Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 174.952-0/0-00

Requerente: Prefeito do Município de Guarulhos

Objeto: Lei nº 6.400, de 01 de julho de 2008, do Município de Guarulhos

 

Ementa: Isenção de tarifa no transporte coletivo.   Lei de iniciativa do Poder Legislativo.   Ausência de reserva do Chefe do Poder Executivo.   Constitucionalidade reconhecida.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Guarulhos, tendo por objeto a Lei Municipal n.º6.400, de 01 de julho de 2008, daquele município, que dispõe sobre “ISENÇÃO DE TARIFA NO TRANSPORTE COLETIVO DE GUARULHOS PARA PORTADORES DE TRANSTORNO MENTAL EM TRATAMENTO”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

A liminar foi indeferida “pois ausentes os requisitos legais” (fls.65).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou às fls. 79/84, em defesa da lei impugnada. Afirmou, em síntese, que a iniciativa da lei em questão não é privativa do Chefe do Executivo, cabendo também ao Poder Legislativo a sua propositura.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 75/77).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A ação deve ser julgada improcedente.     Vejamos.

Embora o diploma tenha sido vetado, o veto foi rejeitado, com a promulgação da lei pelo Presidente da Câmara.

         A matéria versada na lei impugnada não é de iniciativa legislativa reservada ao Executivo, pois não está contemplada no rol do art. 24, § 2º, 1 a 6, da Constituição Paulista, inexistindo, por esse aspecto, qualquer inconstitucionalidade a ser declarada em razão do impulso parlamentar dado ao projeto que culminou com a edição do ato normativo em epígrafe.

         De outro lado, não há, também, violação ao postulado constitucional da independência e harmonia entre os Poderes. A Constituição Federal atribuiu competência aos Municípios para legislar sobre assuntos de interesse local, bem como para organizar e prestar, diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão, os serviços de interesse local, incluído o transporte coletivo (art.30, II e V da CF). E legislar a respeito do tema não significa invadir a seara da administração local.

 

         A propósito, a Constituição do Estado prescreve iniciativa privativa do Chefe do Executivo para leis que versem, em síntese, sobre: cargos, funções e empregos públicos na administração direta e indireta e sua remuneração; criação e extinção de órgãos na administração pública; regime jurídico dos servidores públicos (cf. art.24, §2º, n. 1 a 6 da Constituição Estadual). Reitera a Carta Paulista, em linhas gerais, as limitações contidas no art.61 §1º inciso II da Constituição Federal.

         De outro lado, a Constituição do Estado de São Paulo também determina que cabe ao Executivo exercer a direção superior da Administração Estadual, bem como a prática de atos de administração (art.47, incisos II e XIV).

         O princípio da independência e harmonia entre os Poderes, adotado expressamente no ordenamento constitucional brasileiro, não coloca o Executivo em posição de preeminência, e o Legislativo em situação de mera coadjuvação. É indispensável vislumbrar na proporcionalidade de forças na formulação das opções políticas do Estado, decorrente do sistema de separação associado aos freios e contrapesos (checks and balances), que Executivo e Legislativo, atuando em suas respectivas esferas de atribuição, possuem a mesma relevância política.

         Assim como o Executivo não deve sofrer indevida interferência em sua primacial função de administrar (planejamento, direção, organização e execução das atividades da Administração), o Legislativo não deve ver minimizada sua atividade de legislar. Afinal, em última análise, nosso regime democrático é representativo, e o Poder Legislativo, em sede de elaboração legislativa, reflete a própria voz da vontade popular.

         Entendimento diverso significa admitir, como perfil do Estado Democrático brasileiro, numa imagem representativa, uma balança deslocada para um lado de maior importância e prestígio: o lado do Poder Executivo. Um Executivo hipertrofiado em suas atribuições e poderes, ladeado por um Legislativo que se limitará a chancelar iniciativas daquele.

         Não parece ter sido esta a opção do Constituinte.

         Note-se, de início, que a essência da separação de Poderes, como ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho, é a “proteção da independência de determinado Poder, como ocorre com a de iniciativa em favor do Judiciário, que aliás, procede da inspiração que em Montesquieu sugeria a atribuição de veto ao Executivo, ou a redução das despesas públicas”(Do processo legislativo, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2002, p.147).

         Como anota José Afonso da Silva, nos casos de iniciativa reservada aos Chefes do Executivo só estes “estão em condições de saberem quais são esses interesses e como fazerem para resguardá-los” (Processo constitucional de formação das leis, 2ªed., São Paulo, Malheiros, 2006, p.179).

