Autos n. 168.145-0/8-00
Autor: Prefeito do Município de Louveira
Objeto de
impugnação: Art. 102, da
Lei Orgânica do Município de Louveira, cuja redação foi dada pela Emenda n.
009/2004
Ementa: 1)
Art. 102 da Lei Orgânica do Município de Louveira. Dispositivo que trata de
hipótese de afastamento do Prefeito, em caso de infrações penais comuns, se
recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Poder Judiciário e nos crimes de responsabilidade, se recebida a
denúncia pela Câmara Municipal, por dois terços de seus membros. 2) Matéria
afeta à competência privativa da União (art.22, inciso I, e 85 parágrafo
único, da CF/88). Regra da repartição constitucional de competências
associada diretamente ao princípio federativo (art.1º e art.18 da CF/88).
Princípios de observância obrigatória pelos Estados e Municípios (art.1º e
144 da Constituição do Estado de São Paulo). 3)Inconstitucionalidade constatada. |
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Relator
Colendo
Órgão Especial
O Prefeito Municipal de Louveira ajuizou a
presente ação direta para sindicar o art. 102, da Lei Orgânica do Município de
Louveira, cuja redação foi dada pela
Emenda n. 009/2004.
Oportuna
a transcrição do dispositivo legal impugnado, que se encontra na Subseção VII,
que define a Responsabilidade do Prefeito:
Artigo 102 –O Prefeito, em razão de seus
atos, contravenções penais, crimes comuns e crimes de responsabilidade, será
processado, julgado e apenado em processos independentes.
§1º - O Prefeito ficará suspenso de suas
funções:
I- nas infrações penais comuns, se recebida a
denúncia ou queixa pelo Poder Judiciário;
II- nos crimes de responsabilidade, se
recebida a denúncia pela Câmara Municipal, por dois terços de seus membros, nos
termos da Constituição da República pelo critério da simetria.
§2º - Nas infrações penais comuns, cessará o
afastamento do Prefeito, sem prejuízo de regular prosseguimento do processo
quando o julgamento não estiver concluído no prazo de cento e oitenta dias.
Por força de decisão interlocutória, o Nobre
Desembargador Relator, Dr. JARBAS MAZZONI, a fls. 127 vº, deferiu a liminar
pleiteada pelo autor, determinando a suspensão da eficácia do questionado
dispositivo legal.
Notificada, a Câmara Municipal prestou informações
nos termos regimentais (fls. 140/146), argüindo em preliminar a inépcia da
inicial e a carência da ação por falta do preenchimento dos requisitos legais.
No mérito, defendeu a constitucionalidade
do ato normativo.
Citado
para os fins do § 2.º do art. 90 da Constituição Paulista, o Procurador Geral
do Estado defendeu a exegese que condiciona a sua intervenção nos processos de
fiscalização abstrata à existência de interesse estadual na preservação do
texto normativo impugnado, ausente neste caso (fls. 135/137).
É
o breve relato.
As preliminares argüidas não merecem ser
acolhidas.
Suscita a Câmara Municipal de Louveira a
preliminar de inépcia da inicial, sob o fundamento de impossibilidade jurídica
do pedido, bem como, a carência da ação por falta de preenchimento dos
requisitos legais ante a ausência do
valor da causa. Sucede que a presente
ação processa-se segundo os ditames da Lei nº9.868, de 10 de novembro de 1.999,
que em seu artigo 3º dispõe sobre a petição inicial, exigindo que dela conste: “o dispositivo da lei ou do ato normativo
impugnado e os fundamentos jurídicos do pedido em relação a cada uma das
impugnações; o pedido e suas especificações.” Além disso, a inicial deve
estar acompanhada de instrumento de procuração, quando subscrita por advogado;
ser apresentada em duas vias e conter cópias da lei ou do ato normativo
impugnado, bem como dos documentos necessários para a comprovação da
impugnação. Portanto, não há qualquer exigência quanto ao valor dado à causa,
haja vista tratar-se de processo objetivo. Ademais o pedido é juridicamente
possível. Daí que sem qualquer
pertinência a matéria preliminar, que deve ser rejeitada de pronto.
A presente ação direta é procedente.
O autor pretende o reconhecimento da
inconstitucionalidade do dispositivo da Lei Orgânica Municipal que regula a
possibilidade de afastamento cautelar do
Prefeito Municipal nas infrações penais comuns, se recebida à denúncia ou
queixa pelo Poder Judiciário e nos crimes de responsabilidade, se recebida a
denúncia pela Câmara Municipal, por dois terços de seus membros, cessando o
afastamento quando o julgamento não estiver concluído no prazo de cento e
oitenta dias.
