Parecer
Autos
nº172.909-0/0-00
Requerente: Prefeito Municipal de Catanduva
Objeto: Lei Municipal nº4.610, de 17 de novembro de
2008.
Ementa: 1)Ação direta de inconstitucionalidade.
Lei Municipal. Iniciativa parlamentar. Determinação de consignação, nas
publicações oficiais, dos gastos para sua realização.
2)Violação da separação de poderes. Ato
normativo que invade a esfera da gestão administrativa (art.5º, 47 II e XIV da
Constituição Paulista).
3)Quebra da simetria quanto aos sistemas de
controle da administração (art.33, 144 e 150 da Constituição Paulista).
4)Criação de novas despesas sem a indicação da
respectiva fonte de receitas (art.25 da Constituição Paulista).
5)Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo Órgão
Especial
Excelentíssimo
Senhor Desembargador Relator
Trata-se de
ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de
Catanduva, tendo como alvo a Lei Municipal nº4.610, de 17 de novembro de 2008,
de Catanduva, sob a alegação de: (a) violação da regra da separação de poderes;
(b) falta de indicação de recursos para enfrentar as novas despesas; (c)
desrespeito ao modelo constitucional do sistema de controle externo. Apontou,
assim, para a violação dos seguintes artigos da Constituição Paulista: 5º e 144.
Foi denegada a liminar (fls.24/25).
Citado, o Senhor Procurador-Geral do
Estado declinou da defesa do ato normativo (fls.80/82).
A Presidência da Câmara Municipal
prestou informações, sustentando a legitimidade constitucional da lei
(fls.82/88).
Este é o breve relato do que consta dos
autos.
Em
que pese a boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se
transformando na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente
incompatível com nossa sistemática constitucional.
A Lei Municipal nº4.610, de 17 de
novembro de 2008, de Catanduva, fruto de iniciativa parlamentar,
conforme respectiva rubrica “DETERMINA O
PROTOCOLO NA SECRETARIA DA CÂMARA MUNICIPAL, DOS EDITAIS DE LICITAÇÕES ABERTAS,
SOB QUALQUER MODALIDADE OU SUA DISPENSA, PELO MUNICÍPIO DE CATANDUVA, SUAS
AUTARQUIAS, FUNDAÇÕES E EMPRESAS E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS”, cuja redação
encontra-se transcrita às fls.18/19.
A lei, de
iniciativa parlamentar, cria obrigações e estabelece condutas a serem cumpridas
pela Administração Pública Direta e Indireta, prevendo a necessidade de protocolo
na secretaria da Câmara Municipal dos editais de licitações abertas, sob
qualquer modalidade ou sua dispensa, pelo município de Catanduva, suas
autarquias, fundações e empresas.
Não há dúvida de que, como tal, a
iniciativa parlamentar, ainda que revestida de boas intenções, invadiu a esfera
da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional, por violar o disposto
no art.5º e no art.47 II e XIV da Constituição Paulista.
É
ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo
cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de
planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder
Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a
função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e
abstração.
O legislador municipal, na hipótese
analisada, criou obrigações de cunho administrativo para órgãos que integram a
Administração Pública local. Isso, por especificar informações que devem
constar das publicações oficiais, ou mesmo ao determinar o encaminhamento
periódico ao Legislativo, de dados relativos aos gastos com a publicidade
oficial.
Abstraindo quanto aos motivos que podem
ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente
inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão
administrativa do Município.
Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa,
que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento,
a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à
prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Dizer o local de protocolo dos editais
de licitação cabe ao Executivo. Determinar
que o protocolo se de em outros locais, como na Secretaria da Câmara é
deliberar em caráter administrativo, o que extrapola a função legislativa.
Cumpre recordar aqui o ensinamento de
Hely Lopes Meirelles, anotando que “a
Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos
órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a
Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico
e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo
edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de
funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio
constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da
Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”.
Sintetiza, ademais, que “todo ato do
Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da
Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo,
por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local
(CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p.708 e 712).
Deste modo, quando a pretexto de
legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na
prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência
que deve existir entre os poderes estatais.
Esse E. Tribunal de Justiça tem
declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar
que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da
separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a
seguir:
“Ação
direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município
de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos
edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência
entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.”
(TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).
“AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28
de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a
obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos
das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta
utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa
parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do
Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no
exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder
Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual.
JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j.
05.03.2008).
Em
hipótese similar à verificada no caso em exame, além do precedente indicado
pelo autor (ADI 150.355-0/0, rel. des. Oscarlino Moelller, j.20.02.2008),
confira-se ainda o seguinte julgado, desse E. Tribunal de Justiça:
“ADIN
- Lei da Edilidade que ‘OBRIGA A INSTALAÇÃO DE PLACA INFORMATIVA
Ademais,
a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e
contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam
por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o
exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade
da adoção da regra da separação.
