Ação Direta de Inconstitucionalidade
Autos nº169.003.0/8-00
Requerente: Prefeito Municipal de
Itapecerica
Objeto: Lei Municipal nº1918, de 19
de agosto de 2008, de Itapecerica da Serra.
Ementa: 1)Ação
direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº1918, de 19 de agosto de
2008. Iniciativa parlamentar. Dispensa do pagamento de “custas de protocolo”
de requerimentos de (a) isenção de IPTU, e (b) extração de cópias de
processos administrativos. 2)Dispensa,
por lei de iniciativa parlamentar, de recolhimento de custo (preço público)
decorrente do exercício de atividade (prestação de serviço) pela
Administração. Matéria que se enquadra no conceito de “gestão executiva”, que
envolve planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de
governo. Violação da regra da separação de poderes (art.5º, c.c. o art.144 da
Constituição do Estado). 3)Competência
exclusiva do Poder Executivo para a fixação, modificação, ou extinção de
preços públicos (art.159 parágrafo único, c.c. o art.144 da Constituição do
Estado). 4)Vedação à
sanção de projeto de lei que crie despesas sem indicação das fontes de
receita (art.25 da Constituição do Estado). 5)Inconstitucionalidade
reconhecida. |
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator
1)Relatório.
Trata-se de ação direta de
inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Itapecerica da
Serra, tendo como alvo a Lei Municipal nº1918, de 19 de agosto de 2008, daquele
Município, sob a alegação de que: (a) houve violação de reserva de iniciativa
do Chefe do Executivo; (b) foi violado o dispositivo que veda a sanção de
projeto de lei que crie despesa sem indicar a fonte de receitas; (c) foi
violada a regra da separação de poderes.
Foi
deferida a liminar, determinando-se a suspensão da eficácia do ato normativo
(fls.35/36). A Câmara Municipal prestou informações (fls.41/44).
Citado
(fls.152/153), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou de realizar a
defesa do ato normativo (fls.155/157).
É
o relato do essencial.
2)Fundamentação.
A Lei Municipal nº1918, de 19 de
agosto de 2008, de Itapecerica da Serra, fruto de iniciativa parlamentar
e que, conforme respectiva rubrica, “Dispõe
sobre isenção de custas de protocolo nas situações que especifica”, tem a
seguinte redação:
“Art.1º. Fica isento de pagamento de custas de protocolo o requerimento que versar sobre pedido de isenção do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e das taxas de que trata a Lei Municipal nº1203, de 20 de dezembro de 2000.
Art.2º. Não serão cobradas custas de protocolo a quem requerer vistas e extração de cópias de autos de processos administrativos que tramitam pela Administração Pública Municipal, ainda que se encontrem arquivados e mesmo que o requerente não seja parte no processo.
Art.3º. As despesas decorrentes da execução da presente lei correrão por conta de dotação constante do orçamento em vigor.
Art.4º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.”
Ocorre que o ato normativo impugnado
é verticalmente incompatível com a Constituição Estadual.
Saliente-se,
de antemão, que o fundamento para o reconhecimento da inconstitucionalidade do
ato normativo não é a reserva de iniciativa do Chefe do Executivo.
Reserva
de iniciativa é matéria de direito estrito, e só deve ser reconhecida nos casos
taxativamente previstos na Constituição Federal ou Estadual. Suas hipóteses
estão indicadas taxativamente no art.61 §1º da CR/88, e no art.24 §2º da
Constituição Paulista, não incluindo matéria tributária.
Aliás,
é pacífico o entendimento, no âmbito do E. STF, no sentido da inexistência de
reserva de iniciativa em matéria de legislação tributária, inclusive no que
toca aos casos de leis tributárias benéficas. Confira-se: MS 22.690, Rel. Min.
Celso de Mello, julgamento em 17-4-97, DJ de 7-12-06.
Entretanto,
a hipótese aqui versada é distinta.
Não
se trata de lei tributária benéfica, mas sim de diploma que diz respeito à cobrança
de preço público.
