Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 174.114.0/6

Requerente: Prefeito de São José do Rio Preto

Objeto: Lei nº 10.296, de 29 de dezembro de 2008, do Município de São José do Rio Preto

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal, em face da Lei nº 10.296, de 29 de dezembro de 2008, do Município de São José do Rio Preto. Lei de iniciativa de Vereador, que “autoriza a regularização de obras” no Município. Imposição de obrigações ao Poder Executivo e normatização do serviço público. Temas que demandam estudos técnicos e a avaliação de conveniência e oportunidade a cargo do Prefeito. Natureza “autorizativa” da lei que é irrelevante para o deslinde da questão. Violação do princípio da separação dos poderes reconhecida. Parecer pela declaração da inconstitucionalidade.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de São José do Rio Preto, tendo por objeto a Lei nº 10.296, de 29 de dezembro de 2008, do mesmo Município, que “autoriza a regularização de obras no Município de São José do Rio Preto”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal. Aponta ofensa ao princípio da separação dos poderes, previsto no art. 5º da Constituição Paulista.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 19).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações a fls. 30 e ss. sobre o processo legislativo.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 69/71).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A lei impugnada tem a seguinte redação:

LEI Nº 10.296, de 29 de dezembro de 2008

Autoriza a regularização de obras no Município de São José do Rio Preto, nos termos previstos nesta Lei.

Ver. ADNEY SECCHES, Presidente da Câmara Municipal de São José do Rio Preto, Estado de São Paulo, usando das atribuições que me são conferidas por Lei.

FAÇO SABER que a Câmara Municipal manteve e eu promulgo, nos termos do § 6º do artigo 44 da Lei Orgânica do Município, a seguinte Lei:

Art. 1º - Será expedido ALVARÁ DE REGULARIZAÇÃO, a requerimento do interessado, aos imóveis reformados, ampliados ou construídos fora das normas legais e dentro do perímetro urbano da cidade, desde que observados os seguintes requisitos:

a)      sejam atendidos os dispositivos contidos no Título 11, Capítulo-Secção V, do Código Civil Brasileiro; quando a construção possuir um corredor inferior a um metro ao lado;

b)      ficam incluídas no item 1º todas as construções que estiverem na Lei 4007/86, no qual, havendo desapropriação da referida rua, toda despesa será por conta do proprietário com a anuência do imóvel;

c)       que as obras estejam em fase de cobertura até a data da promulgação da presente Lei;

d)      que os usos não sejam julgados nocivos pelos órgãos competentes;

e)      que as partes reformadas, ampliadas ou construídas sejam inclusos para efeito do IPTU;

f)       que a critério da autoridade competente, se houver necessidade, sejam apresentados planta e memorial descritivos, devidamente assinados por responsável técnico e credenciado;

g)      que o pedido de regularização seja efetuado até 120 (cento e vinte) dias úteis após a data da publicação da presente Lei.

Art. 2º - Ficam também com direito de regularização todas as obras que foram multadas, embargadas e aquelas que foram cobradas taxas de licença antes da promulgação da Lei.

Art. 3º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. 

Câmara Municipal de São José do Rio Preto, 29 de dezembro de 2008.

Ver. ADNEY SECCHES

Presidente da Câmara

Cuida-se de lei de eficácia temporária (120 dias úteis a contar da publicação), cujo projeto nasceu na Câmara Municipal de São José do Rio Preto, por iniciativa do Vereador José Ferreira Zezinho de Oliveira (autógrafo nº 11.116/2008). Tinha por escopo “dar condições legais e atender as necessidades de grande número de munícipes que desejam regularizar seu imóvel” (fls. 42).

Em que peses os elevados propósitos que inspiraram o Edil, são procedentes os argumentos contidos na inicial e, de fato, a norma promulgada é inconstitucional, como se demonstrará a seguir.

O gerenciamento da prestação de serviços públicos no município é competência do Poder Executivo, único dos poderes que detém instrumentos e recursos próprios para avaliar a conveniência e oportunidade da administração pública. 

Através da legislação em exame, o Legislativo “autoriza” a regularização dos imóveis construídos ou em construção (art. 1º, alínea c) erigidos em desacordo com as normas em vigor, desde que o correspondente pedido seja formulado em até 120 dias úteis depois da promulgação da lei.

A norma impugnada, em que pese se tratar de “autorizativa”, impõe obrigações ao Poder Executivo. É evidente que, ao estipular os requisitos para a expedição do “alvará de regularização”, dentre os quais, “se houver necessidade”, a análise da planta e memorial descritivos, a lei em análise acaba por dispor sobre o serviço público.