Assim, se qualquer emenda
constitucional tendente a abolir o princípio será inconstitucional, por ofensa
à cláusula pétrea contida no art.60 §4º III da CR/88, também será verticalmente
incompatível com o texto constitucional ato normativo de menor positividade que
venha a conflitar com referido núcleo constitucional imodificável.
Deste modo, no caso em exame, ao criar
sistema de controle da Administração Direta ou Indireta do Município o
legislador instituiu metodologia que importa verdadeira capitis diminutio para a Administração, sujeitando-a a restrições
inexistentes no paradigma constitucional federal ou estadual.
Como anota a propósito Hely Lopes
Meirelles, mais uma vez, “(...) é
evidente que essa fiscalização externa, realizada pela Câmara, deve conter-se
nos limites do regramento e dos princípios constitucionais, em especial o da
independência e harmonia dos Poderes” (Direito
municipal brasileiro, cit., p.609).
Tanto a Constituição Federal, como a
Estadual, já estabelecem formas de controle interno e externo, cuja essência
deve ser seguida pelo legislador Municipal.
Recorde-se a propósito o art.31 §1º da
CR/88 prevê que o controle externo da Câmara Municipal sobre o Executivo será “exercido com o auxílio dos Tribunais de
Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos
Municípios, onde houver”.
Por outro lado, o art.33 da
Constituição Paulista prevê que o controle externo seja exercido pela
Assembléia Legislativa, com o auxílio do Tribunal de Contas, com várias
atribuições contidas em seus diversos incisos, que, em linhas gerais, replicam
as atribuições do Tribunal de Contas da União, cf. art.71 da CR/88.
Por seu turno, o art.150 da Carta
Paulista reitera a existência de sistemas de controle interno,
Deste modo, dentro dos sistemas de
controle interno e externo, previstos tanto no texto da Constituição Federal
como na Estadual, não se identifica, nem de modo distante, metodologia de
fiscalização que se assemelhe àquela adotada pelo legislador municipal nos
dispositivos impugnados na presente ação.
A matéria já foi pacificada pelo E.
STF, como se infere dos seguintes precedentes que, mutatis mutandis, são aplicáveis ao caso:
"Os
dispositivos impugnados contemplam a possibilidade de a Assembléia Legislativa
capixaba convocar o Presidente do Tribunal de Justiça para prestar,
pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, importando
crime de responsabilidade a ausência injustificada desse Chefe de Poder. Ao
fazê-lo, porém, o art. 57 da Constituição capixaba não seguiu o paradigma da
Constituição Federal, extrapolando as fronteiras do esquema de freios e
contrapesos — cuja aplicabilidade é sempre estrita ou materialmente inelástica
— e maculando o Princípio da Separação de Poderes. Ação julgada parcialmente
procedente para declarar a inconstitucionalidade da expressão ‘Presidente do
Tribunal de Justiça’, inserta no § 2º e no caput do art. 57 da Constituição do
Estado do Espírito Santo." (ADI 2.911, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento
em 10-8-06, DJ de 2-2-
"Separação
e independência dos Poderes: freios e contra-pesos: parâmetros federais
impostos ao Estado-Membro. Os mecanismos
de controle recíproco entre os Poderes, os ‘freios e contrapesos’ admissíveis
na estruturação das unidades federadas, sobre constituírem matéria
constitucional local, só se legitimam na medida em que guardem estreita
similaridade com os previstos na Constituição da República: precedentes.
Conseqüente plausibilidade da alegação de ofensa do princípio fundamental por
dispositivos da Lei estadual 11.075/98-RS (inc. IX do art. 2º e arts. 33 e 34),
que confiam a organismos burocráticos de segundo e terceiro graus do Poder
Executivo a função de ditar parâmetros e avaliações do funcionamento da Justiça
(...)." (ADI 1.905-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em
19-11-98, DJ de 5-11-04)
"A
fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder Executivo é um dos
contrapesos da Constituição Federal à separação e independência dos Poderes:
cuida-se, porém, de interferência que só a Constituição da República pode
legitimar. Do relevo primacial dos 'pesos e contrapesos' no paradigma de
divisão dos poderes, segue-se que à norma infraconstitucional — aí incluída, em
relação à Federal, a Constituição dos Estados-Membros —, não é dado criar novas
interferências de um Poder na órbita de outro que não derive explícita ou
implicitamente de regra ou princípio da Lei Fundamental da República. O poder
de fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder Executivo é
outorgado aos órgãos coletivos de cada câmara do Congresso Nacional, no plano
federal, e da Assembléia Legislativa, no dos Estados; nunca, aos seus membros
individualmente, salvo, é claro, quando atuem em representação (ou presentação)
de sua Casa ou comissão." (ADI 3.046, Rel. Min. Sepúlveda Pertence,
julgamento em 15-4-04, DJ de 28-5-
Esse posicionamento tem, do mesmo modo,
sido prestigiado por esse E. Tribunal de Justiça:
“INCONSTITUCIONALIDADE
- Ação direta - Inconstitucionalidade do art. 136, da Lei Orgânica do Município
de Franca - Ocorrência - Parágrafo que estabelece prazo para a remessa de
cópias de decretos e portarias pelo Prefeito aos Vereadores, sob cominação de
nulidade - Inadmissibilidade - Limites constitucionais estabelecidos para o
controle externo parlamentar ou legislativo sobre atos do Poder Executivo
extrapolados - Inconstitucionalidade declarada, comunicada a decisão à Câmara
Municipal para a suspensão da execução dessa norma - Art.90 da Constituição do
Estado”. (Relator: Carlos Ortiz - Ação direta de Inconstitucionalidade 12.345-0
- São Paulo - 15.05.91).
“AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Dispositivo da Lei Orgânica que determina ao
Prefeito remeter cópia à Câmara de cada balancete mensal e a publicá-los -
Normas que extravasam os limites do controle externo e da fiscalização próprios
do Poder Legislativo - Invasão, ademais, de esfera de atuação reservada ao
Chefe do Executivo - Desobediência ao princípio da harmonia e independência
entre os Poderes - Inconstitucionalidade reconhecida - Ofensa aos artigos 5º,
150 e 170 da Constituição Estadual - Pedido procedente.” (Ação Direta de
Inconstitucionalidade n.096.538-0 - São Paulo - Órgão Especial - Relator: Viseu
Júnior - 12.02.03 - V.U.)
“AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei Municipal de Miracatu nº 1.299, de
15.4.2005, que impõe ao Prefeito a obrigação de encaminhar ao legislativo
municipal todos os editais de licitações abertas pelo Município para que sejam
afixados em local próprio – Inadmissibilidade – Clara violação ao princípio da
independência e harmonia entre os poderes, com ofensa explícita aos arts. 5º,
144 e 150 da Constituição do Estado de São Paulo – As atribuições do
Prefeito, como administrador do Município, concentram-se em planejamento,
organização e direção dos serviços e obras da Municipalidade – Para a execução
de tais atividades, o Prefeito dispõe de poderes correlacionados a comando, coordenação
e controle de empreendimentos no Município – Se a Câmara Municipal interfere na
competência legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo local,
imobilizando a atuação deste no que concerne aos assuntos de política
administrativa, ainda que a pretexto de exercer a função fiscalizadora de
controle externo, privativa do Tribunal de Contas, configura-se infração à
Carta Estadual – Ação procedente.” (Ação Direita de Inconstitucionalidade n.
123.145-0/9-00 – São Paulo – Órgão Especial – Relator: Aloísio de Toledo César
– 19.04.06 – M.V.)
“AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Lei nº 1.674, de 21 de outubro de 2005, do
Município de Avanhandava, que “dispõe sobre a instituição de controle externo
da qualidade da água distribuída à população de Avanhandava pelo DAAEA” – Lei
de iniciativa de Vereador – Promulgação pelo Presidente da Câmara Municipal –
Matéria afeta à Administração Ordinária – Competência reservada ao Poder
Executivo – Violação dos princípios da independência e harmonia dos poderes e da
iniciativa legislativa – Ação procedente. (Ação Direta de Inconstitucionalidade
n. 128.082-0/7-00 – São Paulo – Órgão Especial – Relator: Denser de Sá –
19.07.06 – V.U.).
Assim,
os dispositivos impugnados na presente ação, nitidamente: (a) violaram o necessário
equilíbrio e harmonia que devem existir entre os Poderes Legislativo e
Executivo; (b) fizeram-no criando sistemática de controle não prevista na nossa
ordem constitucional; (c) desrespeitaram, dessa forma, o “modelo” traçado pelo
constituinte para exercício do sistema de “freios e contrapesos”.
Daí a violação aos art.33, 144 e 150 da
Carta Estadual.
Não
bastasse o acima exposto, em casos assim esse E. Tribunal de Justiça tem
reconhecido a inconstitucionalidade de normas que criam despesas para o Poder
Público, sem a indicação das respectivas fontes de receita, em violação ao
disposto no art.25 da Constituição Bandeirante. Confiram-se, a título de
exemplificação, recentes julgados adiante indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel.
des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.; ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos
Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI 135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa,
j.03.10.2007, v.u..
Diante do
exposto, nosso parecer é no sentido da procedência
da ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal
nº4.610, de 17 de novembro de 2008, de Catanduva.
São Paulo, 13 de abril de 2009.
Maurício Augusto Gomes
Subprocurador-Geral de Justiça
- Assuntos Jurídicos -
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