Para
a solução do caso, é necessário ter em mente que tratar de crimes de
responsabilidade, de infrações penais, de atos de improbidade administrativa,
bem como do respectivo processo e julgamento, é atividade que se encontra
inserida dentro da competência legislativa exclusiva do legislador federal, por
força do art.22, inciso I da Constituição Federal.
A questão, inclusive, foi pacificada pelo Pretório Excelso,
que editou a respeito a súmula 722, do seguinte teor: “São da competência legislativa da União a definição dos crimes de
responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e
julgamento."
Vários
foram os precedentes que justificaram a edição da mencionada súmula,
É
viável assim afirmar que não há dúvida alguma de que a regulação legal das
hipóteses de crime de responsabilidade, infrações penais e atos de improbidade
administrativa, bem como do respectivo processo e julgamento, cabe apenas ao
legislador federal, sendo assente também que as leis anteriores à Constituição
que tratam da matéria foram recepcionadas pela Constituição Federal, ao menos
na parte em que não são com ela incompatíveis.
Deste
modo, a legislação municipal que trata de tais temas é inconstitucional,
devendo seu vício ser reconhecido por esse E. Órgão Especial, em sede de
controle concentrado de normas.
Necessário
recordar que, de conformidade com o art.144 da Constituição do Estado de São
Paulo, “Os Municípios, com autonomia
política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei
orgânica, atendidos os princípios
estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição (g.n.)”.
Desse
dispositivo se extrai que os princípios
estabelecidos pela Constituição Federal são de observância obrigatória pelos
Estados e Municípios.
A
mesma idéia pode ser extraída do art.29 caput
da Constituição Federal, que determina que “O
Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com interstício
mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal,
que a promulgará, atendidos os princípios
estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado, e
os seguintes preceitos (g.n.).”
Ora,
a repartição constitucional de competências entre União, Estados, Distrito
Federal e Municípios, é um dos elementos que, de modo concreto, delimita e
caracteriza o princípio federativo, sendo certo que este é um dos princípios
fundamentais ou estabelecidos pela Constituição Federal, ditando, pois, o exato
perfil do Estado Brasileiro.
Traçando
esse parâmetro, é viável afirmar que o respeito ao princípio federativo, por
força do art.1º e 18º da Constituição Federal, por remissão do art.144 da
Constituição do Estado, bem ainda por expressa previsão no art.1º da própria
Carta Bandeirante, é de observância obrigatória, permitindo o controle abstrato
de normas no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado.
Atos
normativos que violam a repartição constitucional de competências desrespeitam
não apenas regras relativas à divisão do poder de editar normas
infraconstitucionais, mas desautorizam diretamente uma das opções fundamentais
da República Federativa do Brasil, ou seja, o próprio princípio federativo.
Recorde-se
com Alexandre de Moraes, referindo-se aos ilícitos político-administrativos,
que há “(...) necessidade de que a
tipificação de tais infrações emane de lei federal, eis que o Supremo Tribunal
Federal tem entendido que a definição formal dos crimes de responsabilidade se
insere, por seu conteúdo penal, na competência exclusiva da União” (Direito constitucional, 19ª ed., São
Paulo, Atlas, 2006, p.443).
É
a clássica lição de José Afonso da Silva, para quem “o princípio geral que norteia a repartição de competência entre as
entidades componentes do Estado Federal é o da predominância do interesse,
segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante
interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e
assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os
assuntos de interesse local (...)” (Curso
de direito constitucional positivo, 28ªed., São Paulo, Malheiros, 2007,
p.478).
Relevante
notar que em decisão recente, quando do julgamento da ADI 130.227.0/0-00 em
21.08.07, rel. des. Renato Nalini, esse E. Tribunal de Justiça acolheu a tese
acima aventada (possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de lei
municipal por violação do princípio da repartição de competências estabelecido pela
Constituição Federal), sendo relevante trazer excerto de voto do i.
Desembargador Walter de Almeida Guilherme, imprescindível para a elucidação da
questão:
“(...) Ora, um dos princípios da Constituição
Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa,
no Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A
República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
Sendo a organização federativa do Estado
brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo
elemento essencial dessa forma de estado a distribuição de competência
legislativa dos entes federados, inescapável a conclusão de ser essa
discriminação de competência um princípio estabelecido na Constituição Federal.
Assim, quando o referido art.144 ordena
que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os princípios da
Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos
parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência
legislativa da união, não estão obedecendo ao princípio federativo, e, pois,
afrontando estão o art.144 da Constituição do Estado (...)” (trecho do voto do i. des. Walter de Almeida
Guilherme, no julgamento da ADI 130.227.0/0-00).
