Parecer
Autos nº. 174.000-0/6-00
Requerente: Prefeito Municipal de São José do Rio Preto
Objeto: Lei nº 10.153, de 28 de novembro de 2008, do Município de São José do Rio Preto (art.2º, parág. único)
Ementa: Ementa:
1)Ação direta de inconstitucionalidade. Lei
Municipal. Iniciativa parlamentar. Vedação de atividade à empresa pública
municipal.
2)Violação da separação de poderes. Ato normativo
que invade a esfera da gestão administrativa (art.5º, 47 II e XIV da
Constituição Paulista).
3)Quebra da simetria quanto aos sistemas de
controle da administração (art.33, 144 e 150 da Constituição Paulista).
4)Criação de novas despesas sem a indicação da
respectiva fonte de receitas (art.25 da Constituição Paulista).
5)Inconstitucionalidade reconhecida.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de São José do Rio Preto, tendo por objeto a Lei Municipal n.º 10.153/08 (art.2º parág. único), daquele município, que veda “à Emurb a execução de serviços e ou atividades que sejam competências exclusivas de Secretarias Municipais”.
Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu teve o art.2º acrescido do parágrafo único pela Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.
A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 19/21).
O Presidente da Câmara Municipal se manifestou às fls. 28/30, resumindo-se aos trâmites na casa, até a aprovação da lei.
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 72/74).
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
Em que pese a
boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se transformando
na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente incompatível com
nossa sistemática constitucional.
O parágrafo único do artigo 2º, da Lei
Municipal n.º 10.153/08, de São José do Rio Preto, fruto de iniciativa
parlamentar, veda “à Emurb a execução de serviços e ou atividades que sejam
competências exclusivas de Secretarias Municipais”, cuja redação encontra-se
transcrita às fls.53.
A lei, de iniciativa parlamentar, cria
obrigações e estabelece condutas a serem cumpridas pela Administração Pública
Direta e Indireta, prevendo a vedação de execução de serviços e ou atividades
que sejam competências exclusivas de Secretarias Municipais, onerando e
eventualmente sobrecarrecando, de certa forma, estas últimas.
Não há dúvida de que, como tal, a
iniciativa parlamentar, ainda que revestida de boas intenções, invadiu a esfera
da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional, por violar o disposto
no art.5º e no art.47 II e XIV da Constituição Paulista.
É ponto pacífico na doutrina, bem como
na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de
administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e
execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder
Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos
normativos revestidos de generalidade e abstração.
O legislador municipal, na hipótese
analisada, criou obrigações de cunho administrativo para órgãos que integram a
Administração Pública local. Isso, por impedir que uma empresa pública possa
praticar determinadas atividades.
Abstraindo quanto aos motivos que podem
ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente
inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão
administrativa do Município.
Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa,
que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento,
a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à
prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.
Dizer a respeito da execução de
serviços e atividades públicas do município cabe ao Executivo. Impedir que uma empresa pública desenvolva
determinada atividade é deliberar em caráter administrativo, o que extrapola a
função legislativa.
Cumpre recordar aqui o ensinamento de
Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode
legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão
própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a
Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em
atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o
Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que
residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional
(art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou
Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza,
ademais, que “todo ato do Prefeito que
infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que
invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por
ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF,
art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed.,
atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo,
Malheiros, 2006, p.708 e 712).
Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder
Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros
atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre
os poderes estatais.
Esse E. Tribunal de Justiça tem
declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar
que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da
separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a
seguir:
“Ação direta
de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São
José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos
edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência
entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.”
(TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).
“AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de
setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a
obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos
das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta
utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa
parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do
Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no
exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder
Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual.
JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j.
05.03.2008).
Em hipótese
similar à verificada no caso em exame, além do precedente indicado pelo autor
(ADI 150.355-0/0, rel. des. Oscarlino Moelller, j.20.02.2008), confira-se ainda
o seguinte julgado, desse E. Tribunal de Justiça:
“ADIN - Lei da Edilidade que
‘OBRIGA A INSTALAÇÃO DE PLACA INFORMATIVA
Ademais,
a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e
contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam
por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o
exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à
intensidade da adoção da regra da separação.
Assim, se qualquer emenda
constitucional tendente a abolir o princípio será inconstitucional, por ofensa
à cláusula pétrea contida no art.60 §4º III da CR/88, também será verticalmente
incompatível com o texto constitucional ato normativo de menor positividade que
venha a conflitar com referido núcleo constitucional imodificável.
Deste modo, no caso em exame, ao criar
sistema de controle da Administração Direta ou Indireta do Município o
legislador instituiu metodologia que importa verdadeira capitis diminutio para a Administração, sujeitando-a a restrições
inexistentes no paradigma constitucional federal ou estadual.
