Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Órgão Especial

Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 168.980-0/8-00

Requerente: Prefeito Municipal de São José do Rio Preto

Requerida: Câmara Municipal de São José do Rio Preto

 

 

PARECER

 

 

Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 10.199, de 22 de agosto de 2008, que alterou § 1º do art. 3º da Lei n. 8.404, de 20 de julho de 2001, do Município de São José do Rio Preto: inclusão no parcelamento de débitos de natureza tributária dos valores referentes ao pagamento de custas, emolumentos e verbas da sucumbência.

1. Parcelamento de tributo: natureza jurídica de moratória (arts. 146, III, Constituição Federal; arts. 97, VI e 152, I, a, II, Código Tributário Nacional).

2. Lei de iniciativa parlamentar. Alegação de ofensa ao princípio da separação de poderes do qual deriva a iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo. Inexistência de reserva de iniciativa em matéria tributária. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. Direito estrito que não se presume.

3. Sistema tributário nacional. Discriminação de rendas tributárias: competências tributárias exclusivas, salvo nas taxas cuja competência legislativa é comum a todas as pessoas políticas em razão das atividades por eles desempenhadas (arts. 145, II, Constituição Federal e 163, II, Constituição Estadual). Taxa é tributo contraprestacional e vinculado, cuja competência tributária é correspondente à competência da pessoa jurídica de direito público para o exercício do poder de polícia ou a prestação de serviço público específico e divisível. Princípio de inerência ao próprio sistema tributário nacional que repousa na definição de taxa contida nas Constituição Federal (art. 145, II) e Estadual (art. 163, II). Só pode conceder moratória quem detém competência para instituição do tributo.

4. Custas e emolumentos. Natureza jurídica de taxa. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. Competência legislativa concorrente federal e estadual sobre a matéria (art. 24, IV, Constituição Federal) que os Municípios não têm qualquer potencial ou concreto interesse peculiar, e nem se legitimam a legislar, direta ou indiretamente.

5. Controle abstrato de constitucionalidade de norma local em face da Constituição Estadual: seu alcance se estende ao conjunto de dispositivos desta, aos preceitos constitucionais federais nela reproduzidos ou remetidos e, inclusive, os princípios explícitos ou implícitos, como o pacto federativo e a repartição de competências.

6. Invasão da esfera de competência normativa estadual (art. 24, IV, Constituição Federal; art. 19, I, Constituição Estadual) e infringência do esquema de repartição de competências inerente ao princípio federativo (arts. 1º, 18, 24, IV, 25, 29, 30, Constituição Federal) inclusive no aspecto tributário (arts. 30, III e 145, II, Constituição Federal).

7. Infringência caracterizadora de violação aos arts. 1º, 19, I, e 144, da Constituição do Estado de São Paulo. Procedência da ação.

 

 

 

Egrégio Tribunal,

Colendo Órgão Especial,

Douto Relator:

 

 

 

 

1.           Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade impugnando a Lei n. 10.199, de 22 de agosto de 2008, que alterou § 1º do art. 3º da Lei n. 8.404, de 20 de julho de 2001, do Município de São José do Rio Preto, que inclui no parcelamento de débitos de natureza tributária dos valores referentes ao pagamento de custas, emolumentos e verbas da sucumbência, alegando violação à repartição constitucional de competências e invasão da esfera da competência legislativa estadual (arts. 1º e 19, I, Constituição do Estado de São Paulo), disciplina de matéria extra-orçamentária além de ausência e previsão de recursos financeiro-orçamentários no âmbito municipal para o adiantamento de custas (fls. 02/07).

 

2.           Liminar foi deferida à vista de provável vício de iniciativa (fl. 30). A douta Procuradoria-Geral do Estado manifestou desinteresse no processo (fls. 42/44) e a Câmara Municipal prestou informações (fls. 46/47) acompanhadas de cópia do processo legislativo.

 

3.           É o relatório.

