Ação
Direta de Inconstitucionalidade
Autos
nº. 166.766-0/7-00
Requerente: Governador do Estado de São
Paulo
Requerido: Presidente da Câmara Municipal
de Dracena
Objeto: Lei Municipal nº. 3.481, de 20 de
julho de 2007, de Dracena.
Ementa: 1) Lei
municipal que dispõe sobre a necessidade de prévia aprovação, por referendo
popular, para instalação de quaisquer unidades prisionais, casa de detenção,
reformatórios de menores, presídios provisórios, centro de ressocialização e
similares, na zona urbana ou rural. 2) Proibição inviável ante a invasão de
competências legislativas. 3) Interesse peculiar que não tem a abrância pretendida
pelo município. 4) Diploma que não observa, ainda, a Constituição Federal. 5) Inconstitucionalidade reconhecida.
O
Excelentíssimo Senhor Governador do Estado propôs esta ação direta de
inconstitucionalidade, tendo por objeto a Lei Municipal nº. 3.481, de 20 de
julho de 2007, do Município de Dracena, que condiciona a instalação de
estabelecimentos prisionais de qualquer espécie, à aprovação em referendo
popular, por ofensa aos artigos 144 e 20, inc. XVIII, da Constituição Estadual.
Concedida
a liminar pleiteada (fl. 16), vieram as informações da Câmara Municipal de
Dracena (fls. 37/40) e do Prefeito Municipal de Dracena (fls. 42/43). A Câmara
defendeu o ato inquinado, dizendo ser da competência do Município legislar
sobre o tema, além de se tratar de seu peculiar interesse. Por fim, diz que não
há óbice intransponível à instalação dos estabelecimentos em questão, apenas um
condicionamento à vontade popular.
O
Prefeito Municipal, por sua vez, pede a procedência do pedido, reconhecendo-se
a inconstitucionalidade da lei.
O
Procurador Geral do Estado manifestou-se na forma o § 2º, do artigo 90 da
Constituição Estadual, reiterando os termos da exordial (fls. 29/30).
É
a síntese do necessário.
Efetivamente,
a Lei n° 3.481, de 20 de julho de 2007, de Dracena, é verticalmente
incompatível com a Constituição do Estado de São Paulo, em especial com seus
artigos 1°, 5°, 47, II e XIV, e 144.
Diretamente
relacionada com a adoção de regimes penitenciários, a lei de Dracena trata de
tema que é reservado à União e ao Estado pela Constituição Federal:
Art. 24. Compete à União, aos
Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
I – direito tributário,
financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico.
Sobre
a estrutura do Estado Federal, Reinhold Zippelius escreveu:
“O Estado Federal é pois também uma reunião
de Estados, mas organizada de tal maneira que o seu conjunto constitui
igualmente um Estado em si mesmo. Esse conjunto das respectivas competências
estatais no Estado Federal acha-se de tal modo distribuído entre os órgãos do
Estado Federal e os dos diferentes países que o constituem, que o problema da
hierarquia dessas competências fica sempre como que suspenso e
Diferentemente,
no particular, do federalismo alemão – que também inspirou os constituintes
pátrios –, em que a ordem federal central edita leis sobre quase todos os
temas, mas quem as executa são os estados, no Brasil quem executa as leis
advindas da competência legislativa privativa é, em regra, o próprio ente que a
detém.
Não
pode utilizar-se o Município da competência do art. 30 da Constituição da
República, que menciona o “interesse local”, ausente neste caso:
Art. 30. Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de
interesse local;
II – suplementar a legislação
federal e a estadual no que couber (...)
É
que, como ensina com a habitual autoridade Hely Lopes Meirelles, o tema assim deve
ser tratado:
“estabelecida
essa premissa é que se deve partir em busca dos assuntos da competência
municipal, a fim de selecionar os que são e os que não são de seu interesse local,
isto é, aqueles que predominantemente interessam à atividade local. Seria
fastidiosa – e inútil, por incompleta – a apresentação de um elenco casuístico
de assuntos de interesse local, do Município, porque a atividade municipal,
embora restrita ao território da Comuna, é multifária nos seus aspectos e
variável na sua apresentação, em cada localidade. Acresce, ainda, notar a
existência de matérias que se sujeitam, simultaneamente, à regulamentação pelas
três ordens estatais, dada sua repercussão no âmbito federal, estadual e
municipal. Exemplos típicos dessa categoria são o trânsito e a saúde pública,
sobre os quais dispõem a União (regras gerais: Código Nacional de Trânsito,
Código Nacional de Saúde Pública), os Estados (regulamentação: Regulamento Geral
de Trânsito, Código Sanitário Estadual), e o Município (serviços locais:
estacionamento, circulação, sinalização etc.; regulamentos, sanitários
municipais). Isso porque sobre cada faceta do assunto há um interesse
predominante de uma das três entidades governamentais. Quando essa
predominância toca ao Município, a ele cabe regulamentar a matéria, como
assunto de seu interesse local. Dentre os assuntos vedados ao Município, por
não se enquadrarem no conceito de interesse local, é de se assinalar, a titulo exemplificativo,
a atividade jurídica, a segurança nacional, o serviço postal, a energia em
geral, a informática, o sistema, monetário, as telecomunicações e outros mais,
que, por sua própria natureza e fins, transcendem o âmbito local”.[2]
Seria
mesmo possível que os autores da Constituição do Estado, no exercício do Poder
Constituinte Decorrente, repetissem, enfadonhamente, as normas de reprodução
obrigatória da Constituição da República. Preferiram, contudo – acertadamente –,
a fórmula sintética do artigo 144, determinando, como não poderia deixar de
ser, que os princípios estabelecidos na Constituição Federal (somente
princípios, não regras) devessem ser observados obrigatoriamente pelos
Municípios. Não foi outra a saída encontrada pelos Constituintes nacionais, por
exemplo com o artigo 25 da Constituição da República, a determinar que os
Estados se organizem segundo os princípios da Constituição da República, sem
explicitá-los, também enfadonhamente. Assim:
Art. 25. Os. Estados,
organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os
princípios desta Constituição.
