Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Processo nº 165.261-0/5

Requerente: Prefeito do Município de Cosmorama

Objeto: Lei Municipal nº 2.212, de 15 de fevereiro de 2008.

 

Lei municipal de autoria de Vereador que concede benefício a servidores e funcionários públicos, antecipando-lhes a aposentadoria, como prêmio por assiduidade. Matéria cuja iniciativa é privativa do Prefeito, diante do que dispõe o artigo 24, § 2º, incisos I e IV, da Constituição do Estado, aplicável aos municípios em obediência ao princípio da simetria. Iniciativa, ademais, que cria despesa sem indicação dos recursos disponíveis para fazer frente ao novo encargo. Vício que não se convalida pela natureza ‘autorizativa’ da lei impugnada, pois o Poder Executivo não necessita de autorização para aquilo que se contém no âmbito de sua competência. Afronta aos artigos 5.º; 24, § 2º, incisos 1 e 4; 47, incisos IV, XI e XVII, e 144, da Constituição do Estado de São Paulo. Inconstitucionalidade reconhecida.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

1) Relatório.

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Cosmorama, tendo por objeto a Lei Municipal nº 2.212, de 15 de fevereiro de 2008, que “autoriza o Poder Executivo a conceder benefício aos funcionários e servidores do município de Cosmorama”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu é de autoria de Vereador (Sr. Ivo Secco) e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Aponta violação ao princípio constitucional da separação dos Poderes e, especialmente, dos artigos 5º., 24, § 2º, inc. 4, e 25 da Constituição Paulista.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex tunc pelo eminente Des. Ribeiro dos Santos, relator, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 25/26).

O Presidente da Câmara Municipal, embora regularmente intimado, não se pronunciou em defesa da lei (fls. 41).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 38/40).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

2) Fundamentação.

A norma impugnada tem a seguinte redação:

Lei n.º 2.212, de 15 de fevereiro de 2008.

Autoriza o Poder Executivo a conceder benefício aos funcionários e servidores de Cosmorama.

O Ver. Alcides Pinto de Souza, Presidente da Câmara Municipal de Cosmorama, Comarca de Tanabi, Estado de São Paulo, no uso de suas atribuições legais, especialmente com fulcro no que dispõe o § 7º, do artigo 26, da Lei Orgânica do Município.

Faz saber eu a Câmara Municipal de Cosmorama aprovou e ele promulga a seguinte lei:

Art. 1º. – Fica o Poder Executivo autorizado a conceder aos funcionários e servidores do Município de Cosmorama que não faltarem ao serviço público durante o exercício de 1 (um) ano o direito de acrescentar 1 (um) mês em seu tempo de serviço para efeito de contagem da devida aposentadoria.

Parágrafo único – Nos demais casos serão concedidos à contagem para efeito do qüinqüênio e demais vantagens, sem prejuízo dos demais benefícios já estabelecidos em lei.

Art. 2º. – O Poder Executivo regulamentará por Decreto, no que couber no prazo de 30 (trinta) dias a contar da promulgação da presente lei eventuais normas atinentes para o fiel cumprimento da referida lei.

Art. 3º. – Esta lei entrará em vigor na data da sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Câmara Municipal de Cosmorama, aos 15 de fevereiro de 2008.

Alcides Pinto de Souza - Presidente da Câmara

Cuida-se, como se vê, de lei que trata de servidores públicos, regime jurídico e aposentadoria, cujo projeto foi de iniciativa de Vereador, com inequívoca afronta aos artigos 5.º; 24, § 2º, incisos 1 e 4; 47, incisos IV, XI e XVII, e 144, da Constituição do Estado de São Paulo, a seguir transcritos:

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição (...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

(...)

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, reforma e transferência de militares para a inatividade;

(...)

Art. 25 - Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Art. 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

I - representar o Estado nas suas relações jurídicas, políticas e administrativas;

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

IV - vetar projetos de lei, total ou parcialmente;

(...)

XI - iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Constituição;

(...)

XVII - enviar à Assembléia Legislativa projetos de lei relativos ao plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual, dívida pública e operações de crédito;

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

Com efeito, a disciplina normativa pertinente ao regime jurídico dos servidores públicos, incluindo a concessão de benefícios, é matéria que, em razão de sua essência, insere-se na esfera de exclusiva iniciativa do Chefe do Poder Executivo.

