Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

Processo nº 171.822-0/5-00

Requerente: Prefeito Municipal de Fernandópolis

Objeto: Lei n. 3.385, de 5 de agosto de 2008, do Município de Fernandópolis

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, proposta por Prefeito, da Lei n. 3.385, de 5 de agosto de 2008, do Município de Fernandópolis, que “dispõe sobre a ampliação da área de ocupação do território do município destinada para ‘corredor comercial’ e dá outras providências”. Projeto de iniciativa de Vereador. Impossibilidade, pois compete ao chefe do Poder Executivo o planejamento do uso e ocupação do solo urbano. Norma, ademais, sem o caráter de generalidade e abstração que caracterizam os atos do Legislativo. Casuísmo que denuncia a ausência de planejamento urbano e vinculação ao plano diretor. Parecer pela procedência da ação por ofensa aos artigos 5º, 180, V e 181 da Constituição Estadual.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

1) Relatório.

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal, tendo por objeto a Lei n. 3.385, de 5 de agosto de 2008, do Município de Fernandópolis, que “dispõe sobre a ampliação da área de ocupação do território do município destinada para ‘corredor comercial’ e dá outras providências”.

Sustenta o autor que a norma impugnada alterou a realidade urbanística do Município, transformando área originalmente destinada à ocupação residencial em corredor comercial.

Assevera que a lei padece de inconstitucionalidade formal, pois seu projeto foi concebido por Vereador, em tema cuja iniciativa está reservada ao chefe do Poder Executivo.

Aponta, em conseqüência, violação dos artigos 5º; 47, inc. II, XI e XIV; 111; e 144 da Constituição do Estado.

Destacando que o corredor comercial instituído abrange área institucional e que a desafetação e a alteração promovidas não foram precedidas de estudos técnicos, divisa igual ofensa aos artigos 180 e 181 da Carta Bandeirante.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 89/91).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls.106 e ss., em defesa da lei impugnada. Afirmou que a lei regulariza uma realidade fática já consolidada e que o novo regramento é necessário diante do crescimento da cidade .

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 102/104).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

2) Fundamentação.

A lei impugnada, resultante de projeto apresentado por um vereador, amplia o “Corredor Comercial” para toda a extensão da avenida Plácido Conde, mais 25m de largura de ambos os lados do logradouro público, que passam a integrar a denominada zona CC-1, instituída pela Lei Municipal n. 1.082/86.

A lei impugnada é, de fato, inconstitucional.

São confiadas ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo funções diferenciadas e independentes, de acordo com a estrutura da organização política da República, inclusive quanto ao município, que é sua parte integrante. Bem por isso a Constituição Federal procurou estabelecer as atribuições do Poder Executivo e do Poder Legislativo, fixando funções adequadas à organização dos poderes, no que foi seguida pela Constituição do Estado de São Paulo.

O Prefeito, enquanto chefe do Poder Executivo, exerce tarefas específicas da atividade de administrador, tendente à atuação concreta, devendo planejar, organizar e dirigir a gestão das coisas públicas.       

Em sua função normal e predominante sobre as demais, a Câmara elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta é a sua função específica, bem diferenciada da do Executivo, que é a de praticar atos concretos de administração.  Por meio da edição de leis, a Câmara ditará ao prefeito as normas gerais da administração, sem chegar, no entanto, à prática administrativa. Eis aí a distinção marcante entre a missão normativa da Câmara e a função executiva do prefeito; o Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração (Cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, Malheiros, 14ª. ed., 2006,  pág. 605).

Aplicado esse raciocínio ao caso em exame, temos que a tarefa de adaptar a legislação sobre o uso e ocupação do solo urbano ao plano físico é privativa do Prefeito, que, no exercício dessa atividade, de natureza tipicamente administrativa, não pode sofrer nenhum tipo de interferência indevida do Legislativo local.  Por isso, há que se reconhecer a inconstitucionalidade de lei que alterou o rol de atividades permitidas em via pública específica. 