 

4.           A Lei n. 8.404/01 autorizou o Poder Executivo ao parcelamento dos créditos municipais, abrangendo débitos ajuizados ou não, e em sua redação original dispunha, no que interessa ao objeto deste processo, da seguinte maneira:

“Art. 3º. Sem prejuízo da competência do Secretário Municipal de Finanças e do Secretário Municipal de Negócios Jurídicos, cada qual em sua área de atuação, serão competentes para deferir os pedidos de parcelamento:

I – em se tratando de débitos não ajuizados: o Departamento da Dívida Ativa da Secretaria Municipal de Finanças.

II - em se tratando de débitos ajuizados: o Departamento de Execução Fiscal da Secretaria Municipal de Negócios Jurídicos.

§ 1º. O parcelamento dos débitos ajuizados não dispensa o pagamento de custas, emolumentos judiciais e verbas da sucumbência”.

 

5.           Pressuposto é o crédito tributário ou extratributário decorrente de receitas lato sensu da competência municipal.

 

6.           Claro, outrossim, que a redação original do § 1º do art. 3º da Lei n. 8.404/01, excluía explicitamente do parcelamento o pagamento de custas, emolumentos judiciais e verbas da sucumbência.

 

7.           Com a edição da Lei n. 10.199/08, de iniciativa parlamentar, cujo veto aposto pelo Prefeito foi derrubado, o citado § 1º do art. 3º da Lei n. 8.404/01 passou a ter a seguinte redação:

“§ 1º. O parcelamento dos débitos ajuizados não dispensa o pagamento de custas, emolumentos judiciais e verbas da sucumbência, que serão incluídos no parcelamento total” (fl. 09).

 

8.           Se, antes, por uma única interpretação possível, custas, emolumentos e verbas da sucumbência não se inseriam no parcelamento, a partir daí, ocorreu exatamente o inverso: tais verbas são passíveis de inclusão no parcelamento.

 

9.           O veto executivo se assentou nas premissas de vícios de iniciativa legislativa reservada e incompetência legislativa municipal porque custas e emolumentos pertencem ao domínio normativo estadual e verbas da sucumbência à esfera normativa federal, além de aspectos de mérito (fls. 11/15), na conformidade de parecer da Comissão de Justiça e Redação da Edilidade (fls. 49/50, 57).

 

10.         No caso, o Município de São José do Rio Preto não concedeu anistia ou remissão; tão somente moratória. Anistia é exclusão do crédito tributário decorrente de dívida penal tributária, dispensando-se o cumprimento da obrigação correlata (arts. 175, II, 176 a 179, Código Tributário Nacional). Remissão, causa de extinção do crédito, é significativa de perdão (arts. 180 a 182, Código Tributário Nacional), embora, pondere a doutrina, a anistia de que cuida a alínea d do II do art. 181 do Código Tributário Nacional, instituída sob condição do pagamento do tributo em certo prazo, seja uma combinação com o instituto da moratória, largamente empregada para aumento de arrecadação (Kyoshi Harada. Direito Financeiro e Tributário, São Paulo: Atlas, 1998, 4ª ed., p. 309).

 

11.         Sem dúvida trata-se de moratória (art. 151, I, Código Tributário Nacional), causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, consistente na “prorrogação do prazo para pagamento do crédito tributário, com ou sem parcelamento” (Hugo de Brito Machado. Curso de Direito Tributário, São Paulo: Malheiros, 2001, 19ª ed., pp. 149-151) e que “não dispensa o cumprimento das obrigações tributárias acessórias dependentes da obrigação principal cujo crédito seja suspenso, ou dela decorrentes” (art. 151, parágrafo único, Código Tributário Nacional). Ela é instituída, sob reserva legal, em caráter geral, pela pessoa jurídica de direito público para instituição do tributo a que se refira, ou, em caráter individual por despacho da autoridade administrativa autorizada por lei (arts. 97, VI e 152, I, a, II, Código Tributário Nacional), e consiste na concessão legal de um período de tolerância na exigência de dívidas, devendo a lei estabelecer prazo e condições, os tributos a que se aplica e número de prestações e seus vencimentos dentro do prazo (art. 153, I a III, Código Tributário Nacional). Registre-se que a Lei Complementar n. 104/01 incluiu novo inciso no art. 151 prevendo (como hipótese de suspensão da exigibilidade do crédito tributário) o parcelamento, sentido como “mais uma inovação inteiramente inútil porque o parcelamento nada mais é do que uma modalidade de moratória” e que não exclui os juros de mora devidos após o ato (Hugo de Brito Machado. Curso de Direito Tributário, São Paulo: Malheiros, 2001, 19ª ed., pp. 149-151).

