Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo nº 169.680-0/6

Requerente: Prefeito Municipal de Tietê

Objeto: Lei nº 2.974, de 19 de agosto de 2008, do Município de Tietê

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, ajuizada pelo Prefeito Municipal, da Lei nº 2.974, de 19 de agosto de 2008, do Município de Tietê, que "autoriza o Poder Executivo a implantar medidas de redução de consumo e racionalização do uso da água nos órgãos públicos do Município de Tietê". Projeto de vereador. Norma que impõe padrões de conduta e ônus à Administração, dentre os quais o dever de fiscalizar, relativos ao uso racional da água. Usurpação da iniciativa reservada ao chefe do Poder Executivo, a quem compete a gestão administrativa, inclusive atos de planejamento, direção, organização e execução de programas. Criação de despesa, sem previsão de recursos. Ofensa aos artigos 5º, 25, 37 e 47, II e XIV, da CE, aplicáveis aos municípios por força do art. 144 da mesma Constituição. Irrelevância da natureza “autorizativa” da lei impugnada. Parecer pela procedência da presente ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

1) Relatório.

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Tietê, tendo por objeto a Lei Municipal n.º 2.974/08, que “autoriza o Poder Executivo a implantar medidas de redução de consumo e racionalização do uso da água nos órgãos públicos do Município de Tietê”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Segundo o alcaide, a lei deve ser declarada inconstitucional, “vez que maculada por vício de iniciativa, invasão de competência e contrária ao interesse público, além de criar despesas sem indicar especificamente os recursos disponíveis próprios para atender aos novos encargos”.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 37/39).

O Presidente da Câmara Municipal, embora regularmente notificado (fls. 44), não se pronunciou.

A Procuradoria-Geral do Estado não foi citada.

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

 

2) Preliminarmente.

Requeiro a citação do Procurador-Geral do Estado, para que se cumpra o disposto no § 2º do artigo 90 da Constituição do Estado, verbis:

§ 2º - Quando o Tribunal apreciar a inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo, citará, previamente, o Procurador-Geral do Estado, a quem caberá defender, no que couber, o ato ou o texto impugnado.

 

3) Fundamentação.

A lei impugnada tem a seguinte redação:

José Geraldo Fabri, Presidente da Câmara Municipal de Tietê, Estado de São Paulo,

Faz saber que a Câmara manteve e ele, nos termos do artigo 40, parágrafo 7º, da Lei Orgânica do Município, promulga a seguinte lei:

LEI Nº 2.974/2008

"Autoriza o Poder Executivo a implantar medidas de redução de consumo e racionalização do uso da água nos órgãos públicos do Município de Tietê". 

A CÂMARA MUNICIPAL DECRETA:

Artigo 1º - Os órgãos da administração pública direta, indireta, autarquias, fundações e empresas instituídas ou mantidas pelo Poder Público, bem como as demais entidades por ele controladas direta ou indiretamente, poderão implantar, promover e articular ações objetivando a redução e a utilização racional e eficiente da água, nos termos desta lei.

§ 1º - Da utilização da água nas áreas externas das edificações:

1. Ruas, calçadas, praças e áreas de lazer:

a) a limpeza das ruas, calçadas, praças e áreas de lazer só serão feitas através da varredura e recolhimento de detritos, sendo expressamente vedada lavagem com água potável, exceto em casos que se confirme existência de material contagioso ou outros que tragam dano à saúde;

b) fica permitida lavagem somente com água de reuso ou outras fontes (águas de chuva, poços cuja água seja certificada de não contaminação por metais pesados ou agentes bacteriológicos, minas e outros). 

2. Parques, gramado e jardins:

a) não haverá rega nos dias de chuva;

b) em dias sem chuva, a rega só será realizada antes das 9:00 horas ou depois das 17:00 horas, com regador ou mangueira com esguicho disposto de sistema de fechamento (revolver, bico e outros), inclusive com sistema de sprinkler (sistema de aspersão); 

c) no inverno, a rega será feita a cada 03 (três) dias no período da manhã;

d) quando a rega dos gramados e jardins for realizada com sistema de sprinkler (aspersão), este deverá ser verificado periodicamente, para verificar atuação delimitada à área de rega bem como, sem espirrar nas calçadas ou paredes das edificações. 

3. Veículos oficiais: a lavagem não pode ser efetuada em vias e logradouros públicos e quando realizada internamente, só poderá ser executada com balde ou esguicho disposto de sistema de fechamento (revolver, bico e outros). 

§ 2º - Da utilização da água nas áreas internas da edificação: 

1. A lavagem das caixas d'água e/ou reservatórios deverão ser utilizados procedimentos de limpeza e desinfecção com economia de água, inclusive programando data para que seja consumida a água reservada na caixa, deixando disponível apenas um palmo de água para iniciar o processo.

Artigo 2º - Os órgãos constantes do artigo 1º deverão realizar, no prazo de 10 (dez) dias a contar da publicação desta lei, pesquisa de vazamentos em todos os seus prédios e unidades, providenciando imediatamente a substituição e conserto de tubulações, torneiras e demais equipamentos defeituosos; ou providenciando o fechamento dos registros, no caso de ausência de recursos para o conserto. 

Artigo 3º - Para fins de efetivação das medidas de redução de consumo, poderá ser atribuída a uma Secretaria designada pelo Executivo, a responsabilidade pela fiscalização dos órgãos referidos no artigo 1º desta lei. 

Artigo 4º - Para realização dos procedimentos de redução de consumo e verificação de vazamentos, todos os órgãos enunciados no artigo 1º desta lei, designarão responsáveis para atuar como controladores em cada unidade sob sua subordinação. 

§ 1º - O controlador designado exercerá função de fiscalização das instalações da unidade onde trabalha e adotará os procedimentos para cumprimento desta lei. 

