Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 170.929-0/6

Requerente: FETRABALHO – Federação das Cooperativas de Trabalho do Estado de São Paulo

Objeto: Lei nº 2.624, de 30Out06, do Município de Mairiporã

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida entidade representativa de cooperativas, tendo por objeto a Lei nº 2.624, de 30Out06, do Município de Mairiporã, que “autoriza o Poder Executivo a abrir concorrência pública para concessão de serviço de transporte coletivo do município”. Lei de iniciativa do Poder Executivo. Alegação de violação aos dispositivos constitucionais que estimulam o cooperativismo. Norma que exclui de forma prévia e genérica interessados em participarem de concorrência pública. Violação dos arts. 117, 144, 179 e 188 da Constituição Estadual. Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, interposta por FETRABALHO – Federação das Cooperativas de Trabalho do Estado de São Paulo, em face do art. 2º da Lei Municipal nº 2.624/06, do Município de Mairiporã, relativamente a dispositivo que restringiu a participação de interessados em licitação de concorrência pública para concessão de serviços de transporte coletivo do citado município.

A liminar concedida pela Egrégia Presidência suspende a vigência e a eficácia do dispositivo vergastado (fls. 136/139).

Após manifestação do Procurador-Geral do Estado, abstendo-se de pronunciamento sobre o mérito (fls. 159/161), foram prestadas informações pela Câmara Municipal (fls. 163/224) e pelo Prefeito Municipal (fls. 226/241).

É o breve relatório.

Eis o texto do dispositivo legal atacado (art. 2º, “caput”, Lei Municipal nº 2.624, de 30.Out.06, Município de Mairiporã):

 

“Somente poderão participar da licitação as empresas cuja atividade se relacione com o objeto da concessão e se obriguem a operar os serviços de forma adequada à plena satisfação dos usuários, conforme disposições estabelecidas na Lei Federal nº 8.987, de 13/02/95, bem como Lei Federal nº 8.666, de 21/06/93, e alterações subseqüentes, nos regulamentos, editais e concursos.  

 

O pedido deve ser julgado procedente, reconhecendo-se sua inconstitucionalidade.

O dispositivo legal censurado seleciona previamente quem pode participar da concorrência pública para concessão de transporte coletivo do município de Mairiporã (somente poderão participar da licitação empresas cuja atividade cuja atividade se relacione com o objeto da concessão) (fls. 170).

O edital da concorrência pública, indo mais além, e segundo as normais estabelecidas na legislação municipal pertinente, veda a participação no certame de consórcios e cooperativas.

O autor, instituição representativa de cooperativas, insurge-se contra o dispositivo legal e contra o edital, por afronta aos arts. 179 e 188 da carta bandeirante.

O art. 2º da Lei Municipal nº 2.624/06 – Mairiporã permite a participação no certame tão somente de empresas. Embora não haja menção expressa, obviamente estão excluídas previamente as cooperativas.

O edital da concorrência, este sim, de forma explícita, utilizando a lei hostilizada como fundamento, impede a participação das cooperativas na disputa.

Estabelece o art. 179 da Constituição Estadual:

 

“A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.”

 

Disposição muito semelhante vem logo a seguir, no art. 188:

 

“O Estado apoiará e estimulará o cooperativismo como instrumento de desenvolvimento sócio-econômico (...)”.

 

Trata-se, à evidência, de normas constitucionais programáticas, pois o comando nela contido dirige-se ao legislador, direcionando-o a editar leis que concretizem a vontade do constituinte; nem por isso deixam de ter eficácia, no sentido de impedir a edição que leis que contrariem a diretriz por elas fixada.

Esses dispositivos da Constituição Estadual impedem que o legislador municipal (e também o estadual) edite comandos normativos como aquele constante do dispositivo legal em comento, que, na prática, discriminam, sem justificativa, as cooperativas, previamente excluindo-as de licitação pública, em verdade desestimulando o cooperativismo como instrumento de desenvolvimento econômico. Não pode o legislador infraconstitucional excluir a possibilidade de participação de cooperativas nesse tipo de licitações, por manifesta ofensa à regra constitucional que determina o apoio e o incentivo à formação de cooperativas.