 

12.         O primeiro aspecto a exigir reflexão é o da competência legislativa. O sistema tributário nacional é matéria constitucional, de observância compulsória a todas as entidades da federação brasileira, porque se relaciona diretamente à interferência estatal na propriedade privada e a própria composição funcional do esquema federativo de Estado. Em maior escala, ele se articula mediante princípios gerais impositivos a todos os entes da federação (art. 145, Constituição Federal) e à reserva de lei complementar de caráter nacional referente a matérias específicas (arts. 146 e 146-A, Constituição Federal).

 

13.         De outra parte, ele institui limitações constitucionais ao poder de tributar como reflexo dos direitos de primeira geração (os direitos de liberdade), inscrevendo limite negativo à interferência estatal na esfera de direitos das pessoas de seu território de modo a balancear a tensão entre valores fundamentais contrapostos - soberania e poder de tributar (modo de arrecadação de receita pública) e propriedade. Corolário é, como projeção da Magna Charta Libertatum inglesa de 1215 (12 e 14), a reserva de lei para criação ou aumento de tributos de que se ocupa tradicionalmente o direito brasileiro no art. 150, I, da Constituição Federal, reproduzido no art. 163, III, da Constituição Estadual.

 

14.         Em razão da estrutura (forma) federativa de Estado, adotada no Brasil com a Constituição de 1891, para evitar conflitos intrafederativos – e seus reflexos desfavoráveis aos contribuintes - integra o sistema tributário nacional a denominada discriminação de rendas tributárias, de expressiva fundamentalidade ao federalismo, à vista da autonomia conferida aos sujeitos federados.

 

15.         Tributos são instituídos por leis de cada ente federativo a partir de hipóteses de incidência concebidas pela mencionada técnica constitucional, observados os preceitos de lei complementar de caráter nacional (art. 145, 146, I e III, 147 a 149, 153 a 156, Constituição Federal). O poder tributário é manifestação da soberania, exclusiva da União, diferentemente da competência tributária que é faculdade de criação do tributo por lei (e que, por sua vez, se distingue da capacidade tributária, isto é, a habilitação conferida por lei titulando alguém como sujeito ativo da obrigação), como ensina Celso Ribeiro Bastos (Curso de Direito Financeiro e Direito Tributário, São Paulo: Saraiva, 1992, 2ª ed. p. 124). A competência tributária é reflexo da autonomia (financeira), cujo conteúdo é a atribuição constitucional aos Estados e Municípios para instituição de tributos.

 

16.         Essa discriminação significa a distribuição de competências privativas a cada um dos entes federados (Ruy Barbosa Nogueira. Curso de Direito Tributário, São Paulo: Saraiva, 1986, 6ª. ed., pp. 137-140), cuja visualização é fácil em relação a impostos, empréstimos compulsórios e contribuições parafiscais (arts. 147 a 149, 153 a 156, Constituição Federal).

 

17.         Relativamente a taxas a identificação da competência tributária não é simples. Sua definição dada no inciso II do art. 145 da Constituição Federal, reproduzida no art. 160, II, da Constituição Estadual, em verdade, retrata o conceito do Código Tributário Nacional (arts. 77 e 79).

 

18.         A Constituição Federal fornece, ad esempia, uma indicação no art. 30, III, declarando competência aos Municípios para instituição (normativa) e arrecadação (executiva) dos tributos de sua competência. A alusão a tributos os toma em gênero, não em espécie. Mas, daí resulta que Municípios não possuem competência normativa para instituição de tributos reservados constitucionalmente à União ou aos Estados.