No regime constitucional vigente, entretanto, leis que disciplinam a gestão da administração pública devem ser concebidas pelo chefe do Poder Executivo.

Logo, se houve atribuição de funções a órgão municipal, dita legislação é incompatível com os arts. 24, § 2º, 2 e 47, XIX, da Carta Estadual: cabe ao Prefeito a distribuição de tarefas a seus subalternos, e, quando isso implicar em aumento de despesa (que se presume em razão dos encargos acrescidos à Administração), a ele incumbe o encaminhamento de proposta legislativa.

Além disso, nessa matéria, é o Executivo quem tem melhores condições de avaliar quais as conseqüências que a consolidação da situação dos imóveis construídos sem atenção à disciplina normativa poderá gerar, adotando medidas para permitir ou não a regularização dos prédios em desconformidade com as posturas municipais.

Por isso, no caso vertente, o legislador municipal imiscuiu-se em assunto da competência do Executivo, com o que também afrontou o princípio da separação dos poderes, de que trata o art. 5º da Carta Bandeirante, expressamente invocado pelo autor da ação.

Nem se alegue que, tratando-se de lei autorizativa, o vício estaria superado. Deve-se atentar para o fato de que o Executivo não necessita de autorização para administrar e, no caso em análise, não a solicitou. 

Sérgio Resende de Barros, analisando a natureza das intrigantes leis autorizativas, especialmente quando votadas contra a vontade de quem poderia solicitar a autorização, ensina:

"...insistente na pratica legislativa brasileira, a ‘lei’ autorizativa constitui  um expediente, usado por parlamentares, para granjear o crédito político pela realização de obras ou serviços em campos materiais nos quais não têm iniciativa das leis, em geral matérias administrativas. Mediante esse tipo de ‘leis’, passam eles, de autores do projeto de lei, a co-autores da obra ou serviço autorizado. Os constituintes consideraram tais obras e serviços como estranhos aos legisladores e, por isso, os subtraíram da iniciativa parlamentar das leis. Para compensar essa perda, realmente exagerada, surgiu ‘lei’ autorizativa,  praticada cada vez mais exageradamente autorizativa  é a ‘lei’ que - por não poder determinar - limita-se a autorizar o Poder Executivo a executar atos  que já lhe estão autorizados pela Constituição, pois estão dentro da competência constitucional desse Poder. O texto da ‘lei’ começa por uma expressão que se tornou padrão: ‘Fica o Poder Executivo autorizado a...’ O objeto da autorização -  por já ser de competência constitucional do Executivo - não poderia ser ‘determinado’, mas é apenas ‘autorizado’ pelo Legislativo, tais ‘leis’, óbvio, são sempre de iniciativa parlamentar, pois jamais teria cabimento o Executivo se autorizar a si próprio, muito menos onde já o autoriza a própria Constituição. Elas constituem um vício patente" (Leis Autorizativas. Revista da Instituição Toledo de Ensino, agosto a novembro de 2000, Bauru, p. 262).

Bem por isso, não passou despercebido ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que "a lei que autoriza o Executivo a agir em matérias de sua iniciativa privada implica, em verdade, uma determinação, sendo portanto inconstitucional" (ADIN n°593099377 – rel. Des. Maria Berenice Dias – j. 7/8/00).

Esse E. Sodalício também vem afirmando a inconstitucionalidade das leis autorizativas, forte no entendimento de que as tais “autorizações” são eufemismo de “determinações”, e, por isso, usurpam a competência material do Poder Executivo:

LEIS AUTORIZATIVAS – INCONSTITUCIONALIDADE - Se uma lei fixa o que é próprio da Constituição fixar, pretendendo determinar ou autorizar um Poder constituído no âmbito de sua competência constitucional, essa lei e inconstitucional. — não só inócua ou rebarbativa, — porque estatui o que só o Constituinte pode estatuir O poder de autorizar implica o de não autorizar, sendo, ambos, frente e verso da mesma competência - As leis autorizativas são inconstitucionais por vicio formal de iniciativa, por usurparem a competência material do Poder Executivo e por ferirem o principio constitucional da separação de poderes.

VÍCIO DE INICIATIVA QUE NÃO MAIS PODE SER CONSIDERADO SANADO PELA SANÇÃO DO PREFEITO - Cancelamento da Súmula 5, do Colendo Supremo Tribunal Federal.

