Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 174.509.0/9

Requerente: Prefeito de São José do Rio Preto

Objeto: Lei nº 10.293, de 29 de dezembro de 2008, do Município de São José do Rio Preto

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade promovida por Prefeito, tendo por objeto a Lei nº 10.293, de 29 de dezembro de 2008, do Município de São José do Rio Preto, que “veda o corte do fornecimento de água a consumidores riopretenses”. Matéria que demanda a iniciativa do Chefe do Poder Executivo, porque trata de prestação do serviço público e impõe ônus à Administração, além de criar despesa sem indicação da fonte. Afronta aos artigos 5º, 25, 37 e 47, II, da CE, aplicáveis aos Municípios por força do artigo 144 da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de São José do Rio Preto, tendo por objeto a Lei Municipal n.º 10.293, de 29 de dezembro de 2008, que “veda o corte do fornecimento de água a consumidores riopretenses”.

Diz o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Sustenta que a lei impugnada é inconstitucional, por ofensa ao princípio da separação dos poderes (art. 2º. CF; art. 5º. CE), eis que, por meio dela, o Poder Legislativo está ditando a forma como o Administrador deve agir na prestação de determinado serviço público. Aponta que o corte de fornecimento d’água é previsto em lei federal (art. 40 da L. 11.445/07) e que a vedação ora estabelecida representa verdadeira renúncia de arrecadação, estabelecida sem a prévia análise do impacto orçamentário, nesse ponto com infração ao art. 169 da CE e à Lei de Responsabilidade Fiscal.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 76/78).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações sobre o processo legislativo (fls. 91 e ss.).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 137/139).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A lei impugnada tem a seguinte redação:

 

 

LEI Nº 10.293, de 29 de dezembro de 2008

Veda o corte do fornecimento de água a consumidores riopretenses.

Ver. ADNEY SECCHES, Presidente da Câmara Municipal de São José do Rio Preto, Estado de São Paulo, usando das atribuições que me são conferidas por lei.

FAÇO SABER que a Câmara Municipal manteve e eu promulgo, nos termos do § 6º do artigo 44 da Lei Orgânica do Município, a seguinte Lei:

Art. 1º - Fica vedada a operação de corte do fornecimento de água executada pelo Serviço Municipal Autônomo de Água e Esgoto – SEMAE, por inadimplemento, aos consumidores que estão com as últimas 3 (três) contas devidamente pagas.

Parágrafo Único - Para os casos contrários ao que determina o caput, o Semae expedirá notificação ao consumidor devedor concedendo o prazo de 3 (três) dias para efetuar o pagamento, e findo o prazo será decretado o corte do fornecimento de água.

Art. 2º - Os débitos anteriores não devem ser motivo de corte do fornecimento de água, mas devem ser exigidos executivamente, concedendo-se, ainda, ao devedor o direito de parcelar e reparcelar os valores nos termos da legislação vigente.

Art. 3º - Na fatura emitida pelo Semae deverá constar o benefício concedido por esta Lei para orientação dos consumidores.

Art. 4º - Esta Lei entra em vigor na data e sua publicação.

Câmara Municipal de São José do Rio Preto, 29 de dezembro de 2008.

Ver. ADNEY SECCHES

Presidente da Câmara

Como se constata, a lei proíbe o corte do fornecimento de água aos consumidores riopretenses cujas três últimas contas estejam pagas. Ao mesmo tempo, determina à autarquia municipal que parcele ou reparcele os débitos anteriores ou os exija “executivamente”.

A interrupção do fornecimento d’água, entretanto, é prevista em lei federal e é tolerada pela jurisprudência.

Na Lei 11.445/07 encontra-se a seguinte previsão:

Art. 40.  Os serviços poderão ser interrompidos pelo prestador nas seguintes hipóteses:

(...)

V - inadimplemento do usuário do serviço de abastecimento de água, do pagamento das tarifas, após ter sido formalmente notificado.

(...)

§ 2º - A suspensão dos serviços prevista nos incisos III e V do caput deste artigo será precedida de prévio aviso ao usuário, não inferior a 30 (trinta) dias da data prevista para a suspensão.

De outro giro, o Superior Tribunal de Justiça tem firme entendimento no sentido de que a interrupção no fornecimento de água somente é ilegal nos casos de dívida contestada em Juízo, “uma vez que o corte configura constrangimento ao consumidor que procura discutir no Judiciário débito que considera indevido” (cf. AgRg no REsp 1095477/RJ, 2ª. T, j. 5/02/09).

Logo, o corte de água pelo inadimplemento do consumidor é possível e, como se sabe, constitui importante instrumento garantidor da receita da entidade responsável pela prestação desse serviço público.

Desse modo, em que pesem os elevados propósitos que inspiraram o Vereador autor do projeto da lei impugnada, a argumentação contida na inicial procede.

De fato, o gerenciamento da prestação de serviços públicos (aí incluídas as autarquias como o SEMAE) no município é da competência do Poder Executivo, único dos poderes que detém instrumentos e recursos próprios para avaliar a conveniência e oportunidade da Administração Pública. 

Sob o aspecto prático, deve ser ressaltado que, se o Legislativo produz lei determinando à autarquia como deve se portar diante do consumidor inadimplente, está impondo ônus à Administração Pública e se imiscuindo na organização de serviço que não lhe diz respeito.

Nesse sentido é que a iniciativa legislativa, conquanto possa ter bons propósitos, não encontra sustentação na Constituição Estadual e nem na Carta Maior, pois invade seara própria do Executivo. Nesse particular, o ato normativo passou a impor obrigação à Administração Pública local, interferindo diretamente na gestão administrativa.