Há
leis federais que tratam de tais temas. A Lei 1079/50, recepcionada pela
Constituição Federal, define quais são as infrações, e disciplina o processo e
julgamento, nos casos de crimes de responsabilidade cometidos pelo Presidente
da República e Ministros de Estado, Ministros do Supremo Tribunal Federal,
Procurador-Geral da República, Governadores e Secretários de Estado.
De
outro lado, como já referido, é o Decreto-lei 201/67 que define e regula o
processo atinente aos crimes de responsabilidade cometidos por Prefeitos
Municipais e por Vereadores.
Destarte,
ostentam vício de inconstitucionalidade, por violação ao princípio federativo –
não observância das regras associadas à repartição constitucional de
competências - normas contidas na legislação municipal que conceituam infrações
político-administrativas, criminais ou de improbidade, bem como aquelas que
regulam o respectivo processo e julgamento.
Apenas
como reforço, cumpre colacionar recente julgado do Pretório Excelso que, mutatis mutandis, serve de parâmetro
para o caso em exame:
"A
expressão ‘e julgar’, que consta do inciso XX do artigo 40, e o inciso II do §
1º do artigo 73 da Constituição catarinense consubstancia normas processuais a
serem observadas no julgamento da prática de crimes de responsabilidade.
Matéria cuja competência legislativa é da União. Precedentes. Lei federal n.
1.079/50, que disciplina o processamento dos crimes de responsabilidade.
Recebimento, pela Constituição vigente, do disposto no artigo 78, que atribui a
um Tribunal Especial a competência para julgar o Governador. Precedentes.
Inconstitucionalidade formal dos preceitos que dispõem sobre processo e
julgamento dos crimes de responsabilidade, matéria de competência legislativa
da União. A CB/88 elevou o prazo de inabilitação de 5 (cinco) para 8 (oito)
anos em relação às autoridades apontadas. Artigo 2º da Lei n. 1.079 revogado,
no que contraria a Constituição do Brasil. A Constituição não cuidou da matéria
no que respeita às autoridades estaduais. O disposto no artigo 78 da Lei n.
1.079 permanece hígido — o prazo de inabilitação das autoridades estaduais não
foi alterado. O Estado-Membro carece de competência legislativa para majorar o
prazo de cinco anos — artigos 22, inciso I, e parágrafo único do artigo 85 da
CB/88, que tratam de matéria cuja competência para legislar é da União. O
Regimento da Assembléia Legislativa catarinense foi integralmente revogado.
Prejuízo da ação no que se refere à impugnação do trecho ‘do qual fará chegar
uma via ao substituto constitucional do Governador para que assuma o poder, no
dia em que entre em vigor a decisão da Assembléia’, constante do § 4º do artigo
232." (ADI 1.628, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 10-8-06, DJ de
24-11-06)”.
Saliente-se
que a posição aqui sustentada encontra amparo em precedentes desse E. Tribunal
de Justiça. É o caso do julgado relatado pelo Exmo Des. Mohamed Amaro (ADIN
106.343-0/8-00, Ilha Solteira, Julgado em 23.06.2004), de cuja ementa pode-se
extrair o seguinte excerto:
“(...)
Os princípios básicos que regem a
responsabilização do Chefe do Executivo por crime de responsabilidade consagram
que somente a União – no exercício de sua competência privativa para legislar
sobre direito penal e processual – poderá definir as figuras típicas
correspondentes a crimes de responsabilidade, bem como suas normas para o
respectivo processo e julgamento, restando, pois, afastada qualquer previsão da
lei orgânica municipal, regimento interno, ou resolução legislativa, diversa do
estabelecido na legislação federal pertinente.
Aos municípios, apenas cabe observar as
normas decorrentes do Decreto-lei 201/67 – que foi recepcionado pela nova ordem
constitucional, como, expressamente, admitido pelo Supremo Tribunal Federal.
O ESTABELECIMENTO DE NORMAS DE PROCESSO
E JULGAMENTO DOS CRIMES DE RESPONSABILIDADE – PORTANTO, SIGNIFICANDO INFRAÇÃO
POLÍTICO-ADMINISTRATIVA - É DA COMPETÊNCIA PRIVATIVA DA UNIÃO, POR FORÇA DO QUE
DIPÕEM OS ARTIGOS 85, PARÁGRAFO ÚNICO, E 22, INCISO I, AMBOS DA CARTA MAGNA.
Precedentes jurisprudenciais.
(...)”
Posto isso,
aguarda-se seja a presente ADIn julgada procedente, declarando-se a
inconstitucionalidade do artigo 102, da lei Orgânica do Município de Louveira,
cuja redação foi dada pela Emenda n. 009/2004.
São Paulo, 24 de novembro de 2008.
MAURÍCIO
AUGUSTO GOMES
PROCURADOR
DE JUSTIÇA,
no exercício
de função delegada
pelo
Procurador-Geral de Justiça