 

19.         A doutrina sob o império da Constituição de 1967 com a redação dada pela Emenda n. 01/69 explicava que à luz do caráter contraprestacional e vinculado da taxa a competência tributária correspondia à competência administrativa para o exercício do poder de polícia ou a prestação de serviços públicos específicos e divisíveis (Ruy Barbosa Nogueira. Curso de Direito Tributário, São Paulo: Saraiva, 1986, 6ª. ed., p. 141; Aliomar Baleeiro. Direito Tributário Brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, 1971, 3ª ed., p. 299) e, por isso, a característica singular das taxas no federalismo tributário brasileiro é a competência legislativa comum (Ruy Barbosa Nogueira. Curso de Direito Tributário, São Paulo: Saraiva, 1986, 6ª. ed., p. 172). Sob a égide da Constituição de 1988, a literatura perfilha idêntico tratamento (Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Financeiro e Direito Tributário, São Paulo: Saraiva, 1992, 2ª ed. p. 126; Sacha Calmon Navarro Coelho. Comentários à Constituição de 1988 – Sistema Tributário, Rio de Janeiro: Forense, 1990, 2ª ed., p. 03; Arx Tourinho. Comentários ao Código Tributário Nacional, Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 142, coordenação Carlos Valder do Nascimento; Hugo de Brito Machado. Curso de Direito Tributário, São Paulo: Malheiros, 2001, 19ª ed., pp. 367-368), cujo substrato, ademais, repousa no art. 80 do Código Tributário Nacional.

 

20.         Portanto, a superposição de taxas instituídas por pessoas jurídicas de direito público diferentes sobre idênticas hipóteses de incidência é vedada como princípio de inerência ao próprio sistema tributário nacional que repousa na definição de taxa contida nas Constituição Federal (art. 145, II) e Estadual (art. 163, II), porque “a Carta Constitucional distribui a competência para o exercício do poder de polícia, assim como para prestação de serviços públicos. Destarte, só é regulável juridicamente a taxa cobrada com fundamento no poder de polícia próprio de quem a institui” (Celso Ribeiro Bastos. Curso de Direito Financeiro e Direito Tributário, São Paulo: Saraiva, 1992, 2ª ed. p. 127).

 

21.         O segundo aspecto de relevo reside na natureza jurídica das custas e emolumentos. Custas são as parcelas devidas ao Estado ou à União em razão do exercício da atividade jurisdicional; emolumentos são as despesas decorrentes dos atos processuais (José Alonso Beltrame, Régis Fernandes de Oliveira e Rui Stoco. O Procedimento na cobrança da dívida ativa da Fazenda Pública, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, pp. 46-47): são taxas (Sacha Calmon Navarro Coelho. Comentários à Constituição de 1988 – Sistema Tributário, Rio de Janeiro: Forense, 1990, 2ª ed., p. 46) bem amoldadas às definições constitucionais e infraconstitucionais porque consubstanciam contraprestação pecuniária pela prestação de serviço público específico e divisível. Neste sentido, a jurisprudência:

“CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CUSTAS E EMOLUMENTOS. LEI ESTADUAL QUE CONCEDE ISENÇÃO: CONSTITUCIONALIDADE. Lei 12.461, de 7.4.97, do Estado de Minas Gerais. I.- Custas e emolumentos são espécies tributárias, classificando-se como taxas. Precedentes do STF. II.- À União, ao Estado-membro e ao Distrito Federal é conferida competência para legislar concorrentemente sobre custas dos serviços forenses, restringindo-se a competência da União, no âmbito dessa legislação concorrente, ao estabelecimento de normas gerais, certo que, inexistindo tais normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades (C.F., art. 24, IV, §§ 1º e 3º). III.- Constitucionalidade da Lei 12.461/97, do Estado de Minas Gerais, que isenta entidades beneficentes de assistência social do pagamento de emolumentos. IV.- Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente” (STF, ADI 1.624-MG, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, 08-05-2003, v.u., DJ 13-06-2003, p. 08).