LEI MUNICIPAL QUE, DEMAIS IMPÕE INDEVIDO AUMENTO DE DESPESA PÚBLICA SEM A INDICAÇÃO DOS RECURSOS DISPONÍVEIS, PRÓPRIOS PARA ATENDER AOS NOVOS ENCARGOS (CE, ART 25). COMPROMETENDO A ATUAÇÃO DO EXECUTIVO NA EXECUÇÃO DO ORÇAMENTO - ARTIGO 176, INCISO I, DA REFERIDA CONSTITUIÇÃO, QUE VEDA O INÍCIO DE PROGRAMAS. PROJETOS E ATIVIDADES NÃO INCLUÍDOS NA LEI ORÇAMENTÁRIA ANUAL (ADIN 142.519-0/5-00, rel. Des. Mohamed Amaro, 15.8.2007).

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748).

Resta dizer que a lei em análise é de vigência temporária.

Seus efeitos se irradiariam, não fosse a liminar concedida, até 120 dias úteis após a publicação, que ocorreu no dia 30 de dezembro de 2008.

Em mais de uma ocasião, esse E. Tribunal de Justiça foi instado a se pronunciar sobre a constitucionalidade de leis da espécie.

No julgamento da ADIN 135.123-0/1, de 26 de setembro de 2007, o eminente Des. MOHAMED AMARO foi o relator do voto acolhido pela maioria e que extinguiu a ação, sem julgamento de mérito, por perda superveniente do objeto de lei do município de Sertãozinho que concedia o prazo de 180 dias para a regularização de imóveis.

No entanto, é na manifestação vencida, do culto Des. PALMA BISSON, que encontramos o respaldo à tese ora encampada. Pela lucidez do voto, transcreve-se o seguinte excerto:

É ação direta de inconstitucionalidade da Lei Complementar do Município de Sertãozinho, de n° 183, de 08 de maio de 2006 e publicada em 17 de maio de 2006 (fls. 145), que, por iniciativa de Vereador, derribado o veto do Prefeito, estabeleceu prazo para regularização de imóveis existentes naquele, com área total de até 125 metros quadrados, permitindo-a, no setor competente da Prefeitura e no Cartório de Registro Imobiliário, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias a contar da sua publicação (art. Iº), observado que, "para conseguir a regularização referida no "caput" o proprietário do imóvel fará prova, com documentos oficiais, que a situação deste é anterior à publicação da presente lei complementar" (§ único).

O alcaide é o promovente da ação.

(...)

O Presidente da Câmara Municipal nem informações prestou; desinteressou-se o Procurador-Geral do Estado do deslinde da ação e o Procurador-Geral de Justiça, antes destacando tratar-se de lei temporária, ao prever prazo para regularização que fluído geraria carência superveniente, opinou de qualquer modo pela sua inconstitucionalidade, porque, ao impor tarefas ao Executivo para a consecução das regularizações que trata, afrontou os artigos 24, § 2º, 47, XIX, e 144 da Carta Estadual.

Que a lei é inconstitucional nessa medida eu não tenho dúvida alguma e acredito que o eminente Desembargador MOHAMED AMARO, sorteado para relatar esta ação direta, também não tem. Deixou, todavia, de declará-la inconstitucional, porque, ultrapassado o prazo de cento e oitenta dias para a regularização de imóveis, "a questionada lei perdeu, evidentemente, o seu poder de regulamentação".

Assim, "não há falar de seu controle abstrato, posto que operado o termo final de sua vigência". Daí, pela perda do objeto, extinguia a ação direta sem exame do mérito.

Esse desfecho eu acompanharia, não fosse um problema: a lei aqui combatida, como alertou o promovente â partida, realmente repete outra, a Lei Complementar do Município de Sertãozinho, de n° 175, de 15 de agosto de 2005, que foi deveras atacada pela ação direta n° 128.410-0/5-00, ainda não julgada embora já enviada à mesa para tal, sendo seu Relator o Desembargador CORRÊA VIANA.

(...)

Por isso é que, com todo respeito, eu estou divergindo do correto voto do Relator sorteado, para proclamar, a despeito da evidente perda do seu poder de regulamentação, a inconstitucionalidade da Lei Complementar do Município de Sertãozinho, de n° 183, de 08 de maio de 2006 e publicada em 17 de maio de 2006.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 10.296, de 29 de dezembro de 2008, do mesmo Município, que “autoriza a regularização de obras no Município de São José do Rio Preto”.

 

São Paulo, 6 de abril de 2009.

 

 

        Maurício Augusto Gomes

        Subprocurador-Geral de Justiça

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