Esse entendimento tem o respaldo de maciça jurisprudência:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 6.065, DE 30 DE DEZEMBRO DE 1999, DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, QUE DÁ NOVA REDAÇÃO À LEI 4.861, DE 31 DE DEZEMBRO DE 1993. ART. 4º E TABELA X QUE ALTERAM OS VALORES DOS VENCIMENTOS DE CARGOS DO QUADRO PERMANENTE DO PESSOAL DA POLÍCIA CIVIL. INADMISSIBILIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL RECONHECIDA. OFENSA AO ART. 61, § 1º, II, A e C, da CF. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA SIMETRIA. ADI JULGADA PROCEDENTE. I - É da iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo lei de criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração, bem como que disponha sobre regime jurídico e provimento de cargos dos servidores públicos. II - Afronta, na espécie, ao disposto no art. 61, § 1º, II, a e c, da Constituição de 1988, o qual se aplica aos Estados-membros, em razão do princípio simetria. III - Ação julgada procedente” (STF, ADI 2.192-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 04-06-2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR N. 792, DO ESTADO DE SÃO PAULO. ATO NORMATIVO QUE ALTERA PRECEITO DO ESTATUTO DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS ESTADUAIS. OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO PROCESSO LEGISLATIVO ESTADUAL. PROJETO DE LEI VETADO PELO GOVERNADOR. DERRUBADA DE VETO. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. AFRONTA AO DISPOSTO NO ARTIGO 61, § 1º, II, C, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno [artigo 25, caput], impõe a observância obrigatória de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. Precedentes. 2. O ato impugnado versa sobre matéria concernente a servidores públicos estaduais, modifica o Estatuto dos Servidores e fixa prazo máximo para a concessão de adicional por tempo de serviço. 3. A proposição legislativa converteu-se em lei não obstante o veto aposto pelo Governador. O acréscimo legislativo consubstancia alteração no regime jurídico dos servidores estaduais. 4. Vício formal insanável, eis que configurada manifesta usurpação da competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo [artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘c’, da Constituição do Brasil]. Precedentes. 5. Ação direta julgada procedente para declarar inconstitucional a Lei Complementar n. 792, do Estado de São Paulo” (STF, ADI 3.167-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 18-06-2007, v.u., DJ 06-09-2007, p. 36).

Dessa orientação não destoa a doutrina:

As referidas matérias cuja discussão legislativa depende da iniciativa privativa do Presidente da República (CF, art. 61, § 1º) são de observância obrigatória pelos Estados-membros que, ao disciplinar o processo legislativo no âmbito das respectivas Constituições estaduais, não poderão afastar-se da disciplina constitucional federal.

Assim, por exemplo, a iniciativa reservada das leis que versem o regime jurídico dos servidores públicos revela-se, enquanto prerrogativa conferida pela Carta Política ao Chefe do Poder Executivo, projeção específica do princípio da separação dos poderes, incidindo em inconstitucionalidade formal a norma inscrita em Constituição do Estado que, subtraindo a disciplina da matéria ao domínio normativo da lei, dispõe sobre provimento de cargos que integram a estrutura jurídico-administrativa do Poder Executivo local[1].

Esse panorama conduz à ofensa ao princípio basilar da separação de poderes, pois, no abalizado dizer desse Sodalício:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

No caso dos autos, entretanto, existe outro fundamento, igualmente relevante, que, por si só, demandaria o reconhecimento da inconstitucionalidade.

A regra do art. 25 da Constituição do Estado, incidente por força do art. 144 da Carta Magna Bandeirante, é fortemente influenciada pela noção de responsabilidade fiscal. Exige ela que projeto de lei que implique criação ou aumento de despesa pública contenha a previsão dos recursos disponíveis para o atendimento dos novos encargos.

Na hipótese em análise é intuitivo que o benefício criado, antecipando a aposentadoria dos servidores públicos, gera despesas no plano do funcionalismo público municipal. E a lei não contém nenhum elemento indicador de sua provisão, do que decorre sua incompatibilidade com o texto constitucional.

Nem se alegue, por fim, que, tratando-se de lei autorizativa, o vício estaria superado. Deve-se atentar para o fato de que o Executivo não necessita de autorização para administrar e, no caso em análise, não a solicitou. 

Sérgio Resende de Barros, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina:

"...insistente na pratica legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa,  praticada cada vez mais exageradamente autorizativa  é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos  que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente"[2].

Bem por isso, não passou despercebido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que "a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo portanto inconstitucional" (ADIN n°593099377 – rel. Des. Maria Berenice Dias – j. 7/8/00).

Esse Órgão Especial também vem afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que as tais “autorizações” são eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.

VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Em suma, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça”[3].

3) Conclusão.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 2.212, de 15 de fevereiro de 2008.

São Paulo, 6 de outubro de 2008.

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça

jesp



[1] Alexandre de Moraes. Direito Constitucional. 23ª. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 646.

[2] Leis Autorizativas. Revista da Instituição Toledo de Ensino, agosto a novembro de 2000, Bauru, p. 262.

[3] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748.