Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo nº 170.245.0/4

Requerente: Prefeito de São José do Rio Preto

Objeto: Lei Complementar nº 258, de 22 de agosto de 2008, do Município de São José do Rio Preto

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, ajuizada pelo Prefeito de São José do Rio Preto, da Lei Complementar nº 258, de 22 de agosto de 2008, do mesmo Município, que, alterando a lei que instituiu a Guarda Municipal, elimina sua atribuição de “disciplinar o trânsito, nas vias e logradouros municipais”. Projeto de Vereador. Matéria cuja iniciativa é reservada ao chefe do Poder Executivo, por tratar da organização administrativa. Ofensa ao princípio da separação dos Poderes. Violação dos artigos 5º, 47, II e 144 da Constituição do Estado. Parecer pela procedência da ação direta de inconstitucionalidade.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

1) Relatório.

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de São José do Rio Preto, tendo por objeto a Lei Complementar nº 258, de 22 de agosto de 2008, do Município de São José do Rio Preto que “revoga o inciso II do art. 2º da Lei Complementar nº 177, de 29 de dezembro de 2003”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. Cuidando-se de propositura que extingue atribuições da Guarda Municipal, a matéria é de iniciativa reservada ao chefe do Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei acabou sendo promulgada, segundo o autor, com violação do princípio da separação dos Poderes (fls. 2/11).

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 33/35).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações sobre o processo legislativo (fls. 50 e ss.).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 81/83).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

2) Fundamentação.

Vige no Município de São José do Rio Preto a Lei Complementar nº 177/03 (fls. 57/59), que criou a Guarda Municipal. O art. 2º dessa lei elenca em seus incisos as atribuições dessa corporação. Dentre elas está a previsão de “disciplinar o trânsito, nas vias e logradouros municipais”, contida no inciso II.

A norma impugnada, Lei Complementar nº 258, de 22 de agosto de 2008, “revoga o inciso II do art. 2º da Lei Complementar nº 177, de 29 de dezembro de 2003”. Extingue, portanto, uma das atribuições da Guarda Municipal.

Essa lei foi concebida pelo Vereador Jair Afonso (fls. 56), a meu ver, em desacordo com a regra que se espraia pelos entes federativos de que são de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo as leis que disponham sobre organização administrativa e serviços públicos (art. 61, § 1º, da CF, aplicável ao Município por força dos artigos 47, inc. II, e 144 da Constituição do Estado).

Faço essa assertiva passando ao largo do intenso debate doutrinário e jurisprudencial acerca da possibilidade de se conceder à Guarda Municipal o mister de fiscalizar o trânsito, atividade não prevista no artigo 144, § 8º, da CF ou no artigo 147 da Carta Bandeirante.

Registre-se, então, que, em recentíssimo julgado (Outubro de 2008), por maioria de votos, esse Sodalício declarou inconstitucional a Lei nº 352/06, do Município de Catanduva, que conferia ao guarda a função de fiscalizar o trânsito, por considerá-la típica de polícia administrativa. O julgado tem a seguinte ementa:

Ação direta de inconstitucionalidade - Lei n° 352/18.12.2006, do Município de Catanduva, de iniciativa do alcaide e por este sancionada e promulgada, que "DISPÕE SOBRE A CRIAÇÃO DO SERVIÇO DE FISCALIZAÇÃO DE TRÂNSITO NO MUNICÍPIO DE CATANDUVA, CRIA A FUNÇÃO DE "AGENTE FISCALIZADOR DE TRÂNSITO" E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS", para tanto prevendo que o efetivo para o exercício daquela atividade será extraído do Quadro da Guarda Civil Municipal e inclusive criando, junto ao Departamento Municipal de Trânsito - DEMUTRAN, 15 (quinze) funções de "Agente Fiscalizador de Trânsito - AFT", de livre designação e destituição, a critério e mediante ato próprio do Chefe do Executivo Municipal, que "recairá sobre os Servidores ocupantes do cargo efetivo de "Guarda Civil Municipal Masculino e Feminino" – a guarda municipal é apenas um corpo de vigilantes adestrados e armados para a proteção do patrimônio do Município, do seu quadro não podendo ser extraído o efetivo de agentes fiscalizadores do trânsito da urbe, menos ainda sem concurso, por policial não ser e por conseguinte não poder exercer típica atribuição da polícia - violação aos artigos 115, II, e 147 da Constituição Estadual - ação procedente (ADIN 147983-0/8 – grifo nosso).

De toda sorte, ainda que imbuído do propósito de sanar a eventual inconstitucionalidade do art. 2º, inc. II, da Lei Complementar nº 177/03, o nobre Edil usurpou a iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo.

Com efeito, o processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes[1].

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República[2], conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo difuso ou concentrado por parte do Poder Judiciário.

A iniciativa é o ato que deflagra o processo legislativo. Pode ser geral ou reservada (ou privativa). No primeiro caso, vereador, Mesa, comissão da Câmara, prefeito ou a população podem titularizar o projeto. No segundo, há um único titular.

A lei impugnada originou-se de projeto de autoria do vereador, o que se constitui clara ofensa à Constituição, pois somente ao Chefe do Poder Executivo assiste a iniciativa de leis que extingam atribuições de órgãos municipais (art. 47, inc. II da Constituição Estadual, de aplicação extensível aos municípios por força do art. 144 da mesma Carta).

Invadiu-se claramente a seara da administração pública, da alçada exclusiva do Prefeito, violando-se a prerrogativa deste em analisar a conveniência e oportunidade das providências que a lei quis determinar. Bem por isso, a matéria somente poderia objeto de tramitação legislativa por proposta do próprio Chefe do Poder Executivo.

Ofendeu-se, igualmente, o princípio basilar da separação de poderes. Como já proclamou esse Sodalício:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça”[3].

Deixo consignado, por fim, que tramita pela Procuradoria-Geral de Justiça o protocolado nº 86.762/06, que consiste em representação por inconstitucionalidade material do art. 2º, inc. II, da Lei Complementar Municipal nº 177, de 29 de dezembro de 2003, e seu regulamento (Dec. nº 13.105/06).

3) Conclusão.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Complementar nº 258, de 22 de agosto de 2008, do Município de São José do Rio Preto.

São Paulo, 12 de janeiro de 2009.

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça

jesp



[1] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 675.

[2] Alexandre de Moraes. Direito Constitucional, 23ª. ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 641.

[3] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748.