 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CABIMENTO. PROVIMENTO Nº 09/97 DA CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA DO ESTADO DE MATO GROSSO. EMOLUMENTOS: PRESTAÇÃO DOS SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTRO. 1. Provimento nº 9/97, da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de Mato Grosso. Caráter normativo. Controle concentrado de constitucionalidade. Cabimento. 2. Hipótese em que o controle normativo abstrato não se situa no âmbito da legalidade do ato, mas no exame da competência constitucional da autoridade que instituiu a exação. 3. A instituição dos emolumentos cartorários pelo Tribunal de Justiça afronta o princípio da reserva legal. Somente a lei pode criar, majorar ou reduzir os valores das taxas judiciárias. Precedentes. 4. Inércia da União Federal em editar normas gerais sobre emolumentos. Vedação aos Estados para legislarem sobre a matéria com fundamento em sua competência suplementar. Inexistência. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente” (STF, ADI 1.709-MT, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, 10-02-2000, v.u., DJ 31-03-2000, p. 38)

 

“I. Taxa Judiciária: sua legitimidade constitucional, admitindo-se que tome por base de cálculo o valor da causa ou da condenação, o que não basta para subtrair-lhe a natureza de taxa e convertê-la em imposto: precedentes (ADIn 948-GO, 9.11.95, Rezek; ADIn MC 1.772-MG, 15.4.98, Velloso). II. Legítimas em princípio a taxa judiciária e as custas ad valorem afrontam, contudo, a garantia constitucional de acesso à jurisdição (CF, art. 5º, XXXV) se a alíquota excessiva ou a omissão de um limite absoluto as tornam desproporcionadas ao custo do serviço que remuneraram: precedentes (Rp 1.077-RJ, 28.3.84, Moreira, RTJ 112/34; Rp 1.074- , 15.8.84, Falcão, RTJ 112/499; ADIn 948-GO, 9.11.95, Rezek; ADIn MC 1.378-5, 30.11.95, Celso, DJ 30.5.97; ADIn MC 1.651-PB, Sanches, DJ 11.9.98; ADIn MC 1.772-MG, 15.4.98, Velloso). III. ADIn: medida cautelar: não se defere, embora plausível a argüição, quando - dado o conseqüentes restabelecimento da eficácia da legislação anterior - agravaria a inconstitucionalidade denunciada: é o caso em que, se se suspende, por aparentemente desarrazoada, a limitação das custas judiciais a 5% do valor da causa, seria restabelecida a lei anterior que as tolerava até 20%. IV. Custas dos serviços forenses: matéria de competência concorrente da União e dos Estados (CF 24, IV), donde restringir-se o âmbito da legislação federal ao estabelecimento de normas gerais, cuja omissão não inibe os Estados, enquanto perdure, de exercer competência plena a respeito (CF, art. 24, §§ 3º e 4º). V. Custas judiciais são taxas, do que resulta - ao contrário do que sucede aos impostos (CF, art. 167, IV) - a alocação do produto de sua arrecadação ao Poder Judiciário, cuja atividade remunera; e nada impede a afetação dos recursos correspondentes a determinado tipo de despesas - no caso, as de capital, investimento e treinamento de pessoal da Justiça - cuja finalidade tem inequívoco liame instrumental com o serviço judiciário” (STF, ADI-MC 1.926-PE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 19-04-1999, v.u., DJ 10-09-1999, p. 02).

 

“DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. CUSTAS E EMOLUMENTOS: SERVENTIAS JUDICIAIS E EXTRAJUDICIAIS. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DA RESOLUÇÃO Nº 7, DE 30 DE JUNHO DE 1995, DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO PARANÁ: ATO NORMATIVO. 1. Já ao tempo da Emenda Constitucional nº 1/69, julgando a Representação nº 1.094-SP, o Plenário do Supremo Tribunal Federal firmou entendimento no sentido de que ‘as custas e os emolumentos judiciais ou extrajudiciais’, por não serem preços públicos, ‘mas, sim, taxas, não podem ter seus valores fixados por decreto, sujeitos que estão ao princípio constitucional da legalidade (parágrafo 29 do artigo 153 da Emenda Constitucional nº 1/69), garantia essa que não pode ser ladeada mediante delegação legislativa’ (RTJ 141/430, julgamento ocorrido a 08/08/1984). 2. Orientação que reiterou, a 20/04/1990, no julgamento do RE nº 116.208-MG. 3. Esse entendimento persiste, sob a vigência da Constituição atual (de 1988), cujo art. 24 estabelece a competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal, para legislar sobre custas dos serviços forenses (inciso IV) e cujo art. 150, no inciso I, veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios, a exigência ou aumento de tributo, sem lei que o estabeleça. 4. O art. 145 admite a cobrança de ‘taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição’. Tal conceito abrange não só as custas judiciais, mas, também, as extrajudiciais (emolumentos), pois estas resultam, igualmente, de serviço público, ainda que prestado em caráter particular (art. 236). Mas sempre fixadas por lei. No caso presente, a majoração de custas judiciais e extrajudiciais resultou de Resolução - do Tribunal de Justiça - e não de Lei formal, como exigido pela Constituição Federal. 5. Aqui não se trata de ‘simples correção monetária dos valores anteriormente fixados’, mas de aumento do valor de custas judiciais e extrajudiciais, sem lei a respeito. 6. Ação Direta julgada procedente, para declaração de inconstitucionalidade da Resolução nº 07, de 30 de junho de 1995, do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná” (STF, ADI 1.444-PR, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches, 12-02-2003, v.u., DJ 11-04-2003, p. 25).

 

22.         Da leitura destes acórdãos percebe-se que, para além da definição de sua natureza jurídica e outros alcances (atividades abrangidas, vinculação etc.), a matéria é submetida (como, aliás, todo tributo) à reserva legal (princípio da legalidade absoluta ou em sentido estrito) e se insere na competência normativa concorrente entre União, Distrito Federal e Estados, nos termos do art. 24, IV, da Constituição Federal, cujo âmbito de operosidade normativa orienta-se pelas balizas dos §§ 1º a 4º desse art. 24. Entende-se que não se trata da disciplina processual das custas e emolumentos, mas, o exercício da própria competência estadual para o regime dessa espécie tributária (valores, prazos) no que se refere à prestação do serviço judiciário, embora consentida supletivamente competência legislativa plena estadual sobre o assunto.

 

23.         Nessa matéria os Municípios não têm qualquer potencial ou concreto interesse peculiar, e nem se legitimam a legislar, direta ou indiretamente, porque “em virtude do pacto federativo, cada ente da federação é detentor de competências tributárias exclusivas. Ditas competências não podem ser invadidas, sob pena de quebra do pacto” (Iso Chaitz Scherkekewitz. Sistema Tributário Constitucional, Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 56).

 

24.         O pacto federativo é estabelecido exatamente através da repartição de competências entre os entes federados à vista da outorga das respectivas autonomias por critérios horizontais (privativas e exclusivas), através da enumeração das competências federais e municipais ou verticais e das residuais às estaduais, ou verticais (comuns e concorrentes próprias ou impróprias) pressupondo a simultaneidade de ação de cada um deles (Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Junior. Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Saraiva, 1999, 3ª ed., pp. 179, 189-195), como se infere dos arts. 1º, 18, 21 a 25, 29 e 30, da Constituição Federal.

 

25.         Ao Município, sob o pálio do art. 30, II, da Constituição Federal, não é dado legislar supletivamente à legislação federal ou estadual sobre qualquer matéria, mas, em relação a assuntos de seu interesse local ou para atuar suas competências materiais (privativas ou comuns), desde que não haja contrariedade às normas federais ou estaduais. No caso, isso sequer é admissível porque embora aos Municípios seja reconhecida autonomia, com expressão de sua auto-organização em lei orgânica, ela está sujeita à observância dos princípios estabelecidos na Constituição Federal e na Constituição do Estado (art. 29, Constituição Federal).

