Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 171.640-0/4-00

Requerente: Prefeito do Município de Catanduva

Objeto: Lei nº 4.584, de 4 de setembro de 2008

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito, tendo por objeto a Lei nº 4.584/08, do Município de Catanduva, que “autoriza o Poder Executivo a determinar que as consultas médicas e exames laboratoriais, feitos nas Unidades Básicas de Saúde, sejam realizados no prazo máximo de 3 dias, quando o paciente tiver idade superior a 65 anos e quando for portador de deficiência”. Projeto de autoria de Vereador. Matéria, entretanto, que é reservada à iniciativa do Chefe do Poder Executivo, porque diz respeito à forma de prestação do serviço público e gera ônus à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes (art. 5º CE). Criação de despesa, sem indicação da fonte (arts. 25 e 176, I, CE). Lei “autorizativa” que, na verdade, contém determinação e, por isso, não afasta a usurpação da competência material do Prefeito. Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito Municipal de Catanduva, tendo por objeto a Lei nº 4.584, de 4 de setembro de 2008, que “autoriza o Poder Executivo a determinar que as consultas médicas e exames laboratoriais, feitos nas Unidades Básicas de Saúde, sejam realizados no prazo máximo de 3 dias, quando o paciente tiver idade superior a 65 anos e quando for portador de deficiência”.

Sustenta o autor que a lei padece de inconstitucionalidade porque foi projetada no âmbito do Poder Legislativo, com vício de iniciativa e ofensa ao princípio da separação dos poderes. A seu ver, cabe exclusivamente ao Prefeito a iniciativa de lei que diga sobre a organização e o funcionamento da Administração Municipal, como é o caso da norma impugnada.

O pedido de liminar foi deferido (fls. 18/19).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações sobre o processo legislativo (fls. 26 e ss.).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa das normas questionadas, consignando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 62/64).

É a síntese do necessário.

A Lei nº 4.584, de 4 de setembro de 2008, objeto desta ação direta, cria obrigações e fixa condutas para a Administração Municipal de Catanduva, ao determinar “que as consultas médicas e exames laboratoriais feitos nas Unidades Básicas de Saúde sejam realizadas no prazo máximo de 3 (três) dias quando o paciente tiver idade superior a 65 (sessenta e cinco) anos e quando for portador de deficiência física” (art. 1º).

Neste sentido, considerada a iniciativa parlamentar que culminou na edição do ato normativo em epígrafe (o projeto é de autoria do Vereador Sérgio de Almeida – cf. fls. 27), é visível que o Poder Legislativo municipal invadiu a esfera de atribuições do Chefe do Poder Executivo.

Ao Poder Legislativo cabe a função de editar atos normativos de caráter geral e abstrato. Ao Executivo cabe o exercício da função de gestão administrativa, que envolve atos de planejamento, direção, organização e execução.

Atos que, na prática, representam invasão da esfera executiva pelo legislador, devem ser invalidados em sede de controle concentrado de normas, na medida em que representam quebra do equilíbrio assentado nos arts. 5º, 37 e 47, II e XIV, da Constituição do Estado de São Paulo, aplicáveis aos Municípios por força de seu art. 144.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que:

“A Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante (...) todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 2006, 15ª ed., pp. 708, 712, atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis de efeitos concretos, ou que equivalem, na prática, a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os Poderes. Essa é exatamente a hipótese verificada nos autos.

Neste sentido, já proclamou esse Egrégio Tribunal que:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (ADI n. 53.583-0, Rel. Des. Fonseca Tavares).

E nesta linha, verificando a inconstitucionalidade por ruptura do princípio da separação de poderes, este Egrégio Tribunal de Justiça vem declarando a inconstitucionalidade de leis similares (ADI 117.556-0/5-00, Rel. Des. Canguçu de Almeida, v.u., 02-02-2006; ADI 124.857-0/5-00, Rel. Des. Reis Kuntz, v.u., 19-04-2006; ADI 126.596-0/8-00, Rel. Des. Jarbas Mazzoni, v.u., 12-12-2007; ADI 127.526-0/7-00, Rel. Des. Renato Nalini, v.u., 01-08-2007; ADI 132.624-0/6-00, Rel. Des. Mohamed Amaro, m.v., 24-10-2007; ADI 142.130-0/0-00, Rel. Des. Ivan Sartori, 07-05-2008).

Nem se alegue que, tratando-se de lei autorizativa (art. 1º), o vício estaria superado. Deve-se atentar para o fato de que o Executivo não necessita de autorização para administrar e, no caso em análise, não a solicitou. 

Sérgio Resende de Barros, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina:

"...insistente na prática legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa,  praticada cada vez mais exageradamente autorizativa  é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’. O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente" (Leis Autorizativas. Revista da Instituição Toledo de Ensino, agosto a novembro de 2000, Bauru, p. 262).

Bem por isso, não passou despercebido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que:

"a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo portanto inconstitucional" (ADIN n°593099377 – rel. Des. Maria Berenice Dias – j. 7/8/00).

Esse E. Sodalício também vem afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que as tais “autorizações” são eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.

VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIn 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748).

Diante do exposto, o parecer é pela procedência da ação, reconhecendo-se a inconstitucionalidade da Lei nº 4.584, de 4 de setembro de 2008, que “autoriza o Poder Executivo a determinar que as consultas médicas e exames laboratoriais, feitos nas Unidades Básicas de Saúde, sejam realizados no prazo máximo de 3 dias, quando o paciente tiver idade superior a 65 anos e quando for portador de deficiência”.

São Paulo, 5 de maio de 2009.

 

 

        Maurício Augusto Gomes

        Subprocurador-Geral de Justiça

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