§ 2º - Periodicamente, fiscais da Secretaria designada comparecerão às unidades para em conjunto com o controlador local, confirmar a existência de vazamentos e verificar as medidas adotadas, podendo autuar o órgão, notificando o titular para cumprimento das presentes normas. 

Artigo 5º - Os controladores designados pelos órgãos serão capacitados, para melhor desenvolverem esta função, por meio de cursos gratuitos de pesquisa de vazamentos e de uso racional da água, oferecidos pelo Serviço Autônomo Municipal de Água e Esgoto ou outro órgão especializado em saneamento. 

Artigo 6º - Todos os órgãos do artigo 1º desta lei deverão, ainda, utilizar espaços públicos e áreas de livre circulação pública para distribuição de material e divulgação de informações destinadas à redução do consumo e uso racional da água. 

Artigo 7º - Os empregados e servidores do município deverão colaborar com as medidas de redução de consumo e uso racional da água, atuando também como facilitadores das mudanças de comportamento esperadas com estas medidas. 

Artigo 8º - As entidades a que se refere o artigo 1º desta lei, farão constar dos editais para contratações de obras e serviços, tais como, reformas, construções em imóveis próprios ou de terceiros, a obrigatoriedade do emprego de tecnologia que possibilite redução e uso racional da água potável, e da aquisição de novos equipamentos e metais hidráulicos/sanitários econômicos, os quais deverão apresentar melhor desempenho sob o ponto de vista de eficiência no consumo da água potável. 

Artigo 9º - As despesas decorrentes da execução desta lei correrão à conta de dotações orçamentárias próprias.

Artigo 10 - Esta lei entra em vigor na data da sua publicação.

Eu, (Robson Momi), Secretário Legislativo Administrativo da Câmara Municipal de Tietê, a digitei.

Tietê, 19 de agosto de 2008.

JOSÉ GERALDO FABRI

PRESIDENTE

Cuida-se, como se constata, de “lei autorizativa”, que, na verdade, impõe à Administração Pública padrões de conduta em relação ao consumo da água nos prédios públicos e nos próprios municipais.

Disciplina-se o modo de se proceder à limpeza das instalações e veículos oficiais, restrições à rega de praças e parques e até mesmo a forma de se realizar a lavagem das caixas d’água e reservatórios das edificações.

E não é só.

O legislador concebe uma atividade administrativa, afeta “a uma Secretaria designada pelo Executivo” (art. 3º), consistente na fiscalização das regras instituídas.

Atribui-se à Administração o dever de fazer circular informações destinadas à redução do consumo e uso racional da água (art. 6º) e aos empregados e servidores do município a incumbência de colaborar com as medidas implementadas (art. 7º).

A lei conforma os editais de licitação de obras e serviços públicos, para que contenham disposições relativas ao uso eficiente da água (art. 8º).

Em que pesem os elevados propósitos da lei em questão, é forçoso reconhecer que trata de matéria cuja iniciativa é reservada ao chefe do Poder Executivo.

Considerada a iniciativa parlamentar que culminou na edição do ato normativo em epígrafe, é visível que o Poder Legislativo municipal invadiu a esfera de atribuições do Chefe do Poder Executivo.

Ao Legislativo cabe a função de editar atos normativos de caráter geral e abstrato. Ao Executivo cabe o exercício da função de gestão administrativa, que envolve atos de planejamento, direção, organização e execução.

Atos que, na prática, representam invasão da esfera executiva pelo legislador, devem ser invalidados em sede de controle concentrado de normas, na medida em que representam quebra do equilíbrio assentado nos art. 5º, art. 37 e art. 47 incisos II e XIV, todos da Constituição do Estado de São Paulo, aplicáveis aos Municípios por força do art. 144 da referida Carta.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, segundo o qual:

“a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante” (...). “Todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário.” (MEIRELLES, Hely Lopes.. Direito municipal brasileiro. 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis de efeitos concretos, ou que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os Poderes.

Essa é exatamente a hipótese verificada nos autos, na medida em que os dispositivos destacados acima imputaram providências concretas à Administração Municipal. Mutatis mutandis, já proclamou esse Egrégio Plenário que:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito”  (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

Por último, oportuno observar que a adoção das providências descritas na lei, certamente traria despesas para o Erário.

Em casos similares esse E. Tribunal de Justiça tem reconhecido a inconstitucionalidade de leis por violação ao art.25 da Constituição Estadual, em razão da ausência de indicação de recursos disponíveis para fazer frente às despesas criadas (ADINs ns. 18.628-0, 13.796-0, 38.249-0, 36.805.0/2, 38.977.0/0).

Conclui-se, pois, pela afronta aos arts. 5º, 25, 37, 47 incisos II e XIV e 144, da Constituição Bandeirante.

Nem se alegue que, tratando-se de lei autorizativa, o vício estaria superado. Deve-se atentar para o fato de que o Executivo não necessita de autorização para administrar e, no caso em análise, não a solicitou. 

Sérgio Resende de Barros, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina:

"...insistente na pratica legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui  um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa,  praticada cada vez mais exageradamente autorizativa  é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos  que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente"[1].

Bem por isso, não passou despercebido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que "a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo portanto inconstitucional" (ADIN n°593099377 – rel. Des. Maria Berenice Dias – j. 7/8/00).

Esse E. Sodalício também vem afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que as tais “autorizações” são eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.

VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça”[2].

 

4) Conclusão.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 2.974, de 19 de agosto de 2008, do Município de Tietê.

 

São Paulo, 13 de janeiro de 2009.

 

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça

jesp



[1] Leis Autorizativas. Revista da Instituição Toledo de Ensino, agosto a novembro de 2000, Bauru, p. 262.

[2] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748.