Processo n.º 168.554-0/4-00
Autor: Prefeito
Municipal de Guatapará
Objeto de impugnação: Lei Complementar n. 63, de 08 de julho de 2008, do Município de
Guatapará
Ementa. 1) Lei Complementar
n. 63, de 08 de julho de 2008, do Município de Guatapará. 2) Assegura ao
servidor público municipal direito à ausência remunerada para acompanhamento de
dependentes em atendimento médico. 3)
Violação dos arts. 5.º, 24, § 2º , 1 e 4, 25, 47, incs. I e II, 48,
incis. I e II e 144, todos da
Constituição do Estado de São Paulo. 4) Inconstitucionalidade constatada. 5) Ação Direta proposta pelo Prefeito
Municipal daquele Município, visando à declaração de inconstitucionalidade da
norma legal impugnada.
Colendo Órgão Especial:
Cuida-se
de ação proposta pelo Prefeito Municipal de Guatapará na qual se questiona a
validade jurídico-constitucional da Lei
Complementar n. 63 de 08 de julho de 2008, do Município de Guatapará, em
face dos arts. 5, 24, §2º, n. 1 e 4, 25, 48, incisos I e II, da Constituição do Estado de São Paulo. Ao despachar a inicial, o Excelentíssimo
Desembargador Relator deferiu o pedido
de medida liminar (fls.34/35).
Notificada, a Câmara de Guatapará prestou informações nos termos
regimentais (fls.49/58), defendendo a sua competência legislativa plena para
disciplinar os assuntos de interesse local (CF., art. 30, I). Argumenta,
também, que inexistindo no Município de Guatapará, estatuto dos Servidores
Municipais, o regime jurídico aos funcionários é o celetista, que assegura a
ausência não remunerada a casos idênticos aventados na lei objeto de
impugnação.
Citado
para os fins do § 2.º do art. 90 da Constituição Paulista, o Procurador Geral
do Estado defendeu a exegese que condiciona a sua intervenção nos processos de
fiscalização abstrata à existência de interesse estadual na preservação do
texto normativo impugnado, ausente neste caso (fls. 45/47).
Em resumo, é o que consta nos autos.
A presente ação deve ser julgada procedente.
A Lei Complementar n. 63, de 08 de julho de
2008, que “Assegura-se ao Servidor
Público Municipal Direito a Ausência Remunerada para Acompanhamento de
Dependentes em Atendimento Médico” é
de origem do Poder Legislativo, apresenta a seguinte redação:
“ Art. 1º - Fica assegurado a todos os servidores municipais o direito a
ausência remunerada de até 05 (cinco) dias anualmente, o que equivale a 10
(dez) turnos de trabalho, para acompanhar o atendimento médico de dependente
menor de 18 9dezoito) anos de idade, dependente com deficiência física
auditiva, visual ou mental, cônjuge gestante, cônjuge com impossibilidade de
locomover-se sozinho e pais com mais de 65 (sessenta e cinco) anos de idade.
Art. 2º - Para todos os casos elencados no
artigo primeiro dessa lei, a justificação da ausência deverá ser formalizada
por atestado médico de acompanhamento que deverá ser apresentado em até 02
(dois) dias úteis a partir do efetivo atendimento médico.
Parágrafo
único- Caso a ausência ocorra em apenas um dos turnos da jornada diária de
trabalho, deverá ser registrada ausência parcial para fins de registro de
freqüência e para o cálculo de saldo remanescente.
Art.
3º - Esta lei entre em vigor na data de sua publicação, revogadas as
disposições em contrário”.
Vislumbramos afronta aos artigos 5.º, 24, §
2º , 1 e 4, 25, 47, incs. I e II, 48, incis. I e II e 144, da Constituição do
Estado de São Paulo a saber:
"Art. 5º - São
Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o
Executivo e o Judiciário.
Art. 24 - A iniciativa das
leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da
Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao
Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos
nesta Constituição (...)
§ 2º - Compete,
exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham
sobre:
1 - criação e
extinção de cargos, funções ou empregos
públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da
respectiva remuneração;
(...)
4 - servidores públicos do Estado, seu
regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis,
reforma e transferência de militares para a inatividade;
(...)
Art.
25 - Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa
pública será sancionado sem que dele
conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.
Art. 47 - Compete
privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta
Constituição:
I - representar o
Estado nas suas relações jurídicas, políticas e administrativas;
II - exercer, com o
auxílio dos Secretários de Estado, a
direção superior da administração estadual;
Art. 48- São de iniciativa exclusiva do Prefeito, as
Leis que disponham sobre:
I- Criação, Transformação
ou extinção de cargos, funções ou empregos públicos na Administração ou aumento
de sua remuneração;
II- nos projetos
sobre organização dos serviços administrativos da Câmara Municipal.
Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e
financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta
Constituição."(g.n.)
O
ordenamento jurídico brasileiro, como se sabe, dispõe que o governo municipal é
de funções divididas. As funções administrativas foram conferidas ao Prefeito,
enquanto que as funções legislativas são de competência da Câmara. Administrar
significa aplicar a lei ao caso concreto. Assim, no exercício de suas funções,
o Prefeito é obrigado a observar as normas gerais e abstratas editadas pela
Câmara, em atenção ao princípio da legalidade, a que está pautada toda atuação
administrativa, na forma do art. 111 da Carta Paulista.
Esse
mecanismo de repartição de funções, incorporado ao nosso ordenamento
constitucional, e que teve como principal idealizador o filósofo Montesquieu,
impede a concentração de poderes num único órgão ou agente, o que a experiência
revelou conduzir ao absolutismo[1].
Daí ser vedado à Câmara interferir na prática de atos que são de competência
privativa do Prefeito, assim como a recíproca é verdadeira.
Tamanho
significado apresenta esse sistema de separação das funções estatais, em nosso
ordenamento jurídico, que a própria Constituição, no seu art. 60, § 4.º, inciso
III, cuidou de incorporá-lo ao seu núcleo intangível, ao dispor expressamente
que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
aboli-lo.”
As regras
de fixação de competência para a iniciativa do processo legislativo têm como
corolário o princípio da separação dos poderes, que nada mais é do que o
mecanismo jurídico que serve à organização do Estado, definindo órgãos,
estabelecendo competências e marcando as relações recíprocas entre esses mesmos
órgãos (cf. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em “Do Processo Legislativo”, ed.
Saraiva, pp. 111/112).
Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho “o aspecto fundamental da iniciativa
reservada está em resguardar a seu titular a decisão de propor direito novo em
matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse preponderante”
(ob. cit., p. 204).
Desatendida
essa exclusividade, como no caso em exame, fica patente a inconstitucionalidade, em face de vício de iniciativa.
Sobre isso, ensinou Hely Lopes Meirelles que se “a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses
projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao Prefeito
vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por
isso se nos afigura que convalesçam de vício inicial, porque o Executivo não
pode renunciar prerrogativas institucionais inerentes às suas funções, como não
pode delegá-las aquiescer em que o Legislativo as exerça” (em “Direito
Municipal Brasileiro”, 7º ed., 1990, págs. 544/545).
Esse modelo constitucional é de
observância obrigatória pelos municípios, por força do disposto no art. 144, da
Constituição Estadual.
O
regime jurídico dos serviços e servidores públicos deve sempre ser regulado por
lei cuja iniciativa é reservada ao Poder Executivo, que tem a incumbência de
planejar, organizar, dirigir e executar os serviços públicos municipais.
A lei em questão de iniciativa parlamentar, tratou de regras relativas ao regime jurídico
de servidores públicos municipais, cuja legitimidade só é afeta ao Poder
Executivo, como acima mencionado. As imposições à Administração constantes do
art. 5º e seus incisos da lei inquinada, cuja origem foi do parlamento,
traduzem irremediável ofensa aos princípios da harmonia e independência entre
os poderes, exigindo sua retirado do mundo jurídico pela via eleita pelo
requerente.
Por fim, ao garantir a todos os
servidores municipais o direito a ausência remunerada para acompanhamento de
dependentes a atendimento médico a Lei Complementar n. 63 de 08 de julho de
2008, criou despesa ao erário público,
sem indicar os recursos disponíveis.
Com efeito, é
nítida a violação dos artigos
5.º, 24,
§ 2º , 1 e 4, 25, 47, incs. I e II, 48, incs. I e II e 144, da
Constituição do Estado de São Paulo.
Em
face do exposto, aguardo o julgamento de procedência desta ação
direta - a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei Complementar n. 63, de 08 de julho de
2008, do Município de Guatapará.
São
Paulo, 17 de novembro de 2008.
MAURÍCIO AGUSTO GOMES
PROCURADOR DE JUSTIÇA
no
exercício de função delegada
pelo
Procurador-Geral de Justiça
[1] Em sua magistral obra “Esprit des lois”, Montesquieu formulou a seguinte advertência: “tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo exercesse esses três poderes: o de fazer as leis, o de executá-las e o de julgar.”