 

26.         A lei local, ao incluir no parcelamento de débitos tributários, custas e emolumentos judiciais, invadiu a esfera de competência normativa estadual (art. 24, IV, Constituição Federal) e infringiu o esquema de repartição de competências inerente ao princípio federativo (arts. 1º, 18, 24, IV, 25, 29, 30, Constituição Federal) inclusive no aspecto das competências tributárias (arts. 30, III e 145, II, Constituição Federal; art. 160, II, Constituição Estadual), pois, só pode conceder moratória quem detém competência para instituição do tributo (Aliomar Baleeiro. Direito Tributário Brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, 1971, 3ª ed., p. 470). Dos arts. 25 e 29 da Constituição Federal decorrem a supremacia da Constituição Estadual em relação a leis ou atos normativos locais, abarcando todos os seus preceitos reproduzidos (obrigatoriamente ou não), remissivos, imitados ou implícitos de observância compulsória (princípios sensíveis e extensíveis; normas de preordenação institucional; princípios constitucionais estabelecidos) da Constituição Federal, ou, autonomamente estabelecidos (Léo Ferreira Leoncy. Controle de constitucionalidade estadual, São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 82-94).

 

27.         Para efeito de fiscalização abstrata de constitucionalidade da lei municipal essa infringência caracteriza violação aos arts. 1º e 144 da Constituição do Estado de São Paulo, in verbis:

“Art. 1º. O Estado de São Paulo, integrante da República Federativa do Brasil, exerce as competências que não lhe são vedadas pela Constituição Federal.

(...)

Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição”.

 

28.         A doutrina já resolveu a questão dos princípios que devem os Estados observar (o que, obviamente, aplica-se aos Municípios,  já agora por força do art. 144 da Constituição do Estado). Na glosa ao art. 25 da Constituição da República, que direcionar as competências dos Estados (como o art. 144 da Constituição do Estado condiciona as competências dos Municípios), Manoel Gonçalves Ferreira Filho refere-se à existência das “regras de preordenação institucional”, “regras de extensão normativa” e “regras de subordinação normativa”, inseridas na Constituição da República, vinculantes para os demais entes políticos, pronunciando que “ainda cerceiam a autonomia dos Estados regras de subordinação normativa, como os arts. 37 e 39 da Constituição Federal. São estas as que, presentes na própria Constituição Federal e direcionadas por ela a todos os entes federativos (União, Estados, Municípios), predefinem o conteúdo da legislação que será editada por eles. E isto, ou orientando positivamente tal conteúdo (mandando que siga determinada linha), ou negativamente (proibindo que adote certas normas ou soluções) (...) Observe-se que esta subordinação normativa pode ser direta ou indireta. Ela é direta (e imediata) quando deflui, sem intermediário, da Constituição Federal e obriga desde logo o legislador. É indireta (e mediata) quando se faz por meio da legislação federal obrigatória para os Estados. Esta ‘subordinação normativa indireta’ ocorre no campo da competência legislativa concorrente da União e dos Estados (bem como do Distrito Federal), que enuncia o art. 24 da Constituição brasileira. Com efeito, este artigo confere à União a competência de ‘estabelecer normas gerais’ (art. 24, § 1.°). Conseqüentemente, a estas normas gerais se subordinam as que os Estados editarem em vista de suas peculiaridades (art. 24, §§ 2°, 3° e 4°)” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, São Paulo: Saraiva, 1997, v. I, p. 197).

 

29.         A exegese contemporânea aponta um poder constituinte derivado aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. Ele é dimensionado pela supremacia dos princípios da Constituição Federal e gera duas conseqüências: a primeira é a impossibilidade de afronta ao preceito constitucional originário pelo derivado; a segunda significa que “se um preceito constitucional federal não estiver expressamente previsto nas leis orgânicas e Constituições Estaduais, deve o mesmo ser considerado ‘princípio implícito’.” (Rogério Vidal Gandra da Silva Martins e José Ruben Marone. Comentários ao Código Tributário Nacional, Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 31, coordenação Carlos Valder do Nascimento). Daí se estende a mesma proporção entre a Constituição Estadual e a lei local.