Como anota a propósito Hely Lopes
Meirelles, mais uma vez,
“(...) é evidente que essa fiscalização
externa, realizada pela Câmara, deve conter-se nos limites do regramento e dos
princípios constitucionais, em especial o da independência e harmonia dos
Poderes” (Direito municipal
brasileiro, cit., p.609).
Tanto a Constituição Federal, como a
Estadual, já estabelecem formas de controle interno e externo, cuja essência
deve ser seguida pelo legislador Municipal.
Recorde-se a propósito o art.31 §1º da
CR/88 prevê que o controle externo da Câmara Municipal sobre o Executivo será “exercido com o auxílio dos Tribunais de
Contas dos Estados ou do Município ou dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos
Municípios, onde houver”.
Por outro lado, o art.33 da
Constituição Paulista prevê que o controle externo seja exercido pela
Assembléia Legislativa, com o auxílio do Tribunal de Contas, com várias
atribuições contidas em seus diversos incisos, que, em linhas gerais, replicam
as atribuições do Tribunal de Contas da União, cf. art.71 da CR/88.
Por seu turno, o art.150 da Carta
Paulista reitera a existência de sistemas de controle interno,
Deste modo, dentro dos sistemas de
controle interno e externo, previstos tanto no texto da Constituição Federal
como na Estadual, não se identifica, nem de modo distante, metodologia de
fiscalização que se assemelhe àquela adotada pelo legislador municipal nos
dispositivos impugnados na presente ação.
A matéria já foi pacificada pelo E. STF,
como se infere dos seguintes precedentes que, mutatis mutandis, são aplicáveis ao caso:
"Os
dispositivos impugnados contemplam a possibilidade de a Assembléia Legislativa
capixaba convocar o Presidente do Tribunal de Justiça para prestar,
pessoalmente, informações sobre assunto previamente determinado, importando
crime de responsabilidade a ausência injustificada desse Chefe de Poder. Ao
fazê-lo, porém, o art. 57 da Constituição capixaba
não seguiu o paradigma da Constituição Federal, extrapolando as fronteiras do
esquema de freios e contrapesos — cuja aplicabilidade é sempre estrita ou
materialmente inelástica — e maculando o Princípio da Separação de Poderes.
Ação julgada parcialmente procedente para declarar a inconstitucionalidade da
expressão ‘Presidente do Tribunal de Justiça’, inserta no § 2º e no caput do
art. 57 da Constituição do Estado do Espírito Santo." (ADI 2.911, Rel.
Min. Carlos Britto, julgamento em 10-8-06, DJ de 2-2-
"Separação
e independência dos Poderes: freios e contra-pesos: parâmetros federais
impostos ao Estado-Membro. Os mecanismos
de controle recíproco entre os Poderes, os ‘freios e contrapesos’ admissíveis
na estruturação das unidades federadas, sobre constituírem matéria
constitucional local, só se legitimam na medida em que guardem estreita
similaridade com os previstos na Constituição da República: precedentes.
Conseqüente plausibilidade da alegação de ofensa do princípio fundamental por
dispositivos da Lei estadual 11.075/98-RS (inc. IX do art. 2º e arts. 33 e 34),
que confiam a organismos burocráticos de segundo e terceiro graus do Poder
Executivo a função de ditar parâmetros e avaliações do funcionamento da Justiça
(...)." (ADI 1.905-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em
19-11-98, DJ de 5-11-04)
"A
fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder Executivo é um dos
contrapesos da Constituição Federal à separação e independência dos Poderes:
cuida-se, porém, de interferência que só a Constituição da República pode
legitimar. Do relevo primacial dos
'pesos e contrapesos' no paradigma de divisão dos poderes, segue-se que à norma
infraconstitucional — aí incluída, em relação à Federal, a Constituição dos
Estados-Membros —, não é dado criar novas interferências de um Poder na órbita
de outro que não derive explícita ou implicitamente de regra ou princípio da
Lei Fundamental da República. O poder de fiscalização legislativa da ação
administrativa do Poder Executivo é outorgado aos órgãos coletivos de cada
câmara do Congresso Nacional, no plano federal, e da Assembléia Legislativa, no
dos Estados; nunca, aos seus membros individualmente, salvo, é claro, quando
atuem em representação (ou presentação) de sua Casa ou comissão." (ADI
3.046, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 15-4-04, DJ de 28-5-
Esse
posicionamento tem, do mesmo modo, sido prestigiado por esse E. Tribunal de
Justiça:
“INCONSTITUCIONALIDADE - Ação
direta - Inconstitucionalidade do art. 136, da Lei Orgânica do Município de
Franca - Ocorrência - Parágrafo que estabelece prazo para a remessa de cópias
de decretos e portarias pelo Prefeito aos Vereadores, sob cominação de nulidade
- Inadmissibilidade - Limites constitucionais estabelecidos para o controle
externo parlamentar ou legislativo sobre atos do Poder Executivo extrapolados -
Inconstitucionalidade declarada, comunicada a decisão à Câmara Municipal para a
suspensão da execução dessa norma - Art.90 da Constituição do Estado”.