O
que a lei concede é dispensa de recolhimento de “custas de protocolo” em duas
hipóteses: (a) apresentação de requerimento de isenção de IPTU; e (b)
requerimento de vista e extração de cópias de autos de processos
administrativos que tramitem na Administração Pública Municipal.
Não
se tratando de matéria tributária, mas sim de preços públicos, sua fixação,
modificação ou isenção é matéria que cabe ao Poder Executivo.
Anote-se,
com Hely Lopes Meirelles, que o preço público é cobrado pela Administração
Pública que o fixa, prévia e unilateralmente, por ato do Executivo, para
remuneração de serviços e utilidades prestados diretamente por seus órgãos, ou
indiretamente por seus delegados (concessionários e permissionários), mas
sempre facultativos para os usuários. Enquanto a taxa (tributo) só pode ser
instituída por lei, o preço público ou tarifa “pode ser estabelecida e modificada por decreto ou por outro ato
administrativo” (Direito Municipal
Brasileiro, 6ª ed., 3ª tir., São Paulo, Malheiros, 1993, p.145). No mesmo
sentido é o posicionamento de José Nilo de Castro, Direito Municipal Positivo, 6ªed., Belo Horizonte, Del Rey, 2006,
p.240.
Embora
seja notória a dificuldade de estabelecer a distinção entre taxa e preço
público, anota Luciano Amaro que, de todas as elaborações teóricas, “é possível identificar uma linha comum:
tem-se procurado dizer que ‘alguns’ serviços (ditos ‘essenciais’, ‘próprios’,
‘inerentes’, indispensáveis’ ou ‘compulsórios’, ou ‘públicos’, em determinado
sentido estrito) devem ser taxados, enquanto ‘outros’ serviços’ (sem aqueles
qualificativos) podem ser taxados ou tarifados (ou devem ser tarifados)”.
Na última hipótese é que se reconhece a figura da tarifa ou preço público (Direito Tributário Brasileiro, 13ªed.,
São Paulo, Saraiva, 2007, p.43).
Note-se
que a dificuldade de estabelecimento de critérios para a diferenciação entre
taxas e preços públicos é sentida também na doutrina estrangeira, havendo
respeitável posição, inclusive, no sentido de que caberia ao Poder Público
escolher o regime público (taxas) ou privado (preços) para remuneração dos
serviços que presta. Confira-se: José Juan Ferreiro Lapatza, Direito Tributário – Teoria Geral do Tributo,
São Paulo, edição conjunta Marcial Pons e Manole, 2007, p.176/180.
Diante
do quadro, recomendável é adotar-se o posicionamento do E. STF. A Suprema Corte
Brasileira identificou na facultatividade da imposição, em síntese, a nota
distintiva, reconhecendo-a como principal fundamento para a diferenciação, nos
termos do verbete nº 545 da súmula de sua jurisprudência dominante, assim
vazada:
“Súmula nº 545: Preços de serviços públicos e taxas não se confundem, porque estas, diferentemente daqueles, são compulsórias e têm sua cobrança condicionada à prévia autorização orçamentária, em relação à lei que às instituiu.”
Nesse
contexto, o ato legislativo que trata de preço público, mormente se decorrente
de iniciativa parlamentar, invade a esfera da gestão administrativa, sendo
contrário ao princípio da separação de Poderes, previsto no art.5º da
Constituição Paulista.
É
ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo
cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de
planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder
Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a
função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e
abstração.
O
diploma impugnado, na prática, invadiu a
esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a
execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de
administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely
Lopes Meirelles, anotando que “a
Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos
órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a
Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico
e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo
edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de
funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio
constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da
Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza, ademais, que “todo ato do
Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da
Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo,
por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local
(CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p.708 e 712).
Deste
modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando
leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a
harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.
Como
não se trata de tributo, é forçoso concluir que a dispensa prevista na Lei
Municipal nº1918/2008 quanto ao pagamento de “custas de protocolo” nos pedidos
de isenção de IPTU e extração de cópias em processos administrativos, refere-se
efetivamente à remuneração pelos serviços prestados pelo Poder Público para
atendimento à solicitação do particular.
E
remuneração pelo serviço que não se enquadra como taxa é tarifa ou preço
público.