Ao examinar essa questão, o Plenário desse Egrégio Tribunal de Justiça, em antigo aresto relatado pelo eminente jurista Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, concluiu que:

“... constituem matéria legislativa as regras imperativas, gerais e abstratas que diferenciam as construções de habitações das de comércio e indústria, e, ainda, distinguem as habitações, as casas comerciais e industriais, em diversos tipos, e, afinal, prescrevem restrições ao direito de construir, conforme a zona residencial, comercial ou industrial e de forma mais ou menos rígida, segundo critérios exclusivos ou de predominância. E mais, constituem matéria legislativa as regras imperativas gerais e abstratas que determinam recuos, estabelecem alturas de prédios, normas sobre fachadas e gradis. Enfim, as que estabelecem as regras imperativas gerais e abstratas de zoneamento. Já a especificação de uma via pública, no seu todo ou em parte, se estrita ou prevalentemente residencial é obra administrativa, atividade concreta e específica de caráter casuístico, em função do desenvolvimento local, das exigências dos bairros, das manifestações dos próprios logradouros públicos, em consonância com a fisionomia que assume no seu evolver, suscetível de se modificar por exigências urbanísticas do Município, interesse dos munícipes, só possível de ser bem sentidos pelo Executivo, no seu quotidiano contacto com a vida da cidade, atuando em matéria da sua alçada administrativa, particularizando a lei.” [g.n.] (TJSP, Pleno, RT 289/456).

No mesmo sentido é a lição de  Hely:

 “a lei estabelecerá as diretrizes, os critérios, os usos admissíveis, tolerados e vedados nas zonas previstas; o decreto individualizará as zonas e especificará os usos concretamente para cada local. O zoneamento, no seu aspecto programático e normativo, é objeto de lei, mas na sua fase executiva - em cumprimento da lei - é objeto de decreto” (Cf. ob. cit., pág. 553/554).

No caso dos autos, a lei trata de um logradouro específico. É casuísta e tem conteúdo próprio de ato administrativo, sendo notória a usurpação da competência do Prefeito, e, destarte, a ofensa ao artigo 5º, caput, da Constituição do Estado de São Paulo.

Há ainda um outro aspecto a considerar. 

A norma impugnada interfere diretamente no zoneamento e no planejamento urbano; deveria, por isso, obedecer às diretrizes de um plano diretor, estabelecido em consonância com diversos requisitos, dentre os quais avulta “a observância das normas urbanísticas, de segurança, higiene e qualidade de vida” (CE, arts. 180, V e 181).

Não se concebe, nesta matéria, a edição de norma avulsa, dissociada de um planejamento global. E, de qualquer modo, a iniciativa do processo legislativo deveria ser do Chefe do Poder Executivo, conforme precedente dessa Egrégia Corte:

 “Em certos temas urbanísticos, exigentes de prévio planejamento, tendo em vista o adequado desenvolvimento das cidades, a iniciativa legislativa é do Prefeito, sob cuja orientação e responsabilidade se prepara os diversos planos.  

 (....)

Está claro, assim, que o planejamento é constituído de atos executivos, quer dizer, do exercício de atividade concreta e específica, de natureza administrativa. Isto significa que o planejamento, da contratação de técnicos ou estruturação de serviços públicos de planejamento à elaboração material dos instrumentos, passando pelas avaliações iniciais, pesquisas e idealização das soluções possíveis, é da competência do Poder Executivo” (ADIN n. 66.667-0/6, rel. Des. Dante Busana, v.u.,  j. 12.9.2001).

3) Conclusão.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei n. 3.385, de 5 de agosto de 2008, do Município de Fernandópolis, que “dispõe sobre a ampliação da área de ocupação do território do município destinada para ‘corredor comercial’ e dá outras providências”, por ofensa aos artigos 5º, 180, V  e 181,  da Constituição Estadual.

São Paulo, 26 de janeiro de 2009.

 

 

 

Maurício Augusto Gomes

Procurador de Justiça

no exercício de função delegada

pelo Procurador-Geral de Justiça

jesp