Autos n. 168.460.0/5-00
Autor: Prefeito
Municipal de Avaré
Objeto de impugnação: Lei Municipal n. 655,
de 21 de outubro de 2004, do Município de Avaré
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Relator
Colendo Órgão Especial
Cuida-se de ação proposta pelo Prefeito Municipal
de Avaré na qual se questiona a validade jurídico-constitucional da Lei
Municipal n. 655, de 21 de outubro de 2004, em face do art. 117 da Constituição
do Estado de São Paulo.
A
lei impugnada autoriza o Chefe do Poder Executivo Municipal a celebrar contrato
de concessão de uso de imóvel de propriedade da Prefeitura à Associação
Brasileira dos Criadores de Mini-Horse, pelo período de vinte anos.
Ao
despachar a inicial (fls. 17), sua Excelência, o Desembargador Relator, Dr. PAULO
TRAVAIN, deferiu o pedido de suspensão liminar.
Citado
para os fins do § 2.º do art. 90 da Constituição Paulista, o Procurador Geral
do Estado defendeu a exegese que condiciona a sua intervenção nos processos de
fiscalização abstrata à existência de interesse estadual na preservação do
texto normativo impugnado, ausente neste caso (fls. 73/75).
O
Presidente da Câmara de Vereadores de Avaré prestou informações a fls. 30,
juntando documentos.
É o breve
relato.
A
presente ação direta é procedente.
A lei impugnada é, de fato, incompatível com o artigo
117, da Constituição do Estado de São Paulo.
Além
disso, verificam-se vícios formal e material na lei impugnada, fato que enseja
o controle concentrado de constitucionalidade.
Leciona
Oswaldo Luiz Palu, in: Controle de Constitucionalidade – Conceitos, Sistemas e
Efeitos. São Paulo. RT, 2ª ed. P. 217/218 “(...) a desconformidade dos atos
normativos com o seu parâmetro pode ocorrer em decorrência de vícios formais,
que são aqueles que incidem sobre o ato normativo em si, independentemente de
seu conteúdo, ou em decorrência de vícios materiais, que incidem sobre o
conteúdo normativo do ato. Terá reflexos tal distinção na questão da
inconstitucionalidade parcial, sendo que os vícios formais tornam
inconstitucional toda a disposição, enquanto que os vícios materiais podem
deixar válidas partes não afetadas do texto. A inconstitucionalidade é o vício,
pressuposto da sanção, que será a nulidade”.
A lei impugnada, do
Município de Avaré, é de iniciativa do Chefe do Poder Executivo – prefeito
anterior – e acabou, de um lado, tratando de matéria que não se exige lei para
discipliná-la, já que inserta naquelas iniciativas típicas da Administração nos
atos de utilização e conservação dos bens e do patrimônio público, violando a
separação e harmonia entre os poderes do
Estado e, de outro lado, afrontou a exigência constitucional da licitação (art.175,
da Constituição Federal), de observância obrigatória pelos Municípios em face
do que dispõe o art. 144, da Constituição Bandeirante, bem assim do preceituado
pelo art. 297, da mesma Constituição Paulista, acrescido pela Emenda
Constitucional n. 21, de 14.02.2006. Referido texto do art. 2º - está assim
disposto: “Fica dispensada a concorrência de que trata o artigo 119, §1º, da
Lei Orgânica do Município, por interesse público relevante”.
Com
efeito, os arts. 5º, caput e §1º, 117, 144 e 297, da Constituição Estadual
dispõem:
“Art. 5º - São Poderes do Estado,
independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
§ 1º - É vedado a qualquer dos Poderes
delegar atribuições.
Art. 117 – Ressalvados os casos
especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão
contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de
condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de
pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, os termos da lei, o qual
somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica
indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Parágrafo único – É vedada à administração
pública direta e indireta, inclusive fundações instituídas ou mantidas pelo
Poder Público, a contratação de serviços e obras de empresas que não atendam às
normas relativas à saúde e segurança no trabalho”.
Art. 144 – Os Municípios, com autonomia
política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei
Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta
Constituição.
Art. 297 – São também aplicáveis no Estado,
no que couber, os artigos das Emendas à Constituição Federal que não integram o
corpo do texto constitucional, bem como as alterações efetuadas no texto da
Constituição Federal que causem implicações no âmbito estadual, ainda que não
contempladas expressamente pela Constituição do Estado – artigo acrescido pela
E.C. n. 21, de 14.02.2006 –“
Já
o art. 175, da Constituição Federal estabelece: “Incumbe ao Poder Público, na
forma da lei, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, sempre
através de licitação, a prestação de serviços públicos”.
