AÇÃO   DIRETA  DE  INCONSTITUCIONALIDADE  N.º  166.608-0/7-00

Requerente   :    Prefeito do Município de São José do Rio Preto

Requerida     :    Câmara Municipal de São José do Rio Preto

Objeto           :    Lei n.º 9.926, de 27 de julho de 2007

 

 

Ementa: Lei municipal de iniciativa parlamentar que assegura aos munícipes o direito de apresentação de defesa prévia, para qualquer espécie de notificação expedida, precedendo todo auto de infração. Imposição de obrigação à Administração Pública. Criação de despesas sem indicar a fonte dos recursos. Matéria afeta à administração pública. Exclusividade de iniciativa do Prefeito Municipal. Inconstitucionalidade reconhecida.

 

 

Colendo Órgão Especial

Senhor Desembargador Relator

 

                                                         O Prefeito Municipal de São José do Rio Preto propôs a presente ação direta objetivando a declaração de inconstitucionalidade da Lei n.º 9.926, de 27 de junho de 2007, que assegura aos munícipes o direito de apresentação de defesa prévia, para qualquer espécie de notificação expedida, precedendo todo auto de infração (fls. 10/11). A liminar foi concedida (fl. 116) e a Câmara Municipal forneceu suas informações (fls. 130/166) e a D. Procuradoria-Geral do Estado não se manifestou sobre o mérito (fls. 5126/128). Ressalta-se que o projeto de lei foi vetado pelo Executivo, tendo sido rejeitado o veto aposto.

 

                                                         A ação deva ser julgada procedente, sendo inconstitucional a Lei n.º 9.926, de 27 de junho de 2007, do Município de São José do Rio Preto.

                                                                                   

                                                         Há que se aduzir que a Lei em questão é de iniciativa de vereador, tendo sido vetada pelo Executivo, mas tal veto foi rejeitado pela Edilidade.  Aduz o Alcaide que referido dispositivo é inconstitucional por contrariar a Constituição Federal, todavia vislumbramos afronta aos artigos 5.º, 25, 47 e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.  A dicção de tais dispositivos é a seguinte:

"Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 25 - Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Art. 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

I - representar o Estado nas suas relações jurídicas, políticas e administrativas;

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição."

 

                                                         A administração da cidade incumbe ao que, modernamente, chama-se de 'Governo', e que tem na lei seu mais relevante instrumento,[1] participando sempre o Poder Legislativo na função de aprovar-desaprovar os atos[2].  Na hipótese de administração ordinária, cabe ao Legislativo o estabelecimento de normas gerais, diretrizes globais, jamais atos pontuais e específicos.

 

                                                         Nada impedirá, assim, no quadro normativo constitucional, que o Legislativo elabore lei prevendo o andamento geral da Administração, desde que não invada ou crie atribuições a órgãos públicos ou determine como devem ser executados tais tarefas. Impor a obrigação de notificação antes de efetuar qualquer autuação, nitidamente impõe ao Executivo a maneira pela qual devem ser executadas suas atribuições e, além do mais, redundariam em despesas.

 

                                                         Hely Lopes Meirelles disserta sobre o assunto, no sentido por nós defendido:

“...a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça”[3]

 

                                                         Por outro lado, a função dos parlamentos, hoje, certamente, é diversa daquela imaginada pelos iluministas; é a lição dos nossos mais renomados autores:

“No presidencialismo, a separação entre presidente e Congresso permite que ocorra pertencer aquele a um partido, a maioria deste a outro, como tantas vezes já sucedeu nos Estados Unidos. Mas nor­malmente presidência e maioria parlamentar têm a mesma cor política, o que estabelece igual vinculação. Na hipótese primeira, ainda cumpre observar, a subordinação de certo modo ainda existe, criada pelos meios de ação que tem politicamente o governo sobre o Con­gresso, e, especialmente, pelas regras constitucionais restritivas da iniciativa parlamentar, por exemplo, em matéria financeira. Na verdade, a tendência contemporânea é a de restringir o Par­lamento a uma função de controle, fazendo dele o fiscal do governo. Volta ele assim para o ponto de partida, já que, na Idade Média, sur­giu como órgão de expressão dos desejos e particularmente dos re­clamos dos governados relativamente ao proceder do governo. De fato, essa tendência foi assinalada por vários autores, como Loewenstein, Meynaud etc., e em vários Estados diferentes. As­sim, por exemplo, a prática inglesa mostra o Parlamento reduzido a uma função de controle da atividade governamental, simplesmente ratificando decisões tomadas pelo Gabinete, ao mesmo tempo cúpu­la do partido majoritário, especialmente no campo normativo."[4]

 

                                                         Realmente, dentre as funções de governo do Prefeito estão as funções executivas que, no sentido estrito da expressão, compreendem o planejamento, a organização, a direção, o comando, a coordenação e o controle dos serviços públicos (cf. José Afonso da Silva, “O Prefeito e o Município”, 1977, págs. 134/143).

