Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Órgão Especial

Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 165.776-0/5-00

Requerente: Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado de São Paulo

Requerida: Câmara Municipal do Guarujá

 

 

 

“1. Ação direta de inconstitucionalidade. Lei municipal, de iniciativa parlamentar, que veda a circulação de veículo de transporte coletivo urbano quando houver acúmulo de função de motorista na condução e cobrança de tarifas e impõe multa para seu descumprimento.

2. É inadmissível o controle abstrato de constitucionalidade de lei municipal por contraste a dispositivos da Constituição Federal, da Lei Orgânica Municipal e de leis infraconstitucionais, pois, como é sabido, o único parâmetro cabível é a Constituição Estadual.

3. Inconstitucionalidade reconhecida em face da Constituição Estadual por violação ao princípio federativo (invasão da competência normativa federal) e ao princípio da separação de poderes que reserva a iniciativa legislativa da matéria ao Chefe do Poder Executivo, além da proibição da edição de atos normativos desprovidos da indicação da fonte de custeio”.

 

 

Egrégio Tribunal,

Colendo Órgão Especial,

Douto Relator:

 

 

 

 

1.           Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei n. 3.595, de 16 de abril de 2008, do Município do Guarujá, que veda a circulação de veículo de transporte coletivo urbano quando houver acúmulo de função de motorista na condução e cobrança de tarifas e impõe multa para seu descumprimento, alegando contrariedade ao art. 22, I e XI, da Constituição Federal, aos arts. 1º, 5º, 25, 47, XI e XVIII, 111, 117, 144, 176, I, da Constituição Estadual, aos arts.  78, 123, 126, 149, da Lei Orgânica Municipal, ao art. 65, II, d, §§ 5º e 6º, da Lei n. 8.666/93, e ao art. 9º, § 4º, da Lei n. 8.987/95 (fls. 02/33).

2.           Com liminar deferida (fl. 181) e informações da Câmara Municipal com preliminar de inépcia da petição inicial (fls. 201/210), a douta Procuradoria-Geral do Estado manifestou desinteresse no processo (fls. 190/192).

 

3.           A preliminar assacada pela Câmara Municipal de inépcia da petição inicial não merece amparo no tocante à falta de documentos indispensáveis à sua propositura porque a ação está instruída pelos documentos legalmente exigidos.

 

4.           Todavia, em parte a preliminar procede sem, no entanto, implicar extinção do processo sem resolução do mérito.

 

5.           Com efeito, é inadmissível o controle abstrato de constitucionalidade de lei municipal por contraste a dispositivos da Constituição Federal, da Lei Orgânica Municipal e de leis infraconstitucionais, pois, como é sabido, o único parâmetro cabível é a Constituição Estadual. Neste sentido:

“as ações diretas de inconstitucionalidade devem ater-se a contrastes com dispositivos constitucionais, não com normas de direito comum, independente de sua hierarquia. A violação de dispositivo de leis ordinárias, leis complementares e mesmo de preceitos inseridos em lei orgânica do município, não pode ser invocada em ação direta” (TJSP, ADI 46.911-0/4-00, Órgão Especial, Rel. Des. Franciulli Netto, v.u., 08-09-1999).

 

6.           Portanto, o pedido merece ser examinado somente por contraste da lei local impugnada com dispositivos da Constituição Estadual.

 

7.           A questão da inadequação da via eleita, decorrente dessa preliminar, está superada pelo alegado divórcio da lei local com os dispositivos da Constituição Estadual acima arrolados, pertencendo ao meritum causae a análise de sua efetiva violação ou não.

 

8.           O ato normativo impugnado nesta ação direta cria obrigações e fixa condutas para a Administração Municipal, interferindo em contratos administrativos de concessão ou atos unilaterais de permissão da execução do serviço público transferida a particular.

 

9.           Neste sentido, considerada a iniciativa parlamentar que culminou na edição do ato normativo em epígrafe, é visível que o Poder Legislativo municipal invadiu a esfera de atribuições do Chefe do Poder Executivo.

 

10.        Ao Poder Legislativo cabe a função de editar atos normativos de caráter geral e abstrato. Ao Executivo cabe o exercício da função de gestão administrativa, que envolve atos de planejamento, direção, organização e execução.

 

11.        Atos que, na prática, representam invasão da esfera executiva pelo legislador, devem ser invalidados em sede de controle concentrado de normas, na medida em que representam quebra do equilíbrio assentado nos arts.5º e 47, II e XIV, da Constituição do Estado de São Paulo, aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144.

 

12.        Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que:

“A Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante (...) todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2006, 15ª ed., pp. 708, 712, atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva).

 

13.        Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis de efeitos concretos, ou que equivalem, na prática, a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os Poderes. Essa é exatamente a hipótese verificada nos autos.

 

14.        Neste sentido, já proclamou esse Egrégio Tribunal que:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito”  (ADI n. 53.583-0, Rel. Des. Fonseca Tavares).

 

15.         E nesta linha, verificando a inconstitucionalidade por ruptura do princípio da separação de poderes e ao princípio federativo pela invasão da competência normativa federal, este egrégio Tribunal de Justiça vem declarando a inconstitucionalidade de leis similares, in verbis:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei Estadual nº 12.552/2006 – Vícios de iniciativa – Existência – Usurpação de atribuição pertinente a atividade própria do Chefe do Poder Executivo – Princípio da independência e harmonia entre os poderes – Violação – Jurisprudência do Colendo Supremo Tribunal Federal – Lei que, ademais, compromete o equilíbrio econômico-financeiro das concessões de serviço público – Afronta aos arts. 5º, 47, inciso XI e XVIII, e 120, todos da Constituição Estadual – Caracterização – Inconstitucionalidade declarada – Ação procedente” (TJSP, ADI 131.121-0/3, Órgão Especial, Rel. Des. Sousa Lima, v.u., 23-04-2008).

 

“INCONSTITUCIONALIDADE – ADIN – LEI MUNICIPAL 2.397 de 13 de Maio de 2003, do Município de PERUÍBE, LEI DE INICIATIVA DA CÂMARA MUNICIPAL QUE PROÍBE A IMPLEMENTAÇÃO DE CATRACAS ELETRÔNICAS NOS TRANSPORTES COLETIVOS URBANOS, SALVO SE PRESERVADA A PRESENÇA DO COBRADOR E PROÍBE O MOTORISTA DE ACUMULAR A FUNÇÃO DE COBRADOR – REGULAMENTAÇÃO QUE INVADE A RELAÇÃO EMPREGADOR E EMPREGADO, REGULANDO DIREITO DE TRABALHO – CRIAÇÃO INDEVIDA PELA CÂMARA MUNICIPAL – INVASÃO DE COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DA UNIÃO – AFRONTA A DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS ESTADUAIS – AÇÃO PROCEDENTE” (TJSP, ADI 154.742-0/5-00, Órgão Especial, Rel. Des. Oscarlino Moeller, v.u., 04-07-2008).

 

16.         Não bastasse a invasão da esfera normativa reservada à União, convém ponderar que, em verdade, a lei alcança aquilo que nos contratos administrativos se insere no complexo das normas regulamentares atinentes ao modo da prestação do serviço público, matéria que, por excelência, é de sujeição especial vinculada a ato administrativo individual e pertence ao domínio da discricionariedade da Administração Pública.

 

17.         Opino pela procedência da ação.

 

             São Paulo, 01 de setembro de 2008.

 

 

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça