Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo nº 168.561.0/6

Requerente: Prefeito Municipal de Guatapará

Objeto: Lei Municipal nº 567, de 18 de março de 2008, do Município de Guatapará

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade promovida por Prefeito em face da Lei nº 567, de 18 de março de 2008, do Município de Guatapará, que “concede casa de apoio a trabalhadores na cidade de Ribeirão Preto, como especifica”. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, porque gera ônus à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes, previsto no artigo 5º da Constituição do Estado. Lei “autorizativa” que, na verdade, contém determinação e, por isso, não afasta a usurpação da competência material do Prefeito. Criação de despesa, sem indicação da receita, que desatende aos preceitos dos artigos 25 e 176, I, da CE. Parecer pela procedência da ação.

           

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

1) Relatório.

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Guatapará, tendo por objeto a Lei Municipal n.º 567, de 18 de março de 2008, que “concede casa de apoio a trabalhadores na cidade de Ribeirão Preto, como especifica”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo, por se entender que a matéria versada – que impõe ônus à Administração Municipal – demanda a iniciativa privativa do Prefeito. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 42/45).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 59 e ss., em defesa da lei impugnada. Afirmou que a lei trata de assunto de interesse local e que consulta ao interesse público. Sustentou a regularidade do processo legislativo e que as despesas decorrentes se contêm na receita do Município..

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 55).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

2) Fundamentação.

O processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes[1].

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República[2], conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo difuso ou concentrado por parte do Poder Judiciário.

A iniciativa é o ato que deflagra o processo legislativo. Pode ser geral ou reservada (ou privativa). No primeiro caso, vereador, Mesa, comissão da Câmara, prefeito ou a população podem titularizar o projeto. No segundo, há um único titular.

A lei impugnada originou-se de projeto de autoria do vereador Jonas Laurentino que, embora imbuído dos mais relevantes propósitos, o concebeu com clara ofensa à Constituição.

É que somente ao Chefe do Poder Executivo assiste a iniciativa de leis que criem – como é o caso – obrigações e deveres para órgãos municipais (art. 47, inc. II da Constituição Estadual, de aplicação extensível aos municípios por força do art. 144 da mesma Carta).

Note-se que a lei em análise impõe à Administração os seguintes ônus:

(a)                  o de locar um imóvel em outro município para alojar as pessoas que procuram emprego na outra cidade (art. 1º.);

(b)                  o de colocar um funcionário para administrar os serviços dessa casa, inclusive preencher cadastros e lavrar termos de responsabilidade (art. 2º.);

(c)                   o de arcar com as despesas de energia elétrica, água, telefone, móveis e utensílios (art. 5º.);

(d)                  o de conceder os “documentos de permissão” (art. 6º.);

(e)                  o de elaborar e distribuir currículos, cartas de referência e “outros” (art. 8º.).

Invadiu-se claramente a seara da administração pública, da alçada exclusiva do Prefeito, violando-se a prerrogativa deste em analisar a conveniência e oportunidade das providências que a lei quis determinar. Bem por isso, a matéria somente poderia objeto de tramitação legislativa por proposta do próprio Chefe do Poder Executivo.

Ofendeu-se, igualmente, o princípio basilar da separação de poderes. Como já proclamou esse Sodalício:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

Nem se alegue que, tratando-se de lei autorizativa, o vício estaria superado. Deve-se atentar para o fato de que o Executivo não necessita de autorização para administrar e, no caso em análise, não a solicitou. 

Sérgio Resende de Barros, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina:

"...insistente na pratica legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui  um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa,  praticada cada vez mais exageradamente autorizativa  é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos  que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente"[3].

Bem por isso, não passou despercebido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que "a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo portanto inconstitucional" (ADIN n°593099377 – rel. Des. Maria Berenice Dias – j. 7/8/00).

Esse E. Sodalício também vem afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que as tais “autorizações” são eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.

VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça”[4].

Se isso não bastasse, a lei gera aumento de despesa sem indicação da fonte e, destarte, colide com as disposições dos artigos 25 e 176, inc. I, da Constituição Bandeirante.

3) Conclusão.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal n.º 567, de 18 de março de 2008, que “concede casa de apoio a trabalhadores na cidade de Ribeirão Preto, como especifica”.

São Paulo, 7 de novembro de 2008.

 

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça

 

jesp



[1] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 675.

[2] Alexandre de Moraes. Direito Constitucional, 23ª. ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 641.

[3] Leis Autorizativas. Revista da Instituição Toledo de Ensino, agosto a novembro de 2000, Bauru, p. 262.

[4] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748.