Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo nº 164.818-0/0-00

Requerente: Prefeita do Município de Catiguá.

Objeto: Lei nº 2.227, de 14 de abril de 2008, do Município de Catiguá.

 

Ementa: Lei municipal, de iniciativa parlamentar, que restabelece regras sobre fundo de seguridade e obriga a Administração a restituir valores sacados em prazo certo e com correção monetária. Regras que criam despesas sem indicação da fonte de custeio e inviabilizam a escorreita execução do orçamento. Violação dos artigos art. 61, § 1º, inc. II, b, da Constituição Federal, e dos artigos 1º, 5º, 25, 144 e 176, I, da Constituição Estadual. Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

1) Relatório.

A Prefeita do Município de Catiguá/SP ajuizou ação direta de inconstitucionalidade tendo por objeto a Lei Municipal n.º 2.227, de 14 de abril de 2008 (reproduzida a fls. 22), que “revoga a Lei nº 2.186, de 8 de agosto de 2007, e dá outras providências”.

Sustenta a autora que a lei em análise decorre de projeto de Vereador e que, versando sobre a gestão financeira, interfere na atividade reservada ao Poder Executivo, inclusive gerando despesa sem indicação da receita correspondente. Aponta violação dos artigos 5º; 47, XI; 144; e 176, II e V, da Constituição Bandeirante.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 162).

O Presidente da Câmara Municipal, embora regularmente intimado (fls. 171), não se pronunciou em defesa da lei impugnada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 168/170).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

2) Fundamentação.

Deflui dos autos que o Município de Catiguá extinguiu seu regime próprio de previdência e sua unidade gestora (Fundo Municipal de Seguridade) pela Lei nº 2104/05, reproduzida a fls. 24.

Essa lei cuidou da gestão dos recursos remanescentes do Fundo, segundo a requerente, de modo a adequá-la às normas federais que tratam da Previdência Social.

É da inicial que a Lei nº 2104/05 foi alterada pelas leis 2182 e 2186/07, para evitar o endividamento do Município e para harmonizá-la à regulamentação da matéria elaborada pelo Ministério da Previdência e Assistência Social.

A norma acoimada de inconstitucional decorre de projeto de Vereador e, uma vez promulgada, restabeleceu as regras originárias da gestão do Fundo. E foi além, porque determinou que a Administração procedesse à devolução dos saques realizados com base nas leis de 2007, estabelecendo critérios para a correção dos valores monetários e prazo para o cumprimento dessa obrigação.

A tabela abaixo ilustra essa situação:

Lei nº 2104/05 – “dispõe sobre a extinção do Regime Próprio de Previdência e da sua unidade gestora denominada Fundo Municipal de Seguridade...”

Lei nº 2186/07 – “altera dispositivos da Lei nº 2104/05”

Lei nº 2227/08 – “revoga a Lei nº 2.186/07 e dá outras providências”

 

- LEI IMPUGNADA -

 A responsabilidade aludida no artigo anterior somente cessará quando da morte do último beneficiário ou de seu dependente (art. 4º, parágrafo único).

O saldo financeiro existente do Fundo Municipal de Seguridade, inclusive das parcelas vincendas, não poderão (sic), sob nenhuma hipótese, ser utilizados pelo Município, salvo para o pagamento de débitos de origem previdenciária, incluindo o pagamento de aposentadorias e pensões, concedidos ou a conceder, para ajustes com o Instituto Nacional de Seguridade Social, através do Sistema de Compensação Previdenciária, bem como contribuições previdenciárias (art. 4º, parágrafo único).

O saldo financeiro existente do Fundo Municipal de Seguridade, inclusive, das parcelas vincendas, não poderão, sob nenhuma hipótese, serem utilizados pelo Município, salvo para os ajustes com o Ministério da Previdência e Assistência Social, através do Sistema de Compensação Previdenciária, conforme dispõe a legislação pertinente (art. 4º, parágrafo único).

Esta conta mencionada neste artigo e seus rendimentos se prestarão para garantir a compensação previdenciária entre os regimes, RPPS e RGPS, e nem para nenhuma outra finalidade (art. 7º, § 1º).

Os valores financeiros referentes ao Fundo Municipal extinto de que trata este artigo e seus rendimentos se prestarão para débitos de origem previdenciária, incluindo o pagamento de aposentadorias, pensões, concedidas ou a conceder, compensação financeira entre fundos previdenciários e contribuições para o Instituto Nacional de Seguridade Social (art. 7º, § 1º).