Ademais,
forçoso reconhecer também que o ato normativo impugnado violou o disposto no
art.159 parágrafo único da Constituição do Estado (aplicável aos Municípios por
força do art.144 da mesma Carta), pelo qual “Os preços públicos serão fixados pelo Executivo, observadas as normas
gerais de Direito Financeiro e as leis atinentes à espécie”.
Em outros termos, se cabe ao Poder
Executivo, por decreto, fixar o preço, cabe a ele também – não ao Legislativo –
modificar o valor ou isentar quanto ao pagamento.
Nesse sentido já se posicionou esse
C. Órgão Especial, como se infere dos julgados a seguir transcritos:
“Ação direta de inconstitucionalidade - Lei n° 5.957, de 13 de junho de 2001, que dispõe sobre dispensa do pagamento de taxa de inscrição em concurso público, realizado por órgãos da administração municipal - Alegada afronta ao artigo 24, § 2o, "4" da Constituição Estadual - Ato normativo de iniciativa do Poder Legislativo - Ato típico de administração, cujo exercício e controle cabem ao Chefe do Poder Executivo – Ofensa ao principio da separação dos poderes - Matéria não afeta ao regime jurídico dos servidores públicos - Momento anterior ao da caracterização do candidato como servidor público - Não incidência da cláusula da reserva de iniciativa legislativa - Valor cobrado com natureza de preço público - Competência privativa do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 24, § 2o, "4", 25, 144 e 159, parágrafo único, todos da Constituição Estadual - Ação procedente.” (ADI 158.730-0/0-00, rel. des. Debatin Cardoso, v.u., j.1º.10.2008).
“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n° 6.505, de 13 de fevereiro de 2006, do município de Franca que “dispõe sobre a isenção da taxa de inscrição nos concursos públicos, realizados pela Prefeitura municipal de Franca, aos candidatos com baixa renda familiar ou portadores de necessidades especiais". Ato normativo de iniciativa de vereador que invade seara própria do prefeito, no que toca ao gerenciamento dos serviços públicos. Natureza de preço público da cobrança dispensada. Competência privativa do Executivo. Ausência de especificação dos recursos para seu atendimento. Violação dos artigos 5º, 25, 144, 159, parágrafo único, todos da Constituição Estadual. Precedente desta corte. Pedido julgado procedente.” (ADI nº 160 027-0/1-00, rel. des. Oscarlino Moeller, v.u., j. 25.06.2008.
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei n° 2.152, de 23/8/2002, do
Município de Guararema - Vício de iniciativa - Caracterização - Usurpação de
atribuições pertinentes a atividades próprias do Poder Executivo - Ocorrência -
Princípio da independência e harmonia entre os poderes - Violação - Invasão de
competência do Executivo, pelo Legislativo – Preço público - Fixação pelo
Executivo - Desrespeito aos princípios orçamentários constitucionais - Criação
de despesa pública sem indicação dos recursos disponíveis para atendê-la -
Impossibilidade - Afronta aos arts. 5º, 25, 47, incisos II e XVII, e 159 e seu
parágrafo único da Constituição Estadual - Inconstitucionalidade declarada -
Ação procedente.” (ADIN nº 124.053-0/6, rel. des. Sousa Lima, v.u., j.
19.04.2006.).
Finalmente,
é necessário recordar que a Constituição do Estado prevê, em seu art.25, que “nenhum projeto de lei que implique a criação
ou aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação
dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos”.
Com base nesse dispositivo, esse C. Órgão
Especial tem reconhecido a inconstitucionalidade de leis que criem encargos
financeiros para o Poder Público, sem indicação da respectiva fonte de
receitas. Confira-se: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j.
19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007,
v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u..
3)Conclusão.
Diante do exposto, nosso parecer é no
sentido do reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei Municipal nº1918, de
19 de agosto de 2008, de Itapecerica da Serra, por incompatibilidade vertical
com o disposto no art.5º, 144, 159 parágrafo único, todos da Constituição do
Estado de São Paulo.
São Paulo, 05 de novembro de 2008.
Maurício Augusto Gomes
Procurador de Justiça
no exercício de função delegada
pelo Procurador-Geral de Justiça