 

                                                         A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal está no sentido do que defendemos, verificada por ocasião da análise da inconstitucionalidade da Lei n.º 11.529/2000, do Estado do Rio Grande do Sul:

“Concluído o julgamento de medida liminar em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Governador do Estado do Rio Grande do Sul contra a Lei 11.529/2000, do mesmo Estado, que determina a unificação, através do número 190, da central de atendimento telefônico para emergências do Estado. O Tribunal, por maioria, deferiu a suspensão cautelar da norma impugnada por aparente ofensa ao art. 61, § 1º, II, e, da CF, que confere ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa privativa das leis que disponham sobre a criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da administração pública.” ADInMC 2.443-RS, rel. Min. Maurício Corrêa, 7.6.2001.(ADI-2443)

 

                                                            Em outro julgado, a mesma tese prevaleceu:

“AÇAO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.719-1                                     

PROCED.   : ESPÍRITO SANTO.

RELATOR : MIN. CARLOS VELLOSO

REQTE.   :    GOVERNADOR DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

ADVDOS.: PGE-ES-FLAVIO AUGUSTO CRUZ NOGUEIRA E OUTRO

REQDA.: ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

Decisão: O Tribunal, por unanimidade, julgou procedente  a ação para declarar a inconstitucionalidade da Lei n° 7.157, de 30 de abril de 2002, do Estado do Espírito Santo. Votou o Presidente. Ausentes, justificadamente, os Senhores Ministros Marco Aurélio, Presidente, e Moreira Alves, e, neste julgamento, o Senhor Ministro Nelson Jobim. Presidência do Senhor Ministro limar Galvão, VicePresidente. Plenário, 20.03.2003.

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. C.F, art. 61, § 1°, n, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002, do Espírito Santo.

I. - É de iniciativa do Chefe do Poder Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração pública: C.F, art. 61, § 1°, II, e, art. 84, II e VI.

II. - As regras do processo legislativo federal, especialmente as que dizem respeito à iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos Estados-membros.

III. - Precedentes do STF.

IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente.”

 

                                                         Assim sendo, e por entender que ao Legislativo não é dado prover sobre todos os assuntos por meio de lei[5], e somente poderá estabelecer normas gerais objetivando os valores maiores da Constituição, desde que não crie atribuições para órgãos públicos ou determinar o seu modo de execução, o parecer é pela procedência da ação, para que seja declarada inconstitucional a Lei n.º 9.926, de 27 de junho de 2007, do Município de São José do Rio Preto.

São Paulo, 20 de setembro de 2008.

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA,

no exercício de função delegada pelo

Procurador-Geral de Justiça



[1] Christian Starck.  'El Concepto de ley en la constitucion alemana', Madrid: CEC, 1979, pág.73.

[2] "...O poder governante é que goza, de fato (e talvez de direito) de uma estabilidade garantida, necessária para a tradução em atos de um 'indirizzo'. É, em geral, delegatária, também, de importantes porções da função legislativa. Ao legislativo, sua função torna-se aquela convalidar-confirmar solenemente o 'indiriz­zo politico' decidido pelo Poder Governante revestindo as medidas sob a forma de lei. O bloqueio - com voto negativo – ao 'indirizzo' do Po­der governante, ou a remoção formal deste ultimo - quando o regime o admite - deve ficar, pelas exigências do modelo, eventos absolutamente excepcionais. O Legislativo controla o Poder governante também com outros meios (investigações, comissões parlamentares etc). Provê as leis para a integração normativa das escolhas feitas no 'indirizzo governativo'." Giovanni Bognetti, 'In' 'Digesto Delle Discipline Pubblicistiche', p. 376, XI, UTET.

[3] MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 7.º ed., São Paulo: Malheiros, 1990, págs. 544/545.

[4] Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Do Processo Legislativo. São Paulo: Saraiva, 2001, pág. 271.

[5] Veja-se a redação do art. 84 da Constituição da República, na redação dada pela EC/32: "Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: I - nomear e exonerar os Ministros de Estado; II - exercer, com o auxilio dos Ministros de Estado, a direção superior da Administração federal; III - iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Cons­tituição; V - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; VI- vetar projetos de lei, total ou parcialmente; VII - dispor, mediante decreto, sobre: a) a organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos (...)"