E o projeto de repartição de competências
introduzido pelo constituinte, segundo o magistério de JOAQUIM CASTRO AGUIAR
(in: Competência e Autonomia Dos Municípios na Nova Constituição: Editora
Forense, Rio de Janeiro, 1995, pág.19), “contrariamente ao que se costuma ver
nos regimes federativos, a federação brasileira possui quatro centros distintos
de poder: um, federal, da União; um, regional, dos Estados-membros; um, do
Distrito Federal; e um quarto, local, dos Municípios, todos autônomos e com
poderes políticos emanados diretamente da Constituição. Embora tenha atribuído
à União um quinhão maior na partilha das competências, concedeu ao Município um
poder, insuscetível de usurpação pelo governo central ou pelo regional e sem
qualquer diferença de caráter dos poderes concedidos à União e ao Estado”. E
mais adiante o autor conclui: “Do exposto pode-se chegar à conclusão de que a
lei municipal não é menos autêntica do que a lei federal e a estadual. O
Município faz parte, pois, da estrutura do regime federativo brasileiro. Não
recebeu competência por delegação da União ou do Estado. Possui competência
originária, de primeiro grau, nascida da própria Constituição, diretamente”.
A doutrina de JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES (in: Lei
Complementar Tributária, RT, São Paulo, 1975, págs. 10/12) ensina que “não há
desníveis hierárquicos entre as pessoas constitucionais, que juridicamente são
iguais entre si”. E na seqüência arremata: “No campo de competência do
Município, a lei municipal é exclusiva e excludente de qualquer outra lei. Não
está acima nem abaixo das lei federais e estaduais, precisamente porque está
isolada na sua esfera privativa de competência”.
No que se refere à violação dos princípios da
harmonia e independência entre os Poderes do Estado, ocorrida com a edição da
Lei n. 655/2004, do Município de Avaré, é pertinente a inserção de precedente
jurisprudencial da Suprema Corte, extraído do julgamento da ADI nº 462 acerca de
dispositivos da Constituição do Estado da Bahia – em acórdão relatado pelo
Ministro Moreira Alves, que registra não haver necessidade de lei para autorizar
o Poder Executivo na prática de atos de gestão tendentes a contratar, mediante
concessão e permissão, a exploração de serviços públicos, o que se aplica no
caso de concessão de uso de bem público dominical, por analogia e por
configurar situação menos gravosa à
coletividade, a saber:
“Rezam os incisos XIII e XXIX do artigo 71 da
Constituição do Estado da Bahia: Artigo 71 - Além de outros casos previstos
nesta constituição compete privativamente à Assembléia Legislatíva:
....................
XIII - autorizar
convênios, convenções ou acordos a serem celebrados pelo Governo do Estado com
entidades de direito público ou privado e aprovar, sob pena de nulidade, os
que, por motivo de urgência ou de interesse público, forem efetivados sem
autorização, a serem encaminhados nos 10 (dez) dias subseqüentes à sua celebração;
....................................
XXIX -
deliberar sobre censura a Secretaria de Estado, por maioria absoluta de
votos."
Em
síntese, são inconstitucionais os dispositivos legais que estabelecem uma
autorização prévia do Poder Legislativo para que o Chefe do Poder Executivo
pratique atos ordinários de gestão e de administração dos bens públicos, uma
vez que representam uma indevida forma de participação do Legislativo na
formação desses atos.
Por
isso, considerando que a lei municipal impugnada, ao veicular uma autorização
do Poder Legislativo ao Executivo, configurou verdadeiro ato de administração,
privativo do Prefeito, deve ser reconhecida a inconstitucionalidade por ofensa
ao princípio da independência e harmonia entre os poderes. Há evidente violação
ao disposto no art.5º, caput e § 1º, da Constituição do Estado de São Paulo, de
observância obrigatória pelos Municípios conforme dispõem os artigos 144 e 297,
da mesma carta estadual.
Se não bastasse, tem-se que materialmente a norma
impugnada também é inconstitucional por ofender os princípios da
impessoalidade, moralidade e legalidade, já que a Lei nº 655/2004 possibilita a
contratação do Poder Público com uma única entidade privada, quando outras da
mesma natureza poderiam se habilitar para ocupar o mesmo prédio público, para o
desenvolvimento de seus objetivos estatutários correlatos ao interesse público.
De outro lado, dispensou sem justificativa o processo de licitação exigido pela
lei específica.
Portanto, a edição da Lei n. 655/2004 representou evidente
ofensa à ordem constitucional, corrigível mediante a utilização do processo
objetivo de controle concentrado.
Em tais circunstâncias, aguardo o julgamento de procedência
da presente ação direta a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade
formal da Lei Municipal n. 655, de 21 de outubro de 2004, do Município de Avaré,
por ofensa aos arts. 5º, caput, § 1º, 117, 144 e 297, da Constituição Estadual.
São
Paulo, 18 de novembro de 2008.
MAURÍCIO AUGUSTO GOMES
PROCURADOR DE JUSTIÇA,
no exercício de função delegada
pelo Procurador-Geral de Justiça