(Relator: Carlos Ortiz - Ação direta de Inconstitucionalidade 12.345-0 - São
Paulo - 15.05.91).
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Dispositivo da Lei Orgânica que determina ao Prefeito remeter cópia à Câmara de cada balancete mensal e a publicá-los - Normas que extravasam os limites do controle externo e da fiscalização próprios do Poder Legislativo - Invasão, ademais, de esfera de atuação reservada ao Chefe do Executivo - Desobediência ao princípio da harmonia e independência entre os Poderes - Inconstitucionalidade reconhecida - Ofensa aos artigos 5º, 150 e 170 da Constituição Estadual - Pedido procedente.” (Ação Direta de Inconstitucionalidade n.096.538-0 - São Paulo - Órgão Especial - Relator: Viseu Júnior - 12.02.03 - V.U.)
“AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE – Lei Municipal de Miracatu nº 1.299, de 15.4.2005, que
impõe ao Prefeito a obrigação de encaminhar ao legislativo municipal todos os
editais de licitações abertas pelo Município para que sejam afixados em local
próprio – Inadmissibilidade – Clara violação ao princípio da independência e
harmonia entre os poderes, com ofensa explícita aos arts. 5º, 144 e 150 da
Constituição do Estado de São Paulo – As atribuições do Prefeito, como administrador do
Município, concentram-se em planejamento, organização e direção dos serviços e
obras da Municipalidade – Para a execução de tais atividades, o Prefeito dispõe
de poderes correlacionados a comando, coordenação e controle de empreendimentos
no Município – Se a Câmara Municipal interfere na competência legislativa
reservada ao Chefe do Poder Executivo local, imobilizando a atuação deste no
que concerne aos assuntos de política administrativa, ainda que a pretexto de
exercer a função fiscalizadora de controle externo, privativa do Tribunal de
Contas, configura-se infração à Carta Estadual – Ação procedente.” (Ação
Direita de Inconstitucionalidade n. 123.145-0/9-00 – São Paulo – Órgão Especial
– Relator: Aloísio de Toledo César – 19.04.06 – M.V.)
“AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE – Lei nº 1.674, de 21 de outubro de 2005, do Município de
Avanhandava, que “dispõe sobre a instituição de controle externo da qualidade
da água distribuída à população de Avanhandava pelo DAAEA” – Lei de iniciativa
de Vereador – Promulgação pelo Presidente da Câmara Municipal – Matéria afeta à
Administração Ordinária – Competência reservada ao Poder Executivo – Violação
dos princípios da independência e harmonia dos poderes e da iniciativa
legislativa – Ação procedente. (Ação Direta de Inconstitucionalidade n.
128.082-0/7-00 – São Paulo – Órgão Especial – Relator: Denser de Sá – 19.07.06
– V.U.).
Assim,
os dispositivos impugnados na presente ação, nitidamente: (a) violaram o
necessário equilíbrio e harmonia que devem existir entre os Poderes Legislativo
e Executivo; (b) fizeram-no criando sistemática de controle não prevista na
nossa ordem constitucional; (c) desrespeitaram, dessa forma, o “modelo” traçado
pelo constituinte para exercício do sistema de “freios e contrapesos”.
Daí a violação aos art.33, 144 e 150 da
Carta Estadual.
Não bastasse o acima exposto, em casos
assim esse E. Tribunal de Justiça tem reconhecido a inconstitucionalidade de
normas que criam despesas para o Poder Público, sem a indicação das respectivas
fontes de receita, em violação ao disposto no art.25 da Constituição
Bandeirante. Confiram-se, a título de exemplificação, recentes julgados adiante
indicados: ADI 134.844-0/4-00, rel. des. Jarbas Mazzoni, j. 19.09.2007, v.u.;
ADI 135.527-0/5-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.; ADI
135.498-0/1-00, rel. des. Carlos Stroppa, j.03.10.2007, v.u.
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da do parágrafo único do art.2º, Lei Municipal nº 10.153, de 28 de novembro de 2008, do Município de São José do Rio Preto.
São Paulo, 11 de maio de 2009.
Maurício Augusto Gomes
Subprocurador-Geral de Justiça
- Assuntos Jurídicos -
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