Esta conta mencionada neste artigo e seus rendimentos se prestarão para garantir a compensação previdenciária entre os regimes, RPPS e RGPS, e nem para nenhuma outra finalidade (art. 7º, § 1º).

 

 

Os saques efetuados das contas do Fundo Municipal de Seguridade efetuados pelo Poder Executivo Municipal, amparados pela Lei Municipal nº 2186, de 8 de agosto de 2007, até a data da publicação desta Lei, deverão ser devolvidos pelo respectivo Poder, para a conta de origem até 31 de dezembro de 2008 (art. 4º da Lei impugnada).

 

 

Os valores a serem devolvidos, nos termos do “caput” deste artigo deverão ser corrigidos monetariamente e acrescidos da taxa de juros idêntica àquela paga pela instituição financeira onde estavam depositados, da data do saque até a data da efetiva devolução (art. 4º, parágrafo único, da Lei impugnada).

Os estreitos limites do controle de constitucionalidade não acolhem debate sobre que modo de gerir o fundo é mais conveniente ou qual dos modelos melhor se ajusta à normatização federal. Não serão feitas, destarte, considerações sobre eventual crise de legalidade.

A discussão ora proposta tem em vista tão-somente a inconstitucionalidade formal da lei em questão, pela violação do processo legislativo, aqui compreendido como o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis[1].

Esses atos são objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal para que se constituam em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes[2].

A iniciativa, como se sabe, é o ato que deflagra o processo legislativo. Pode ser geral ou reservada (ou privativa). No primeiro caso, vereador, Mesa, comissão da Câmara, prefeito ou a população podem titularizar o projeto. No segundo, há um único titular.

A lei impugnada originou-se de projeto de autoria do vereador, como se extrai dos autos, o que se constitui clara ofensa à Constituição, não por tratar de matéria previdenciária, mas por impor ao Poder Executivo a obrigação de restituir em prazo determinado valores sacados do Fundo pelas regras revogadas, sem a possibilidade de discutir se a restituição era mesmo devida.

É nítido, então, que a norma desafiada criou ônus para a Administração e gerou despesa sem indicação da fonte de custeio, com patente violação do art. 61, § 1º, inc. II, b, da Constituição Federal, de aplicação extensível aos municípios por força do art. 144 da mesma Carta Bandeirante, e do artigo 25 da mesma Constituição.

Divisa-se, também, a violação do artigo 176, I, da CE. Por esse último fundamento, aliás, esse E. Tribunal de Justiça já reconheceu a inconstitucionalidade de lei municipal concebida por Edil que autorizava “o Poder Executivo a efetuar o parcelamento de restituição de pagamento indevido efetuado pelo Fundo Municipal de Previdência dos Servidores Públicos do Município de Guairá”. Na ocasião se apurou que, ao criar a obrigação para o Poder Executivo, fixando, também, o modo e prazo de pagamento, foi-lhe cerceada a possibilidade de discutir a própria existência do débito ou a validade jurídica do citado benefício, comprometendo a atuação do Executivo na execução do orçamento. Colhe-se do voto do eminente Des. Mohamed Amaro a lição incontestável de que “na condição de agente político, o Prefeito possui atribuições político-administrativas, nas quais se incluem, entre outras, reconhecer e ordenar o pagamento dos débitos da fazenda pública. Destarte, cabe ao Chefe do Executivo Municipal a iniciativa legislativa[3].

Como se nota, invadiu-se claramente a seara da administração pública, da alçada exclusiva do Prefeito, violando-se a prerrogativa deste em analisar a conveniência e oportunidade das providências que a lei quis determinar. Bem por isso, a matéria somente poderia objeto de tramitação legislativa por proposta do próprio Chefe do Poder Executivo.

Ofendeu-se, igualmente, o princípio basilar da separação de poderes. Como já proclamou esse Sodalício:

 

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

 

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça”[4].

 

 

3) Conclusão.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal n.º 2.227, de 14 de abril de 2008, do Município de Catiguá/SP.

 

São Paulo, 30 de setembro de 2008.

 

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça

jesp



[1] Alexandre de Moraes. Direito Constitucional, 23ª. ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 641.

[2] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 675.

[3] ADin nº 125.030-0/9-00, de 13 jun. 2007.

[4] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748.