Há
nítida correspondência entre este dispositivo e o artigo 144 da Constituição do
Estado de São Paulo:
Art. 144. Os
Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se
auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na
Constituição Federal e nesta Constituição.
Não
era necessário que se repetissem, um a um, na Constituição da República, os
princípios a serem observados pelos constituintes dos estados. Sabe-se que o
princípio federativo, adotado no artigo 1° da Constituição do Estado de São
Paulo, é, a rigor, um grande sistema de repartição de competências, sendo esta
a chave da estrutura do poder federal ou a grande questão do federalismo.
A
doutrina já resolveu a questão dos princípios que os Estados devem observar (o
que obviamente se aplica aos Municípios, já agora por força do art. 144 da
Constituição do Estado). Ao comentar sobre o conteúdo do artigo 25 da Constituição
da República, a direcionar as competências dos Estados (como o artigo 144 da
Constituição do Estado condiciona as competências dos Municípios), Manoel Gonçalves
Ferreira Filho se refere à existência das “regras de preordenação institucional”,
“regras de extensão normativa” e “regras de subordinação normativa”, inseridas
na Constituição da República, vinculantes para os demais entes políticos,
nestes termos: “ainda cerceiam a autonomia dos Estados regras de subordinação
normativa. São estas as que, presentes na própria Constituição Federal e
direcionadas por ela a todos os entes federativos (União, Estados, Municípios),
predefinem o conteúdo da legislação que será editada por eles. E isto, ou
orientando positivamente tal conteúdo (mandando que sigam determinada linha),
ou negativamente (proibindo que adote certas normas ou soluções).”[3]
Claro
que a simples falta de repetição explícita dos princípios da Constituição da
República não significa que os Municípios fiquem livres para – então em uma
curiosa situação – dispor de mais poderes constituintes que o Estado (já que não
se discute que, quanto a este, seu Poder Constituinte Decorrente é limitado).
Trata-se o
artigo 144 da Constituição do Estado de norma de repetição obrigatória, vale
dizer,
“as normas centrais da Constituição Federal,
tenham elas natureza de princípios constitucionais, de princípios estabelecidos
ou de normas de preordenação, afetam a liberdade criadora do Poder Constituinte
Estadual e acentuam o caráter derivado desse poder. Como conseqüência da subordinação
à Constituição Federal, que é a matriz do ordenamento jurídico parcial dos
Estados-membros, a atividade do constituinte estadual se exaure, em grande
parte, na elaboração de normas de reprodução, mediante as quais faz o transporte
da Constituição Federal para a Constituição do Estado das normas centrais,
especialmente as situadas no campo das normas de preordenação. A tarefa do
constituinte limita-se a inserir aquelas normas no ordenamento constitucional
do estado, por um processo de transplantação. A norma de reprodução não é, para
os fins da autonomia do Estado-membro, simples norma de imitação,
freqüentemente encontrada na elaboração constitucional. As normas de imitação
exprimem a cópia de técnicas ou de institutos, por influência da sugestão
exercida pelo modelo superior. As normas de reprodução decorrem do caráter
compulsório da norma constitucional superior, enquanto a norma de imitação
traduz a adesão voluntária do constituinte a uma determinada disposição
constitucional”.[4]
Enfim,
a repartição de competências é a “chave de abóbada” do sistema federal;
conspurcada aquela se conspurca este. É o que ocorre no caso dos autos, com a
violação, pelo Município, de princípios constitucionais sensíveis: a restrição
imposta pelo Município de Dracena, ao dizer respeito à própria política
penitenciária, encontra obstáculo em competência constitucional da União e dos
Estados-membros.
Há ainda a
considerar que a lei em questão – derivada de projeto de iniciativa parlamentar
(fl. 42) – interfere no exercício de atividade tipicamente executiva Prefeito,
ao criar restrições ao uso do território e próprio municipal. Assim, a par dos
preceitos constitucionais já indicados, vê-se também a nítida violação do
princípio da independência e harmonia entre os Poderes, consagrado no artigo 5°
da Constituição Paulista, e em outros termos no artigo 47, incisos II e XIV, da
mesma Carta Política.
Por essas
razões, na esteira de remansosa jurisprudência deste Egrégio Tribunal, o
parecer é pela procedência do pedido, declarando-se a inconstitucionalidade da
Lei Municipal nº. 3.481, de 20 de julho de 2007, do Município de Dracena.
São Paulo, 5 de novembro
de 2008.
MAURÍCIO AUGUSTO GOMES
PROCURADOR DE JUSTIÇA,
no exercício de função delegada pelo
Procurador-Geral de Justiça
[1] apud BASTOS, Celso e MARTINS, Ives
Gandra da Silva. Comentários à
Constituição do Brasil, São Paulo: Saraiva, 3° vol., tomo I, p. 107.
[2] MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 12ª. ed.
São Paulo: Malheiros, pág. 135.
[3] FERREIRA
FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à
Constituição Brasileira de 1988, São Paulo: Saraiva, 1997, vol. I, p. 197.
[4]
HORTA, Raul Machado. Poder Constituinte
do estado-membro, RDP 88/5.