 

30.         A própria Constituição do Estado definindo os tributos da competência estadual, reproduziu literalmente o art. 145, II, da Constituição Federal, no art. 160, II, cuja combinação com o seu art. 144, implica, de per si, a inconstitucionalidade. Pelos mesmos motivos, independentemente de serem ou não preceitos autônomos ou de reprodução ou observância obrigatória no plano constitucional estadual, como o Município conferiu moratória a receitas próprias do Estado (taxas e emolumentos), afrontou diretamente os arts. 19, I, e 163, § 6º, da Constituição Estadual, verbis:

“Art. 19. Compete à Assembléia Legislativa, com a sanção do Governador, dispor sobre todas as matérias de competência do Estado, ressalvadas as especificadas no art. 20, e especialmente sobre:

I – sistema tributário estadual, instituição de impostos, taxas, contribuições de melhoria e contribuição social;

(...)

Art. 163. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado ao Estado:

(...)

§ 6º. Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderão ser concedidos mediante lei estadual específica, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição Federal”.

 

31.         É admissível assentar que a lei local diretamente violou a competência estadual para disciplina de suas taxas, afrontando diretamente o art. 19, I, da Constituição Estadual, ainda que não se dispense ao § 6º do art. 163 da Carta Paulista interpretação que corresponda a inserção de qualquer causa de suspensão ou exclusão do crédito tributário, o que não é desarrazoado porque somente lei estadual específica pode autorizar moratória de tributo estadual (art. 146, Constituição Federal c.c. o art. 144 da Constituição Estadual).

 

32.         Por fim, não se empolga com a perspectiva de violação da cláusula de separação dos poderes. Regra é a iniciativa legislativa pertencente ao Poder Legislativo; exceção é a atribuição de reserva a certa categoria de agentes, entidades e órgãos, e que, por isso, não se presume. Corolário é a devida interpretação restritiva às hipóteses de iniciativa legislativa reservada, perfilhando tradicional lição salientando que “a distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593). Neste sentido, colhe-se da Suprema Corte:

“A iniciativa reservada, por constituir matéria de direito estrito, não se presume e nem comporta interpretação ampliativa, na medida em que – por implicar limitação ao poder de instauração do processo legislativo – deve necessariamente derivar de norma constitucional explícita e inequívoca” (STF, ADI-MC 724-RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-04-2001).

 

33.         E especificamente em matéria tributária:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 553/2000, DO ESTADO DO AMAPÁ. DESCONTO NO PAGAMENTO ANTECIPADO DO IPVA E PARCELAMENTO DO VALOR DEVIDO. BENEFÍCIOS TRIBUTÁRIOS. LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR. AUSÊNCIA DE VÍCIO FORMAL. 1. Não ofende o art. 61, § 1º, II, b da Constituição Federal lei oriunda de projeto elaborado na Assembléia Legislativa estadual que trate sobre matéria tributária, uma vez que a aplicação deste dispositivo está circunscrita às iniciativas privativas do Chefe do Poder Executivo Federal na órbita exclusiva dos territórios federais. Precedentes: ADI nº 2.724, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 02.04.04, ADI nº 2.304, rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 15.12.2000 e ADI nº 2.599-MC, rel. Min. Moreira Alves, DJ 13.12.02 2. A reserva de iniciativa prevista no art. 165, II da Carta Magna, por referir-se a normas concernentes às diretrizes orçamentárias, não se aplica a normas que tratam de direito tributário, como são aquelas que concedem benefícios fiscais. Precedentes: ADI nº 724-MC, rel. Min. Celso de Mello, DJ 27.04.01 e ADI nº 2.659, rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 06.02.04. 3. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga improcedente” (STF, ADI 2.464-AP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ellen Gracie, 11-04-2007, v.u., DJe 24-05-2007).

 

34.         Opino pela procedência da ação para declaração integral da inconstitucionalidade da Lei n. 10.199, de 22 de agosto de 2008, que alterou o § 1º do art. 3º da Lei n. 8.404, de 20 de julho de 2001, do Município de São José do Rio Preto.

 

             São Paulo, 13 de novembro de 2008.

  

 

 

MAURÍCIO AUGUSTO GOMES

PROCURADOR DE JUSTIÇA

No exercício de função delegada

Pelo Procurador-Geral de Justiça