Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo nº 167.964-0/8-00

Requerente: Prefeito do Município de Catanduva

Objeto: artigo 2º. da Lei Complementar nº 442, de 2 de junho de 2008, do Município de Catanduva.

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade promovida por Prefeito, tendo por objeto o artigo 2º. da Lei Complementar nº 442, de 2 de junho de 2008, do Município de Catanduva, que define faixas de domínio das estradas vicinais. Dispositivo cuja redação deriva de emenda parlamentar em matéria da competência privativa do Poder Executivo. Poder de emenda que é legítimo e que sofre as restrições “numerus clausus” da Constituição da República. Atuação da Câmara Municipal que, sem descaracterizar o projeto original, adequou a sua redação. Parecer pela improcedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

1) Relatório.

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Catanduva, tendo por objeto o artigo 2º. da Lei Complementar nº 442, de 2 de junho de 2008, do referido município.

Sustenta o autor que o dispositivo impugnado define a faixa de domínio das estradas municipais e que, tendo sido concebido por Vereador, não deve subsistir diante dos artigos 5º. e 144 da Constituição do Estado.

O pedido de suspensão liminar da vigência e eficácia do dispositivo foi indeferido pelo r. Despacho de fls. 16/18.

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 34 e ss., em defesa da norma impugnada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 30/32).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

2) Fundamentação.

O processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes[1].

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República[2], conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo, difuso ou concentrado, por parte do Poder Judiciário.

A iniciativa é o ato que deflagra o processo legislativo. Pode ser geral ou reservada (ou privativa). No primeiro caso, vereador, Mesa, comissão da Câmara, prefeito ou a população podem titularizar o projeto. No segundo, há um único titular.

A matéria de que trata a lei – uso do solo urbano – é daquelas cuja iniciativa cabe ao Prefeito[3].

No caso dos autos, ao contrário do que sugere a inicial, a Lei Complementar nº 442/08, que “dispõe sobre o ordenamento do uso do solo das faixas de domínio e lindeiras das estradas vicinais do município”, decorre de projeto do Poder Executivo (fls. 40/45).

Diante disso, é forçoso entender que o Alcaide se insurge, tão-somente, contra a emenda originária da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara Municipal que conferiu nova redação ao dispositivo questionado (fls. 48).

Com efeito, o artigo 2º. tinha a seguinte redação no projeto encaminhado pelo Poder Executivo à Edilidade:

Art. 2º. – Considera-se faixa de domínio, para os efeitos desta Lei Complementar, conjunto de áreas declaradas de utilidade públicas, desapropriadas ou ocupadas para implantação de estrada vicinal, constituída de pista de rolamento, acostamento, área de drenagem ou segurança e obras de arte.

Com a emenda, afinal aprovada, esse dispositivo ficou assim:

Art. 2º. – Considera-se faixa de domínio, para os efeitos desta Lei Complementar, conjunto de áreas declaradas de utilidade públicas, desapropriadas ou ocupadas para implantação de estrada vicinal, constituída de pista de rolamento, acostamento, área de drenagem ou segurança e obras de arte, tendo seu início após os limites do perímetro urbano e o seu término nos limites da divisa do Município.

Resume-se a questão, portanto, em saber se, no caso dos autos, o Poder Legislativo usurpou a competência do Prefeito ao emendar o projeto.

Pensamos que não.

Sabe-se que uma vez apresentado o projeto pelo Chefe do Poder Executivo está exaurida a sua atuação. Abre-se o caminho, em seguida, para fase constitutiva da lei, que se caracteriza pela discussão e votação públicas da matéria.

Nessa fase se sobressai o poder de emendar.

O poder de emendar é reconhecido pela doutrina tradicional e está reservado aos parlamentares enquanto membros do Poder incumbido de estabelecer o direito novo.

O Supremo Tribunal Federal o considera como prerrogativa dos parlamentares, como se intui do seguinte julgado:

