c) a configuração básica dos veículos utilizados em tal modalidade; (d) a qualificação específica mínima a ser exigida dos condutores; entre outros.

 

         De outro lado, estaria presente a competência do legislador municipal para, v.g.: (a) regular aspectos essencialmente locais relacionados ao cadastro dos profissionais da referida categoria junto à Municipalidade; (b) tratar da concessão da licença (alvará) municipal para exercício da atividade; (c) padronizar a identificação dos veículos (cores); entre outros.

 

         Nesse sentido, Hely Lopes Meirelles averba que “o trânsito e o tráfego são daquelas matérias que admitem a tríplice regulamentação – federal, estadual e municipal – conforme a natureza e âmbito do assunto a prover. (...) Os meios de circulação e transporte interessam a todo o país, e por isso mesmo a Constituição da República reservou para a União a atribuição privativa de legislar sobre trânsito e transporte (art.22 XI), permitindo que os Estados-membros legislem supletivamente a respeito da matéria, nos termos de lei complementar pertinente. (...) De um modo geral, pode-se dizer que cabe à União legislar sobre os assuntos nacionais de trânsito e transporte, ao Estado-membro compete regular e prover os aspectos regionais e a circulação intermunicipal em seu território, e ao Município cabe a ordenação do trânsito urbano, que é de seu interesse local (CF, art.30 I e V).”(Direito Municipal Brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.444/446).

 

         Ora, para confirmar o raciocínio acima, basta observar que a União, cumprindo a competência privativa que lhe foi constitucionalmente reservada, editou o Código Brasileiro de Trânsito (Lei 9.503/97), fixando expressamente as matérias da alçada do Município (art. 24, com vinte e um incisos). Destas não é viável extrair, nem mesmo indiretamente, a possibilidade de regulamentar, da forma como ocorreu no caso em exame, a questão do transporte de cargas por meio do serviço de “moto-frete”.

 

         Aliás, o silêncio do legislador federal, na hipótese, foi eloqüente. Não deve ser compreendido como autorização, implícita, para que o legislador municipal regule modalidade de transporte não prevista na lei federal. Ao contrário, deve ser compreendida como impossibilidade de criação de nova modalidade de transporte não prevista no diploma geral.

 

         Ademais, é intuitivo que uma nova modalidade de transporte desperte a necessidade de tratamento uniforme em todo o território nacional. Isso seria suficiente para concluir que eventual regulamentação do serviço de transporte de cargas em “moto-frete” teria que advir de lei federal.

 

         Não se desconhece que esse E. Tribunal de Justiça tem se posicionado no sentido da constitucionalidade de leis municipais que tratam do tema. Tal foi a conclusão extraída do sistema constitucional quando do julgamento da ADI 128.925-0/5-00, em 28.03.2007, rel. des. Ruy Camilo, nos termos da ementa a seguir transcrita:

 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Serviço de 'moto-táxi’ instituído pelo Município de São João da Boa Vista - Matéria que se insere na competência do Município - Lei constitucional - Inocorrência de afronta aos arts. 111, 117 e 144 da Carta Bandeirante - ação improcedente.”

 

         No julgado acima referido foi salientado que: (a) não se confunde a competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte (art. 22, XI da CF/88) e a competência exclusiva dos Municípios para legislar sobre transportes coletivos em seu território (art.30 V da CF/88); e (b) conseqüentemente não há conflito entre a posição que vem sendo adotada por esse C. Órgão Especial e outros julgados do E. STF sobre a mesma matéria.

 

         Com a devida vênia, entretanto, parece-nos que tal entendimento não é apropriado.

 

         Como visto, embora tenha o Município competência para legislar sobre transportes coletivos, esta é adstrita a aspectos do tema exclusivamente relacionados ao interesse local, pois em perspectiva geral, que revela interesse nacional, torna-se incontornável a invocação da competência do legislador federal.

 

         Todas as regras constitucionais que tratam da questão da repartição de competências na Federação brasileira não podem ser lidas sem a sua compreensão sistemática e finalista, ou seja, tendo como pano de fundo a idéia de que o princípio que inspira a Lei Maior, no particular, é o da predominância do interesse.

 

         Esse é o motivo pelo qual o E. STF tem afirmado, reiteradamente, que são inconstitucionais leis estaduais que regulam aspectos de ordem geral associados à temática de transportes coletivos.

 

         A propósito, confira-se:

 

"Ação direta de inconstitucionalidade. L. Distrital 3.787, de 02 de fevereiro de 2006, que cria, no âmbito do Distrito Federal, o sistema de moto-service — transporte remunerado de passageiros com uso de motocicletas: inconstitucionalidade declarada por usurpação da competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte (CF, art. 22, XI). Precedentes: ADIn 2.606, Pl., Maurício Corrêa, DJ 7-2-03; ADIn 3.136, 1º-8-06, Lewandowski; ADIn 3.135, 1º-8-06, Gilmar." (ADI 3.679, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 18-6-07, DJ de 3-8-07)

 

“Lei do Estado do Pará. Serviço de transporte individual de passageiros prestado por meio de ciclomotores, motonetas e motocicletas. Competência privativa da União para legislar sobre trânsito e transporte (art. 22, XI, CF). Precedentes (ADI 2.606/SC).” (ADI 3.135, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 1º-8-06, DJ de 8-9-06). No mesmo sentido: ADI 3.136, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 1º-8-06, DJ de 10-11-06.

 

         E assim, mais que violar dispositivos da Constituição Federal, a lei em exame transgrediu o próprio princípio da repartição constitucional de competências, aplicável ao caso por força do art. 144 da Constituição do Estado.

 

         Entendimento diverso, com a devida vênia, significa contrariar o disposto nos art.21 XX, 22 XI, e 30 I, II e V da Constituição Federal, conferindo-lhes sentido diverso daquele que verdadeiramente ostentam, o que se afirma, desde já, para fins de pré-questionamento.

 

         Posto isso, o parecer é no sentido da procedência da presente ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 5.173, de 9 de maio de 2008.

 

São Paulo, 18 de agosto de 2008.

 

 

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA,

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça