Parecer
Autos nº. 171.815-0/3-00
Requerente: Prefeito Municipal de Jandira
Objeto: Lei nº 1.737, de 28 de agosto de 2008, do Município de Jandira
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Jandira, tendo por objeto a Lei nº 1.737, de 28 de agosto de 2008, do Município de Jandira que “dispõe sobre alteração da Lei n. 1.638, de 11 de julho de 2007 e dá outras providências”.
Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.
A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 24/25).
O Presidente da Câmara Municipal deixou transcorrer “in albis” o prazo para informações.
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 40/42).
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
O pedido
de declaração de inconstitucionalidade procede.
A lei em
debate originada de projeto de lei de iniciativa do Poder Legislativo e, mesmo
com o veto do Prefeito Municipal, foi promulgada pelo Presidente da Câmara
Municipal.
Pretende-se
o reconhecimento de afronta ao princípio da independência e harmonia dos
poderes, pois o diploma sob exame, cujo teor encontra-se copiado às fls.21/22,
apresenta vício de iniciativa ao dispor sobre o vale alimentação fornecido aos
servidores municipais.
Verifica-se,
de início, que a inconstitucionalidade reside na ofensa ao artigo 5º, caput da
Constituição Estadual Paulista, no tocante ao princípio da independência e
harmonia de poderes, diante da invasão, pela conduta do Poder Legislativo
local, da competência exclusiva do Poder Executivo.
O
Município, ao lado de sua autonomia política e financeira, tem, igualmente,
liberdade para organizar assuntos de seu peculiar interesse, tal como os
serviços públicos e o regime jurídico dos servidores públicos. Como decorrência
do equilíbrio entre os poderes, o processo legislativo prevê a participação do
Poder Executivo na atividade típica do Poder Legislativo, pela via da
iniciativa, que pode ser reservada ou concorrente.
São
confiadas ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo funções diferenciadas e
independentes, de acordo com a estrutura da organização política da República,
inclusive quanto ao município, é que sua parte integrante. Bem por isso a
Constituição Federal procurou estabelecer as atribuições do Poder Executivo e
Poder Legislativo, fixando tarefas adequadas à organização dos poderes, no que
foi seguida pela Constituição do Estado de São Paulo.
O
Prefeito, enquanto chefe do Poder Executivo, exerce tarefas específicas à
atividade de administrador, tendente à atuação concreta, referentes ao
“planejamento, organização e direção de serviços e obras da municipalidade.
Para tanto, dispõe de poderes correspondentes de comando, de coordenação e de
controle de todos os empreendimentos da Prefeitura ... A execução das obras e
serviços públicos municipais está sujeita, portanto, em toda a sua plenitude, à
direção do Prefeito, sem interferência da Câmara, tanto no que se refere às
atividades internas das repartições da Prefeitura (serviços burocráticos ou
técnicos), quanto às atividades externas (obras e serviços públicos) que o
Município realiza e põe à disposição da coletividade” (Hely Lopes Meirelles,
Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, RT, 3ª ed., pp. 870/873). Em idêntica
lição, José Afonso da Silva, “O Prefeito e o Município”, Fundação Pref. Faria
Lima, 1977, pp. 134/143. Por outro lado, disciplinando atividade abstrata e
genérica, a Câmara Municipal “não administra o Município, estabelece, apenas,
normas de administração” (Hely Lopes Meirelles, ob. cit., p. 444).
Assim o
Município, ao lado de sua autonomia política e financeira, tem, igualmente,
liberdade para organizar assuntos de seu peculiar interesse, tais como a
estruturação do serviço público, que é atividade reservada do chefe do Poder
Executivo.
Na lição
de Hely Lopes Meirelles, esta exclusividade é destinada aos temas que disponham
sobre “a criação, estruturação e atribuição das secretarias, órgãos e entidades
da administração pública municipal; a criação de cargos, funções ou empregos
públicos na administração direta e autárquica, fixação e aumento de sua
remuneração; o regime jurídico dos servidores municipais; e o plano plurianual,
as diretrizes orçamentárias, os orçamentos anuais, créditos suplementares e
especiais” (ob. cit., p. 530).
No tocante
à iniciativa reservada, a Constituição Paulista, repetidora de norma
constitucional federal, delineia os limites de iniciativa legislativa de cada
um dos poderes, podendo “resguardar a seu titular a decisão de propor direito
novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse
preponderante” (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “Do Processo Legislativo”, São
Paulo, Saraiva, 1995, p. 204).
Deste
modo, no município, tem o prefeito municipal a iniciativa reservada para
disciplinar matéria relativa ao servidor público e aos serviços públicos, como
disposto no artigo 24, § 2º, ns. 1 e 4 da Constituição Paulista, de observância
obrigatória dos municípios, como determinado pelo artigo 144 do mesmo diploma
legal. O tema do regime jurídico dos servidores públicos deve ser,
necessariamente, de iniciativa do Poder Executivo, que tem interesse preponderante
em sua organização. A não ser assim adentra o Poder Legislativo na esfera de
atribuições do Poder Executivo, o que não se coaduna com o princípio da
harmonia e independência entre os poderes, conforme já se decidiu na ADIn nº
19.542-0/7, rel. Des. Nigro Conceição, que cita farta jurisprudência, entre as
quais destaco:
“...dizendo respeito ao regime jurídico dos servidores
públicos municipais, a lei deve respeitar a iniciativa privativa do Executivo.
Essa iniciativa é privativa porquanto à Administração não pode ser negada a
prerrogativa de avaliar, a cada momento, a necessidade do provimento de cargos
públicos, bem assim o sistema de vantagens e benefícios atinentes ao Pessoal da
Prefeitura, coadunando-a com o interesse público e a disponibilidade destinada
ao custeio do serviço em questão (ADIn nº 12.240-0, rel. Des. Ney Almada). No
mesmo sentido, ADIn nº 33.924-0/3, Rel. Des. Rebouças de Carvalho.
Sendo
assim, não poderá a Câmara Municipal legislar sobre temas de atribuição
exclusiva do Prefeito Municipal, diante da limitação contida no artigo 24, § 5º
da Carta Paulista, que repete o artigo 63 da Constituição Federal.
No caso em
tela pretendeu a Câmara Municipal exercer uma atuação mediata e genérica,
impondo conduta a ser seguida pelo Poder Executivo, vale dizer, o reajuste do
benefício do vale alimentação aos servidores municipais.
Houve, portanto, limitação à iniciativa
reservada do Poder Executivo. Reconhece-se a interferência em atividade
tipicamente administrativa, pois “em assunto da alçada do Chefe do Executivo,
extrapolando de suas atribuições de edição de normas, com evidente invasão de
competência, afrontando, por via de conseqüência, o princípio da independência
e harmonia dos Poderes” (RTJSP 111/466).
Mas não se
pode olvidar que a lei em tela também ofende o artigo 111 da Carta Paulista, na
medida em que contraria os princípios da moralidade administrativa e do
interesse público.
A
respeito, ensina a doutrina que:
“... a inserção da moralidade
administrativa como princípio veiculado pela norma jurídica determinou não
apenas que a conduta da Administração Pública fosse moral, mas, ainda, que o
próprio Direito elaborado e positivado observasse aquela exigência fundamental.
Destarte, normas legais positivadas sem o acatamento do princípio da moralidade
administrativa são contestáveis perante os órgãos jurisdicionais competentes,
pois afrontam os fundamentos do próprio sistema jurídico. A obrigação jurídica
de conduzir-se segundo os parâmetros de moralidade administrativa não apenas
submete o administrador público, mas também o legislador, como antes
salientado, pois, no Estado Democrático de Direito, é este que elabora, em
geral, a norma segundo a qual aquele se deverá conduzir. Assim, o Direito
elaborado e positivado não poderá ser validado se não se acatar aquele
princípio. O que se constata, então, é que o princípio da moralidade
administrativa não apenas tem o sentido da moralidade da Administração Pública
segundo o Direito, mas a moralidade do Direito para o aperfeiçoamento das
atividades da Administração. A moralidade não está apenas no Direito. O Direito
legítimo traz o grão e produz o fruto da moralidade (Carmen Lúcia Antunes,
Princípios Constitucionais da Administração Pública, Ed. Del Rey, 1994, p.
195).
Sobre o tema, este E. Tribunal de Justiça
já apreciou situação idêntica:
“Ação direta de inconstitucionalidade –
Lei Municipal que dá nova redação à lei que institui auxílio-alimentação a
servidores públicos, ampliando seu campo de incidência – Vício de iniciativa,
que é privativa do Chefe do Poder Executivo – Ação procedente” (ADIn nº
63.352-0/7, Rel. Des. Theodoro Guimarães, j. 26.09.01).
“Lei municipal de
iniciativa de vereador. Promulgação pelo Presidente da Câmara. Autorização ao
Poder Executivo para concessão de cesta básica a servidores públicos
municipais, ativos e inativos e pensionistas. Inconstitucionalidade
reconhecida. Ação procedente” (ADIn nº 66.400-0/9, Rel. Des. Olavo Silveira, j.
25.04.01).
Conclui-se,
portanto, que houve invasão na atribuição reservada do Chefe do Poder Executivo
com a conseqüente imposição de normas que ofende diretamente sua iniciativa
legislativa, com infringência aos artigos 5º, caput, 24, § 2º, nº 4, 111 e 144, todos da
Constituição do Estado de São Paulo.
Não bastasse o acima exposto, em casos
assim esse E. Tribunal de Justiça tem reconhecido a inconstitucionalidade de
normas que criam despesas para o Poder Público, sem a indicação das respectivas
fontes de receita, em violação ao disposto no art.25 da Constituição
Bandeirante. Confiram-se, a título de exemplificação, recentes julgados adiante
indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.;
ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI
135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 1.737/08, do Município de Jandira.
São Paulo, 11 de maio de 2009.
Maurício Augusto Gomes
Subprocurador-Geral de Justiça
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