Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo nº 165.549-0/00

Requerente: Prefeito do Município de Botucatu

Objeto: Lei Municipal nº 4.923, de 19 de maio de 2008, do Município de Botucatu

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

1) Relatório.

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Botucatu, tendo por objeto a Lei Municipal nº 4.923, de 19 de maio de 2008, que “estabelece diretrizes e incentivos fiscais para o desenvolvimento econômico do Município de Botucatu e dá outras providências”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal, com vício de iniciativa, pois a norma questionada cria obrigações administrativas e encargos financeiros para o Poder Executivo. A lei implicaria, ainda, em diminuição da receita, o que comprometeria o planejamento orçamentário a cargo da Administração (fls. 2/18).

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 67).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 80/83, em defesa da lei impugnada. Afirmou que a lei atribui ao Poder Executivo a faculdade de conceder ou não incentivos fiscais, prevendo critérios e prazos para essas concessões. Sustentou que, segundo o entendimento que prevaleceu na Casa de Leis, a matéria poderia ser veiculada em projeto de iniciativa concorrente.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 76/78).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

2) Fundamentação.

A lei questionada instituiu incentivos fiscais à indústria, ao comércio e ao prestador de serviços cuja “instalação, ampliação ou continuidade no Município seja julgado de excepcional interesse com relação ao desenvolvimento econômico e social da cidade” (art. 1º).

O artigo 2º estabelece os índices de redução, que variam de 50 a 100%, do IPTU, do ISQN e de determinadas taxas.

O artigo 3º relaciona os requisitos para a obtenção da benesse tributária (geração de novos empregos com absorção de mão-de-obra local, capacidade de atração de novas empresas, implantação de programas de qualidade, conservação de energia, etc).

O artigo 4º estende o incentivo fiscal às empresas que “possuírem características e peculiaridades específicas” (?), a critério da Secretaria Municipal da Indústria e Comércio.

O artigo 5º estabelece a forma do requerimento e comina à Secretaria Municipal da Indústria e Comércio as atividades de dar publicidade aos requerimentos formulados e de definir o calendário de reuniões do Conselho de Desenvolvimento Integrado de Botucatu.

O artigo 6º impõe ao Poder Executivo a responsabilidade pelo processo administrativo individual para a decisão dos requerimentos já mencionados.

O artigo 7º trata da manutenção e da revogação do benefício diante de alterações da razão social, atividade ou domicílio fiscal do contribuinte e das situações que explicita.

O artigo 8º indica que as despesas com a execução da lei correrão por conta de dotação orçamentária própria.

O artigo 9º, que é o último, diz que a lei entra em vigor na data da publicação.

Pois bem.

De forma majoritária, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo tem declarado a inconstitucionalidade de leis de iniciativa parlamentar que instituem incentivos fiscais.

Tem prevalecido o entendimento de que as normas da espécie, porque diminuem a receita, somente poderiam ser concebidas pelo Poder Executivo, que é o encarregado da execução do Orçamento[1].

Colhe-se, em recente Acórdão, a comprovação dessa assertiva:

“Este Órgão Especial, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 144.748.0/4-00, julgada em 12 de setembro de 2007, sendo relator o Des. MARCO CÉSAR, à unanimidade reconheceu a inconstitucionalidade por vício de iniciativa de lei tributária benéfica de Ribeirão Preto, que instituiu incentivo fiscal para apoio de projetos culturais. Também na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 135.071.0/3-00, julgada em 26 de setembro de 2007, sendo relator o Des. MOHAMED AMARO, contra os votos dos Des. ROBERTO VALLIM BELLOCCHI e IVAN SARTORI reconheceu a inconstitucionalidade por vício de iniciativa de lei que instituiu a isenção tributária aos portadores dede deficiência ou seus responsáveis, no Município de Jundiaí. E mais recentemente, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 148.312.4/0-00, julgada em 3 de outubro de 2007, sendo relator o des. MARCO CÉSAR, também contra os votos dos Des. ROBERTO VALLIM BELLOCCHI e IVAN SARTORI reconheceu a inconstitucionalidade por vício de iniciativa de lei que isentou do pagamento de taxas entidades beneficiadas pela imunidade”[2].

Essa orientação tem apoio em Carraza.

O autor, depois de anotar que a iniciativa das leis que criam e aumentam tributos é ampla, cabendo, portanto, a qualquer membro do Legislativo, ao chefe do Executivo, aos cidadãos etc., afirma que o raciocínio não vale para as leis benéficas, cuja iniciativa está reservada ao chefe do Executivo (Presidente, Governador, Prefeito). Leis benéficas, de acordo com sua lição, são aquelas que, quando aplicadas, acarretam diminuição de receita, como as que concedem isenções tributárias, parcelam débitos fiscais, aumentem prazos para o normal recolhimento de tributos, etc.[3]

Analisando esse tema, Cristiane Mendonça chegou à idêntica conclusão: é privativa do Chefe do Executivo a iniciativa de leis tributárias que resultam na diminuição das receitas.

Eis o seu raciocínio:

“... o tema da iniciativa privativa em matéria de criação de enunciados legais tributários não se esgota na interpretação do art. 61, § 1º, inc. II, “b”, da CRFB/88. Além do referido preceptivo, torna-se imprescindível descortinar as prescrições plantadas nos artigos 165 e 166 da Constituição Nacional na tentativa de averiguar se existem outras hipóteses em que foi atribuída ao Chefe do Executivo a missão de propulsionar o processo legislativo da lei tributária ‘stricto sensu’.

