Parecer
Autos nº. 173.160-0/8-00
Requerente: Prefeito Municipal de Ribeirão Preto
Objeto: Lei nº 10.079, de 26 de maio de 2004, do Município de Ribeirão Preto
Ementa: “Ação direta de inconstitucionalidade.
Lei nº 10.079, de 26 de maio de 2004, do Município de Ribeirão Preto, de iniciativa
parlamentar. Procedência.
1. Instituição de Programa
Municipal de Agricultura Urbana.
2. Matéria inerente à administração
da cidade. Iniciativa legislativa reservada do Chefe do Poder Executivo.
Violação ao princípio da separação dos poderes (Constituição Estadual: arts. 5º;
47, e 144).
3. As regras básicas do processo legislativo federal são de absorção obrigatória no plano estadual – e, consequentemente, no municipal – por sua implicação com o princípio fundamental da separação dos poderes. Preceito extensível e de observância simétrica que limita a auto-organização dos Estados e Municípios” (ADI 168.670-0/3-00).
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Ribeirão Preto, tendo por objeto a Lei Municipal n.º 10.079, de 26 de maio de 2004, daquele município, que “Institui o Programa Municipal de Agricultura Urbana”, cujo texto encontra-se, na íntegra, às fls.86/88.
Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.
A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 33).
O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 47/56, em defesa da lei impugnada. Afirmou que a Lei Orgânica do Município de Ribeirão Preto, em seu artigo 4º, inciso I, outorga ao Legislativo competência para legislar sobre assuntos de interesse local.
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 43/45).
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
Houve afronta aos artigos 5.º, 47, e 144 da
Constituição do Estado de São Paulo. De fato, assim dispõem as referidas normas
constitucionais:
'Art. 5º - São Poderes
do Estado, independentes e
harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Art.
47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas
nesta Constituição:
II
- exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;
Art.
144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e
financeira se auto organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios
estabelecidos na Constituição Federal e nesta
Constituição.'
Ao Poder Legislativo é vedada a administração da
cidade, tarefa que incumbe, no
Município, ao Prefeito, ou ao que, modernamente,
chama-se de 'Governo', que tem na lei[1] um dos
seus mais relevantes instrumentos. O
poder de iniciativa neste campo - administração da Cidade - é do Executivo (melhor, do
'Governo'), participando o Poder Legislativo, quando assim determinar a
Constituição, apenas a qualidade de aprovar-desaprovar os atos[2]. A hipótese é de administração ordinária,
cabendo ao Legislativo apenas o estabelecimento de normas gerais, diretrizes
globais, jamais atos pontuais e específicos.
É a lição dos nossos mais renomados
autores:
"No presidencialismo, a separação entre presidente
e Congresso permite que ocorra pertencer aquele a um partido, a maioria deste a
outro, como tantas vezes já sucedeu nos Estados Unidos. Mas normalmente
presidência e maioria parlamentar têm a mesma cor política, o que estabelece
igual vinculação. Na hipótese primeira, ainda cumpre observar, a subordinação
de certo modo ainda existe, criada pelos meios de ação que tem politicamente o
governo sobre o Congresso, e, especialmente, pelas regras constitucionais
restritivas da iniciativa parlamentar, por exemplo, em matéria financeira. Na
verdade, a tendência contemporânea é a de restringir o Parlamento a uma função
de controle, fazendo dele o fiscal do governo. Volta ele assim para o ponto de
partida, já que, na Idade Média, surgiu como órgão de expressão dos desejos e
particularmente dos reclamos dos governados relativamente ao proceder do
governo. De fato, essa tendência foi assinalada por vários autores, como
Loewenstein, Meynaud etc., e em vários Estados diferentes. Assim, por exemplo,
a prática inglesa mostra o Parlamento reduzido a uma função de controle da
atividade governamental, simplesmente ratificando decisões tomadas pelo
Gabinete, ao mesmo tempo cúpula do partido majoritário, especialmente no campo
normativo."[3]
Hely Lopes Meirelles,
após dizer que 'todo o patrimônio
municipal fica sob a administração do prefeito', afirma que:
"A
atribuição típica e predominante da Câmara é a normativa, isto é, a de regular
a administração do Município e a conduta dos munícipes no que afeta aos
interesses locais. A Câmara não
administra o Município; estabelece, apenas, normas de administração.
Não executa obras e serviços públicos; dispõe, unicamente, sobre sua execução.
Não compõe nem dirige o funcionalismo da Prefeitura; edita, tão-somente,
preceitos para sua organização e direção. Não arrecada nem aplica as rendas
locais; apenas institui ou altera tributos e autoriza sua arrecadação e
aplicação. Não governa o Município; mas regula e controla a atuação
governamental do Executivo, personalizado no prefeito. Eis aí a distinção
marcante entre a missão normativa da Câmara e a função executiva do prefeito; o
Legislativo delibera e atua com caráter regulatório, genérico e abstrato; o Executivo consubstancia os mandamentos
da norma legislativa em atos específicos e concretos de administração. Essa
divisão de funções já era reclamada por Cortines Laxes, nos idos do Império,
"como uma das mais palpitantes necessidades do sistema municipal". E
continua a sê-lo na atualidade, para que os dois Poderes do governo local -
independentes e harmônicos entre si - possam atuar desembaraçadamente no campo
reservado às suas atribuições específicas. A interferência de um Poder no outro
é ilegítima, por atentatória da separação institucional de suas funções (CF,
art. 2°).
