Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo nº 167.244-0/2-00

Requerente: Prefeito Municipal de Ribeirão Preto

Objeto: Lei Complementar nº 1.725, do Município de Ribeirão Preto

 

Ementa: Lei Complementar nº 1.725, do Município de Ribeirão Preto, que inclui o cargo de “cozinheira” no quadro do Magistério Público Municipal. Projeto de iniciativa de Vereador. Impossibilidade. Compete ao Chefe do Executivo a iniciativa de leis que disponham sobre servidores públicos e sua organização em carreira na Administração Pública. Violação aos artigos 5º.; 24, § 2º; 1 e 4; 25 e 144 da Constituição Estadual. Parecer pela declaração de inconstitucionalidade.

 

           

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

1) Relatório.

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Ribeirão Preto, tendo por objeto a Lei Complementar n.º 1.725, de 1º de setembro de 2004, reproduzida a fls. 27, que “dá nova redação ao art. 1º da Lei Complementar nº 1.645, de 29 de março de 2004 (integra no quadro do Magistério cargos de provimento efetivo) conforme especifica”.

Sustenta o autor que a lei em análise dispõe sobre regime jurídico de servidores públicos e transposição de cargos. Diz que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo, ao se divisar o vício de iniciativa. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal. Apontou ofensa aos artigos 5º.; 24, § 2º; inc. 1 e 4; 25 e 144 da Constituição Estadual.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 37).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 50/86, em defesa da lei impugnada. Afirmou que a norma concebida por Edil atende ao interesse local, está de acordo com a Lei Orgânica e visou à correção de injustiça, pela inclusão dos cargos de cozinheira de creche no quadro do Magistério Público Municipal, eis que tais profissionais também são responsáveis pelo “digno desenvolvimento escolar” e “já possuem respaldo legal para o recebimento deste benefício”.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 45/47).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

2) Fundamentação.

A Lei em análise alterou a redação do artigo 1º. da Lei Complementar nº 1.645/04, que trata do quadro do Magistério Público Municipal.

Na sua redação original, o dispositivo dizia o seguinte:

Artigo 1º. – Os cargos de provimento efetivo, exercidos por funcionários públicos municipais nas funções de: “Inspetor de Aluno”, “Auxiliar de Serviços”, “Agente de Ação Comunitária”, “Atendente Infantil”, que estejam exercendo suas funções até a data da publicação da presente lei, nas creches da Secretaria Municipal da Educação, passam a integrar o “Quadro do Magistério Público Municipal”, organizado pela Lei Complementar nº 315/94, nos termos do artigo 6º, alínea “g” (Educador de Creche).

Com a promulgação da lei vergastada, esse dispositivo passou a ter a seguinte redação:

Artigo 1º. – Os cargos de provimento efetivo, exercidos por funcionários públicos municipais nas funções de: “Inspetor de Aluno”, “Auxiliar de Serviços”, “Agente de Ação Comunitária”, “Atendente Infantil” e “Cozinheira”, que estejam exercendo suas funções até a data da publicação da presente lei, nas creches da Secretaria Municipal da Educação, passam a integrar o “Quadro do Magistério Público Municipal”, organizado pela Lei Complementar nº 315/94, nos termos do artigo 6º, alínea “g” (Educador de Creche).

Em que pesem os louváveis propósitos da Câmara Municipal, é forçoso convir que a lei em foco trata de servidores públicos e de sua organização em carreira na Administração Pública, matérias cuja iniciativa de lei está reservada ao Prefeito.

Com projeto nascido no Poder Legislativo, a norma concretizada é formalmente inconstitucional, afrontando aos artigos 5.º; 24, § 2º, incisos 1 e 4; 47, incisos IV, XI e XVII, e 144, da Constituição do Estado de São Paulo, abaixo transcritos:

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição (...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

(...)

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, reforma e transferência de militares para a inatividade;

(...)

Art. 25 - Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Art. 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

I - representar o Estado nas suas relações jurídicas, políticas e administrativas;

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

IV - vetar projetos de lei, total ou parcialmente;

(...)