A atribuição de orçar e de equilibrar o binômio receitas/despesas foi entregue, pelo legislador constituinte originário, ao órgão executivo das pessoas políticas, sendo certo que as receitas tributárias revelam-se, nas palavras de Ricardo Lobo Torres, como ‘o mais importante dos itens da receita pública’.

(...)

Os incisos I, II e III do art. 165 não deixam dúvidas ao prescreverem que o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais serão estabelecidos por leis de iniciativa do Poder Executivo. O § 6º do artigo 165, por sua vez, exige que o projeto de lei orçamentária seja acompanhado de demonstrativo regionalizado de efeito, sobre receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia.

Na mesma linha de abordagem o art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101 de 04 de maio de 2000) estabelece que a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa de impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições: I – demonstração de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo da própria L.D.O.; II – estar acompanhada de medidas de compensação por meio de aumento de receita proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.

O § 1º do art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal consigna que a renúncia compreende a anistia, a remissão, o subsídio, o crédito presumido, a concessão de isenção em caráter não geral, a alteração de alíquota ou a modificação de base de cálculo que implique redução discriminada de tributos ou de contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado.

(...)

Analisando os parâmetros postos em nosso sistema constitucional e infraconstitucional relativamente à tributação e ao orçamento, na tentativa de construir uma interpretação sistemática, acompanhamos o entendimento esposado por Roque Antonio Carrazza no sentido de que a iniciativa de leis tributárias benéficas, que minorem os valores a serem recolhidos pelos sujeitos passivos da Njt, há que ser compreendida como privativa do Chefe do Executivo.

Tal postura implica na seguinte idéia: a competência legislativo-tributária afeta à alteração dos enunciados legais tributários que resultem na diminuição de receitas fiscais engloba, necessariamente, a iniciativa por parte do Chefe do Executivo. Nesta hipótese, o órgão executivo deverá figurar como sujeito ativo na NCLT ao lado do órgão legislativo, sob pena de vício de constitucionalidade dos dispositivos tributários criados.

Por esse fio de raciocínio é inevitável concluir que a norma de produção legislativo-tributária, ao encampar em seu conseqüente a autorização-permissão para as pessoas políticas alterarem as respectivas regras-padrão de incidência tributária, cristaliza também a iniciativa privativa do Chefe do Executivo, sempre que referida alteração resultar na diminuição dos montantes arrecadados”[4].

Desse modo, adotando-se a orientação dominante, não há como subsistir a lei questionada.

Nem se argumente que a lei possui mero caráter autorizativo. Deve-se notar que de seu texto emana comandos à Administração (como o de aprovar requerimentos, dar publicidade a certos atos, etc.) e efeitos mediatos na receita do Município (de outro modo, qual seria o sentido teria o art. 8º?). Nesse passo, cumpre lembrar que "a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo, portanto, inconstitucional", como afirmado pelo Tribunal do Rio Grande do Sul[5].

Tem-se entendido, também, que, dispondo a Administração Pública do poder discricionário, pelo qual se faz livre na escolha dos motivos de conveniência e oportunidade para a prática de certos atos, compete exclusivamente ao Chefe do Poder Executivo a instituição de programas, a celebração de convênios e a iniciativa legislativa para o estabelecimento de benefícios e incentivos fiscais.

Com esse fundamento e, por votação unânime, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça declarou a inconstitucionalidade de Lei Municipal que “autorizava” o Poder Executivo a conceder, por lei própria, benefícios e incentivos fiscais aos contribuintes que participassem de determinado programa. Reputou-se violado o artigo 5º da Constituição do Estado[6].

Mas não é só.

A norma em análise também impõe ônus à Administração, como o que determina à Secretaria Municipal da Indústria e Comércio, órgão do Poder Executivo, a obrigação de instaurar processos administrativos individuais para a aferição de requisitos pouco consistentes (art. 1º e 4º) para a concessão das benesses tributárias.

Sabe-se, entretanto, que somente ao Chefe do Poder Executivo assiste a iniciativa de leis que criem – como é o caso – obrigações e deveres para órgãos municipais (art. 47, inc. II da Constituição Estadual, de aplicação extensível aos municípios por força do art. 144 da mesma Carta), notando-se, na iniciativa da Edilidade, inequívoca invasão em seara alheia, violando-se a prerrogativa do Prefeito de analisar a conveniência e oportunidade das providências que a lei quis determinar.

Há, como se infere, nítida ofensa ao princípio da separação de poderes, pela qual também se justifica a procedência da ação:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

3) Conclusão.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 4.923/08, do Município de Botucatu.

São Paulo, 21 de agosto de 2008.

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça

 

/jesp



[1] A orientação contrária apóia-se no fato de que, em matéria tributária, a competência legislativa é concorrente (art. 61 da CF e art. 24 da CE). Desse modo, não haveria inconstitucionalidade por vício de iniciativa na lei que institui incentivo fiscal, pois a norma não estaria versando sobre matéria orçamentária, nem aumentando a despesa do Município.

[2] ADin nº 149.269-0/4-00, de 20 de fevereiro de 2008, r. Des. Boris Kauffmann.

[3] Roque Antonio Carrazza. Curso de Direito Constitucional Brasileiro. 23a ed , 2007, São Paulo: Malheiros Editores, p. 303-304.

[4] Cristiane Mendonça. Competência Tributária. São Paulo: Quartier Latin do Brasil, 2004, p. 213-316.

[5] ADin n°593099377 – rel. Des. Maria Berenice Dias – j. 7/8/00.

[6] ADin nº 014.654-0/1-00, de 24 de outubro de 2007, rel. Des. Walter Swensson.