Por
idêntica razão constitucional, a Câmara não pode delegar funções ao prefeito,
nem receber delegações do Executivo. Suas atribuições são incomunicáveis,
estanques, intransferíveis (CF, art. 2°). Assim como não cabe à Edilidade
praticar atos do Executivo, não cabe a este substituí-la nas atividades que
lhe são próprias. Em sua função normal e predominante sobre as demais, a Câmara
elabora leis, isto é, normas abstratas, gerais e obrigatórias de conduta. Esta
é sua função específica, bem diferenciada da do Executivo, que é a de praticar
atos concretos de administração. Já dissemos - e convém se repita - que o
Legislativo provê in genere, o
Executivo in specie; a Câmara edita
normas gerais, o prefeito as aplica aos casos particulares ocorrentes. Daí não ser permitido à Câmara intervir
direta e concretamente nas atividades reservadas ao Executivo, que pedem
provisões administrativas especiais manifestadas em ordens, proibições,
concessões, permissões, nomeações, pagamentos, recebimentos, entendimentos
verbais ou escritos com os interessados, contratos, realizações materiais da
Administração e tudo o mais que se traduzir em atos ou medidas de execução
governamental".[4]
Ora, a lei em questão, de iniciativa de vereador, configura
ingerência nas prerrogativas do Prefeito
Municipal, a malferir, portanto, entre outros, o artigo 5.º da Constituição do
Estado de São Paulo, que consagra o princípio da separação entre os Poderes. A Câmara Municipal de Ribeirão Preto pretende
administrar o Município, através de leis inconstitucionais, atos pontuais, específicos, programas de administração, matéria que não
pode ser objeto de lei, mas de atos administrativos oriundos do Poder
Executivo.
Dentre as funções de governo do
Prefeito estão as funções executivas,
que no sentido estrito da expressão, compreendem o planejamento, a organização, a direção, o comando, a coordenação e o
controle dos serviços públicos (cf. José Afonso da Silva, “O Prefeito e o
Município”, 1977, págs. 134/143).
Esse
E. Tribunal de Justiça já decidiu
que a interferência da Câmara “em assunto da alçada do Chefe do Executivo,
extrapolando de suas atribuições de edição de normas, com evidente invasão de
competência, afrontando, por via de conseqüência, o princípio da independência e
harmonia dos Poderes” (ADIn nº 7.945.0, rel. Des. Prado Rossi, RTJSP 111/466).
Também assim o C. Supremo Tribunal
Federal:
‘AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 2.719-1. ESPÍRITO SANTO.
RELATOR :
MIN: CARLOS VELLOSO.
REQTE. :
GOVERNADOR DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO
REQDA. : ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO
ESPÍRITO SANTO
Decisão: O Tribunal, por unanimidade, julgou
procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da Lei n° 7.157, de 30 de abril de 2002, do Estado do
Espírito Santo. Votou o Presidente. Ausentes, justificadamente, os Senhores
Ministros Marco Aurélio, Presidente, e Moreira Alves, e, neste julgamento, o
Senhor Ministro Nelson Jobim. Presidência do
Senhor Ministro Ilmar Galvão, Vice Presidente. Plenário, 20.03.2003.
EMENTA:
CONSTITUCIONAL. ADMlNISTRATlVO. LEI QUE ATRIBUI TAREFAS AO DETRAN/ES, DE
INICIATIVA PARLAMENTAR: INCONSTITUCIONALIDADE. COMPETÊNCIA DO CHEFE DO PODER
EXECUTIVO. C.F., art. 61, § 1°-, II, e, art. 84, II e VI. Lei 7.157, de 2002,
do Espírito Santo.
I. - É de iniciativa do Chefe do Poder
Executivo a proposta de lei que vise a criação, estruturação e atribuição de órgãos da administração
pública: C.F. art. 61; § 1 °-, II, e, art. 84; II e VI.
II. - As
regras do processo legislativo federal; especialmente as que dizem respeito à
iniciativa reservada, são normas de observância obrigatória pelos
Estados-membros.
III. -
Precedentes do STF
IV - Ação direta de inconstitucionalidade julgada
procedente.’
Evidentemente
que não pode a Câmara Municipal administrar por meio de leis; as leis formais.
É que a idéia da distribuição do poder político do Estado está profundamente
associada à necessidade de limitar a autoridade estatal e de conferir efetivo
respeito às franquias individuais (cf. James Madison, em “O Federalista”, p.
417/421).
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 10.079, de 26 de maio de 2004, do Município de Ribeirão Preto.
São Paulo, 6 de maio de 2009.
Maurício Augusto Gomes
Subprocurador-Geral de Justiça
- Assuntos Jurídicos -
fjyd
[1] Conf. 'El Concepto de ley en la constitucion
alemana'. Christian Starck,
p. 73, CEC, Madrid, 1979.
[2] "...II
Potere governante è organo che gode di
fatto (e talvolta di diritto) di una stabilità garantita, necessaria per la
traduzione in atto di un indirizzo. È in genere anche delegatario di rilevanti
porzioni di funzione normativa. Il Legislativo. La sua funzione è
divenuta quella del convalidare-confermare solenemente l'indirizzo politico
deciso dal Potere Governante, rivestendone le misure principali della forma
della legge. Il blocco - con voto negativo - dell'indirizzo del Potere governante, o la rimozione
formale di quest'ultimo - quando il regime lo ammette - devono restare, per le
esigenze del modello, eventi assolutamente eccezionali; e tali di regola sono.
II Legislativo controlla il Potere governante anche con altri mezzi
(interrogazioni, inchieste, ecc.). Provede con leggi di sua scelta a integrare
normativamente le scelte fatte dall'indirizzo governativo." Giovanni Bognetti,
'In' 'Digesto Delle Discipline Pubblicistiche', p. 376, XI, UTET.
[3] Manoel Gonçalves
Ferreira Filho, 'Do Processo Legislativo', p. 271, Saraiva, São Paulo, 2001.
[4] ‘Direito Municipal Brasileiro’, Malheiros,
12.ª ed., São Paulo, p. 576.