“O exercício do poder de emenda, pelos membros do parlamento, qualifica-se como prerrogativa inerente à função legislativa do Estado - O poder de emendar - que não constitui derivação do poder de iniciar o processo de formação das leis - qualifica-se como prerrogativa deferida aos parlamentares, que se sujeitam, no entanto, quanto ao seu exercício, às restrições impostas, em "numerus clausus", pela Constituição Federal. - A Constituição Federal de 1988, prestigiando o exercício da função parlamentar, afastou muitas das restrições que incidiam, especificamente, no regime constitucional anterior, sobre o poder de emenda reconhecido aos membros do Legislativo. O legislador constituinte, ao assim proceder, certamente pretendeu repudiar a concepção regalista de Estado (RTJ 32/143 - RTJ 33/107 - RTJ 34/6 - RTJ 40/348), que suprimiria, caso prevalecesse, o poder de emenda dos membros do Legislativo. - Revela-se plenamente legítimo, desse modo, o exercício do poder de emenda pelos parlamentares, mesmo quando se tratar de projetos de lei sujeitos à reserva de iniciativa de outros órgãos e Poderes do Estado, incidindo, no entanto, sobre essa prerrogativa parlamentar - que é inerente à atividade legislativa -, as restrições decorrentes do próprio texto constitucional (CF, art. 63, I e II), bem assim aquela fundada na exigência de que as emendas de iniciativa parlamentar sempre guardem relação de pertinência com o objeto da proposição legislativa” (STF, Pleno, ADI nº 973-7/AP – medida cautelar. Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19 dez. 2006, p. 34 –g.n.).

A limitação ao poder de emendar projetos de lei de iniciativa reservada do Poder Executivo existe no sentido de evitar: (a) aumento de despesa não prevista, inicialmente; ou então (b) a desfiguração da proposta inicial, seja pela inclusão de regra que com ela não guarde pertinência temática; seja ainda pela alteração extrema do texto originário, que rende ensejo a regulação praticamente e substancialmente distinta da proposta original.

Fora dessas situações, admitem-se emendas das seguintes espécies: (a) supressivas (que extirpam parte da proposição original), (b) aditivas (que acrescentam algo ao texto apresentado), (c) modificativas (que alteram a proposição sem violar sua essência), (d) substitutivas (que alteram formal ou materialmente o projeto e são analisadas como sucedâneo de outra proposição) e (e) de redação (destinadas à adequação da técnica legislativa).

Na hipótese em análise, estamos diante de emenda de redação. Resisto à idéia de compreendê-la como modificativa porque faixas de domínio de estradas vicinais situam-se, efetivamente, fora da zona urbana.

As estradas vicinais são, no dizer de Hely Lopes Meirelles, as vias de comunicação da cidade e vilas com a zona rural, sendo elas da alçada exclusiva do Município[4].

O Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97) define, em seu Anexo I – Dos conceitos e definições, as FAIXAS DE DOMÍNIO como sendo a “superfície lindeira às vias rurais, delimitada por lei específica e sob responsabilidade do órgão ou entidade de trânsito competente com circunscrição sobre a via”.

Parece-nos, assim, que a Edilidade, diante do projeto, nada mais fez do que aprimorar a redação do art. 2º., ora questionado, para que não houvesse dúvida de que a faixa de domínio situa-se na área rural, ou, nos termos da lei aprovada, “após os limites do perímetro urbano” e até os “limites da divisa do Município”.

Note-se que não se alteraram no âmbito da Câmara Legislativa a largura da faixa de domínio (art. 3º.), as regras estabelecidas para alargamento, colocação de pontos de ônibus (art. 4º.), as disposições relativas à instalação de obstáculos (art. 5º.), nem os ônus impostos aos proprietários dos imóveis lindeiros (art. 6º. e 7º.).

Como se constata, a emenda não comprometeu a essência do projeto.

Em suma, sendo cabíveis emendas em projeto de iniciativa reservada ao Poder Executivo e, diante da constatação de que o dispositivo questionado, com a redação que lhe deu a emenda parlamentar, não descaracterizou o projeto, não se divisa a alegada inconstitucionalidade.

3) Conclusão.

Diante do exposto, o parecer é pela improcedência desta ação direta de inconstitucionalidade.

São Paulo, 11 de novembro de 2008.

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça

jesp



[1] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 675.

[2] Alexandre de Moraes. Direito Constitucional, 23ª. ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 641.

[3] “Nesse passo, deve-se observar que, se a Constituição do Estado impôs o ‘estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano’ (artigo 180, caput), a elaboração de ‘planos, programas e projetos’ em matéria urbanística (artigo 180, inciso II), bem como a subordinação da legislação municipal respectiva as diretrizes do plano diretor e, como visto, dos planos parciais que o plano geral devia conter, a conseqüência inafastável é a de que é mesmo do Poder Executivo a iniciativa do processo legislativo, sempre que a matéria reservada à lei seja de tal natureza que reclame a feitura de planos prévios” (trecho do v. Acórdão da ADI nº 66.667-0/6, rel. Dante Busana, j. 12.9.01)

[4] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro. 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 459.