Considerada a iniciativa parlamentar que culminou na edição do ato normativo em epígrafe, é visível que o Poder Legislativo municipal invadiu a esfera de atribuições do Chefe do Poder Executivo.

Ao Legislativo cabe a função de editar atos normativos de caráter geral e abstrato. Ao Executivo cabe o exercício da função de gestão administrativa, que envolve atos de planejamento, direção, organização e execução.

Atos que, na prática, representam invasão da esfera executiva pelo legislador, devem ser invalidados em sede de controle concentrado de normas, na medida em que representam quebra do equilíbrio assentado nos art. 5º, art. 37 e art. 47 incisos II e XIV, todos da Constituição do Estado de São Paulo, aplicáveis aos Municípios por força do art.144 da referida Carta.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, segundo o qual:

“a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art. 2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante” (...). Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário.” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis de efeitos concretos, ou que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os Poderes.

Essa é exatamente a hipótese verificada nos autos, na medida em que os dispositivos destacados acima imputaram providências concretas à Administração Municipal. Mutatis mutandis, já proclamou esse Egrégio Plenário que:

“Ao executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito”  (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

Por último, oportuno observar que a adoção das providências descritas na lei certamente acarreta despesas para o Erário, pois exige constante disposição da autarquia para “parcelar” e “reparcelar” os débitos, sem contrapartida.

Em casos similares esse E. Tribunal de Justiça tem reconhecido a inconstitucionalidade de leis por violação ao art. 25 da Constituição Estadual, em razão da ausência de indicação de recursos disponíveis para fazer frente às despesas criadas (ADINs ns. 18.628-0, 13.796-0, 38.249-0, 36.805.0/2, 38.977.0/0).

Registre-se, por fim, que esse Sodalício já teve a oportunidade de examinar a matéria e reconheceu a inconstitucionalidade de leis análogas, de iniciativa parlamentar, como demonstram os seguintes julgados:

Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI MUNICIPAL N. 5.744, DE 20 DE ABRIL DE 2000, DE ARAÇATUBA, QUE DISPÕE SOBRE A PROIBIÇÃO DO CORTE DE FORNECIMENTO DE ÁGUA AOS CONSUMIDORES DESEMPREGADOS INADIMPLENTES. PROJETO DE LEI DE INICIATIVA PARLAMENTAR - LEI PROMULGADA PELA CÂMARA MUNICIPAL APÓS A REJEIÇÃO DO VETO INTEGRAL APOSTO PELO PREFEITO. SERVIÇO PÚBLICO MUNICIPAL DE FORNECIMENTO DE ÁGUA - INICIATIVA DA LEI. TRIBUTO MUNICIPAL - RECEITA PÚBLICA - ISENÇÃO - PROCESSO LEGISLATIVO. COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO EXECUTIVO PARA A INICIATIVA DAS LEIS QUE VERSEM SOBRE A MATÉRIA REFERENTE A SERVIÇO PÚBLICO MUNICIPAL (DE FORNECIMENTO DE ÁGUA). CABE AO PREFEITO FORMULAR A OPÇÃO POLÍTICO- ADMINSITRATIVA DE ENCAMINHAR OU NÃO PROJETO DE LEI À CÂMARA VERSANDO SOBRE A MATÉRIA EM EXAME, NÃO PODENDO ESSA DECISÃO, QUE ENVOLVE O EXERCÍCIO, PELA AUTORIDADE COMPETENTE, DE JUÍZO PURAMENTE DISCRICIONÁRIO, PARTIR DO LEGISLATIVO LOCAL. COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. POSTURA, QUE SE REVELA INCOMPATÍVEL COM O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO, QUE CONSAGROU O PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA E HARMONIA ENTRE OS PODERES, INTEGRANDO-O AO NÚCLEO INTANGÍVEL DA CONSTITUIÇÃO. - Ação julgada procedente. (Ação Direta de Inconstitucionalidade de Lei 74.129-0/5-00, Relator: Mohamed Amaro, Órgão julgador: 1ª Câmara de Direito Criminal, Data de registro: 19/04/2002).

Ementa: PRELIMINAR - Intempestividade da matéria argüida - Inocorrênaa - Ausência de norma legal dispondo sobre prazo decadencial ou prescricional à propositura de ação direta de INCONSTITUCIONALIDADE de eventual lei - Preliminar rejeitada. ADIN Inconstitucionalidade - Vicio de iniciativa - Lei oriunda da Editidade contendo norma autorizativa ao Alcaide e destinada à autarquia DAERP - Departamento de Água e Esgoto de Ribeirão Preto a vedar o corte de fornecimento de água a consumidores inadimplentes que tenham renda inferior a três salários mínimos, com a oportunidade de parcelamento em até vinte e quatro (24) meses - Invasão da esfera privativa do Chefe do Poder Executivo, malferindo a independência e harmonia entre os poderes públicos - Doutrina e jurisprudência - Procedência da ação (Ação Direta de Inconstitucionalidade de Lei 129.065.0/7-00, Relator: Munhoz Soares, Órgão julgador: 1ª Câmara de Direito Criminal, Data de registro: 25/09/2006).

Conclui-se, pois, pela afronta aos arts. 5º, 25, 37 e 47 incisos II e XIV; e 144, da Constituição Bandeirante.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal n.º 10.293, de 29 de dezembro de 2008, que “veda o corte do fornecimento de água a consumidores riopretenses”.

São Paulo, 23 de abril de 2009.

 

 

Nilo Spinola Salgado Filho

Subprocurador-Geral de Justiça

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