XI - iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Constituição;

(...)

XVII - enviar à Assembléia Legislativa projetos de lei relativos ao plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual, dívida pública e operações de crédito;

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

Com efeito, a disciplina normativa pertinente aos servidores públicos e sua organização em carreiras é matéria que, em razão de sua essência, insere-se na esfera de exclusiva iniciativa do Chefe do Poder Executivo.

Esse entendimento tem o respaldo de maciça jurisprudência:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 6.065, DE 30 DE DEZEMBRO DE 1999, DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, QUE DÁ NOVA REDAÇÃO À LEI 4.861, DE 31 DE DEZEMBRO DE 1993. ART. 4º E TABELA X QUE ALTERAM OS VALORES DOS VENCIMENTOS DE CARGOS DO QUADRO PERMANENTE DO PESSOAL DA POLÍCIA CIVIL. INADMISSIBILIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL RECONHECIDA. OFENSA AO ART. 61, § 1º, II, A e C, da CF. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA SIMETRIA. ADI JULGADA PROCEDENTE. I - É da iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo lei de criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração, bem como que disponha sobre regime jurídico e provimento de cargos dos servidores públicos. II - Afronta, na espécie, ao disposto no art. 61, § 1º, II, a e c, da Constituição de 1988, o qual se aplica aos Estados-membros, em razão do princípio simetria. III - Ação julgada procedente” (STF, ADI 2.192-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 04-06-2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR N. 792, DO ESTADO DE SÃO PAULO. ATO NORMATIVO QUE ALTERA PRECEITO DO ESTATUTO DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS ESTADUAIS. OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO PROCESSO LEGISLATIVO ESTADUAL. PROJETO DE LEI VETADO PELO GOVERNADOR. DERRUBADA DE VETO. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. AFRONTA AO DISPOSTO NO ARTIGO 61, § 1º, II, C, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno [artigo 25, caput], impõe a observância obrigatória de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. Precedentes. 2. O ato impugnado versa sobre matéria concernente a servidores públicos estaduais, modifica o Estatuto dos Servidores e fixa prazo máximo para a concessão de adicional por tempo de serviço. 3. A proposição legislativa converteu-se em lei não obstante o veto aposto pelo Governador. O acréscimo legislativo consubstancia alteração no regime jurídico dos servidores estaduais. 4. Vício formal insanável, eis que configurada manifesta usurpação da competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo [artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘c’, da Constituição do Brasil]. Precedentes. 5. Ação direta julgada procedente para declarar inconstitucional a Lei Complementar n. 792, do Estado de São Paulo” (STF, ADI 3.167-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 18-06-2007, v.u., DJ 06-09-2007, p. 36).

Dessa orientação não destoa a doutrina:

As referidas matérias cuja discussão legislativa depende da iniciativa privativa do Presidente da República (CF, art. 61, § 1º) são de observância obrigatória pelos Estados-membros que, ao disciplinar o processo legislativo no âmbito das respectivas Constituições estaduais, não poderão afastar-se da disciplina constitucional federal.

Assim, por exemplo, a iniciativa reservada das leis que versem o regime jurídico dos servidores públicos revela-se, enquanto prerrogativa conferida pela Carta Política ao Chefe do Poder Executivo, projeção específica do princípio da separação dos poderes, incidindo em inconstitucionalidade formal a norma inscrita em Constituição do Estado que, subtraindo a disciplina da matéria ao domínio normativo da lei, dispõe sobre provimento de cargos que integram a estrutura jurídico-administrativa do Poder Executivo local[1].

Esse panorama conduz à ofensa ao princípio basilar da separação de poderes, pois, no abalizado dizer desse Sodalício:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

Desse modo, é de se declarar a inconstitucionalidade da norma questionada, pois, “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça”[2].

3) Conclusão.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Complementar n.º 1.725, de 1º de setembro de 2004.

São Paulo, 31 de outubro de 2008.

 

 

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça

jesp



[1] Alexandre de Moraes. Direito Constitucional. 23ª. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 646.

[2] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748.