Destacam-se precedentes do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, mencionados na petição inicial, notadamente o acórdão proferido na Apelação Cível n. 2003.001.03643, 17ª. Câmara Cível, j. 28.5.2003, rel. Des. Raul Celso Lins e Silva, assim ementado: 

 

“Mandado de Segurança. Vedação em edital de participação de cooperativas em licitações. Violação de direito líquido e certo. Concessão do writ para admitir a impetrante nas concorrências públicas. Carta da República determina o estímulo do cooperativismo. A lei de licitações não restringe a participação de cooperativas em licitação. Manutenção da sentença no reexame necessário.” (íntegra do acórdão disponível no sítio www.tj.rj.gov.br).

 

Há também firme posicionamento do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, proclamando a inconstitucionalidade de leis (e também de editais, em controle difuso) que impeçam a participação de cooperativas em licitações: 

 

“É inconstitucional o afastamento prévio das Cooperativas de certames licitatórios, tão só pelos benefícios e privilégios legais a elas estendidos, em face do princípio da isonomia dos concorrentes.”. (Apel. Cível Nº 70013362694, TJRS, 21ª. Câm. Cível, rel. Liselena Schifino Robles Ribeiro, j. 22/03/2006; com o mesmo teor, e do mesmo órgão julgador: Ag. de Instr. Nº 70008705568, j. 04/08/2004, e Apelação Cível Nº 70012023784, j. 17/08/2005).

 

        “Apelação Cível. Licitação e Contrato Administrativo. Ação Declaratória. Impedimento da Participação das Cooperativas em Licitações promovidas pelo Poder Público. Descabimento. Ofensa ao princípio constitucional da isonomia. Apelo provido. (Apelação Cível Nº 70012946695, TJRS, 21ª. Câm. Cível, rel. Genaro José Baroni Borges, j. 21/12/2005).

 

        “O edital de processo licitatório que restringe a participação de sociedades cooperativas viola os princípios da isonomia e da competitividade da seleção. Preliminar rejeitada. Recurso provido.” (Agravo de Instrumento nº 70012763140, TJRS, 2ª. Câm. Cível, rel. Roque Joaquim Volkweiss; j. 14/12/2005). ((Ementas obtidas no sítio oficial do Tribunal (www.tj.rs.gov.br).

 

A doutrina acolhe o mesmo entendimento.  

Para Marçal Justen Filho, “é possível e viável a participação de cooperativa em licitação quando o objeto licitado se enquadra na atividade direta e específica para a qual a cooperativa foi constituída”. (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, ed. Dialética, 7ª. ed., 2000, p. 316.)

Ivan Barbosa Regule assinala que “a lei de licitações não permite ao Poder Público ingressar em particularidades desta ou daquela espécie de sociedade, como os encargos a que cada qual se sujeita ou como quanto à natureza de cada uma, para o fim de, a priori, impedir a participação de quem quer que seja em competições licitatórias. (...) existem licitantes habilitados e licitantes inabilitados (...) mas não existem licitantes previamente autorizados a participar, nem outros previamente desautorizados”. (Cooperativas em licitação – podem participar – in “Direito Administrativo, Contabilidade e Administração Pública, n. 4, abril/2000, pp. 25/28.)

         No mesmo sentido pronunciam-se Francisco de Assis Alves e Imaculada Assinante Milani:

 

“Em nome do basilar princípio da igualdade entre os licitantes, não poderá haver qualquer discriminação entre estes. (...) Apenas permitem-se as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (...)

Não há dúvida, pois, de que a cooperativa legalmente constituída, desde que seus fins estatutários sejam compatíveis com o objeto da licitação e atendidos que sejam os requisitos exigidos no edital de convocação, poderá participar de licitação promovida pelo Poder Público.” (Sociedades Cooperativas – Ed. Juarez de Oliveira, 2ª. ed., 2003, p. 119.)

 

Não bastasse a afronta aos dispositivos da carta bandeirante que prestigiam o cooperativismo, o art. 2º, “caput” da Lei Municipal nº 2.624/06 de Mairiporã também ofende o art. 144 da Constituição Estadual.

Com efeito, de acordo com esse preceito, os municípios gozam de autonomia legislativa, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e na própria Constituição Estadual.

Ora, entre esses princípios está o federalismo, consubstanciado em outros, dentre os quais a repartição constitucional de competências entre União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios.

Nesse particular cumpre relembrar que compete privativamente à União legislar sobre normais gerais de licitação para as administrações públicas da União, Estados e Municípios (art. 22, inc. XXVII, CF).

Portanto, ao estabelecer regra genérica com o intuito de previamente selecionar aqueles que podem participar de concorrência pública, o legislador municipal de Mairiporã normatizou de forma geral sobre licitação e, assim, usurpou a competência constitucional privativa da União, afrontando o princípio federativo e, por conseqüência, desrespeitando aos arts. 1º e 18 da Constituição Federal e ao art. 144 da Constituição Estadual.

Não é só.

Outro princípio da Constituição Federal hostilizado pela legislação municipal, e que conduz a outra infração ao art. 144 da Constituição Estadual, é o da igualdade (art. 5º, “caput”, CF).

Isso porque, sem justificativa objetiva e razoável, o dispositivo da lei municipal ora censurado estabeleceu, de forma genérica, prévia seleção quanto àqueles que podem participar de disputa licitatória, alijando interessados (no caso as cooperativas) de qualquer chance de tomar parte no certame.

Confira-se o ensinamento de Alexandre de Moraes:

 

“A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente, por isso, uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos” (Direito Constitucional, 23ª ed. Ed. Atlas, pág. 37).

 

Claro está, portanto, que a lei municipal pecou pela inobservância de princípios constitucionais federais, afrontando, com isso, o art. 144 da Constituição Estadual.

Relevante notar que quando do julgamento da ADI 130.227.0/0-00 em 21.08.07, rel. des. Renato Nalini, esse E. Tribunal de Justiça acolheu a tese acima aventada (possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de lei municipal por violação do princípio da repartição de competências estabelecido pela Constituição Federal), sendo relevante trazer excerto de voto do i. Desembargador Walter de Almeida Guilherme, imprescindível para a elucidação da questão:

 

“(...) Ora, um dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...’.

Sendo a organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na Constituição Federal.

Assim, quando o referido art. 144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência legislativa da união, não estão obedecendo ao princípio federativo, e, pois, afrontando estão o art.144 da Constituição do Estado (...)” (trecho do voto do i. des. Walter de Almeida Guilherme, no julgamento da ADI 130.227.0/0-00).

 

 Esse mesmo fundamento, para fins de reconhecimento de inconstitucionalidade de lei municipal, foi identificado quando do julgamento da ADI 150.574-0/9-00, rel. des. Debatin Cardoso, j. em 07.05.08, sendo oportuno transcrever trecho, ao propósito, do voto vencedor:

 

“(...) Como bem salientado no parecer do douto Procurador-Geral de Justiça: ‘a repartição constitucional de competências é princípio estabelecido pela CF/88 (art.1º e 18), pois reflete um dos aspectos mais relevantes do pacto federativo, ao definir os limites da autonomia dos entes que integram a Federação brasileira. Isso decorre claramente da interpretação sistemática da Constituição Federal.

Daí que, violando-se um princípio constitucional (pacto federativo – repartição constitucional de competências), o que se tem é a ofensa ao art.144 da Constituição Paulista’ (...)”.       

 

Por fim, cumpre arrematar com a constatação de visível ofensa, por parte do dispositivo legal censurado, ao art. 117 da Constituição Estadual, que exige que os processos de licitação pública assegurem igualdade de condições a todos os concorrentes, permitindo-se apenas exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

Bem se vê, pois, que a exclusão prévia e genérica de interessados em participar da disputa, sem a demonstração das exigências de qualificação que autorizem a discriminação, é ofensiva à Constituição Estadual.          

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade do art. 2º, “caput” da Lei Municipal nº 2.624/06 , do Município de Mairiporã, por afronta aos artigos 117, 144, 179 e 188 da Constituição Estadual.

São Paulo, 04 de março de 2.009 .

 

 

        Maurício Augusto Gomes

        Subprocurador-Geral de Justiça

        - Assuntos Jurídicos -

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