         Deve-se notar, entretanto, que a regra em nosso regime constitucional é a livre iniciativa legislativa, que decorre do art.61 caput da CF, ao passo que as hipóteses de iniciativa reservada são excepcionais. Como tal é curial que regras de exceção sejam interpretadas restritivamente, sem a possibilidade de extensão por integração ou interpretação analógica.

         Lembrando o brocardo latino segundo o qual “exceptiones sunt strictissimae interpretanionis”, há muito Carlos Maximiliano anotava que “as disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas ou contra o direito comum, por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente” (Hermenêutica e aplicação do direito, 18ªed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1999, p.227).

         O Pretório Excelso já assentou que as hipóteses indicadas pelo texto constitucional como casos de iniciativa legislativa privativa do Executivo, assumindo o caráter de direito excepcional, na expressão de Carlos Maximiliano, devem ser interpretadas de forma restritiva. Confira-se:

"O respeito às atribuições resultantes da divisão funcional do Poder constitui pressuposto de legitimação material das resoluções estatais, notadamente das leis. Prevalece, em nosso sistema jurídico, o princípio geral da legitimação concorrente para instauração do processo legislativo. Não se presume, em conseqüência, a reserva de iniciativa, que deve resultar — em face do seu caráter excepcional — de expressa previsão inscrita no próprio texto da Constituição, que define, de modo taxativo, em numerus clausus, as hipóteses em que essa cláusula de privatividade regerá a instauração do processo de formação das leis. O desrespeito à prerrogativa de iniciar o processo legislativo, quando resultante da usurpação do poder sujeito à cláusula de reserva, traduz hipótese de inconstitucionalidade formal, apta a infirmar, de modo irremissível, a própria integridade do diploma legislativo assim editado, que não se convalida, juridicamente, nem mesmo com a sanção manifestada pelo Chefe do Poder Executivo (...).”(ADI 776-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-10-92, DJ de 15-12-06, g.n.).

  

      "A disciplina jurídica do processo de elaboração das leis tem matriz essencialmente constitucional, pois residem, no texto da Constituição — e nele somente —, os princípios que regem o procedimento de formação legislativa, inclusive aqueles que concernem ao exercício do poder de iniciativa das leis. A teoria geral do processo legislativo, ao versar a questão da iniciativa vinculada das leis, adverte que esta somente se legitima — considerada a qualificação eminentemente constitucional do poder de agir em sede legislativa — se houver, no texto da própria Constituição, dispositivo que, de modo expresso, a preveja. Em conseqüência desse modelo constitucional, nenhuma lei, no sistema de direito positivo vigente no Brasil, dispõe de autoridade suficiente para impor, ao Chefe do Executivo, o exercício compulsório do poder de iniciativa legislativa." (MS 22.690, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-4-97, DJ de 7-12-06, g.n.).

         Note-se que, nos precisos termos da Constituição Estadual (art.120), cabe exclusivamente ao Poder Executivo a fixação de tarifas dos serviços públicos. Entretanto, essa exclusividade não se estende à prerrogativa de conceder isenções quanto ao pagamento de tarifas, o que é próprio de lei - cuja iniciativa é geral ou concorrente - a ser editada pelo ente público responsável pela prestação do serviço (Cf. Hely Lopes Meirelles, Direito Municipal Brasileiro, 15ª ed., Malheiros, São Paulo, 2006, p.164).

         Também não se caracteriza, na hipótese, prática de ato de administração pelo legislativo, o que poderia amparar o reconhecimento da tese da quebra do princípio da separação de poderes. Note-se que a lei aqui analisada reveste-se de todos os pressupostos necessários à sua configuração como ato normativo: generalidade, impessoalidade, e abstração.

         Também não é possível acolher o pleito com amparo no art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo.

         Com a devida vênia, duvidosa a constitucionalidade do dispositivo, ao prever que “Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos”, quando utilizado como entrave ao regular desenvolvimento do processo legislativo.           

         Ademais, afirmar que a lei gerará aumento de despesas sem que haja recursos disponíveis é pautar o exame da constitucionalidade da norma em aspecto factual (existência ou não dos recursos), cuja análise extrapola o limite do controle abstrato de normas.

         A adequada compreensão do art. 25 da Constituição do Estado nos leva à conclusão de que o Poder Executivo está impedido de sancionar qualquer projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública, quando dele não constar a indicação dos recursos disponíveis, próprios para o atendimento dos novos encargos. Mas isso não significa que o Legislativo não possa ter iniciativa na matéria. Quem tem o poder de veto ou sanção é o Executivo, e a regra se dirige exclusivamente a ele.

         Na Constituição Federal, porém, não existe nenhuma regra com idêntico conteúdo, que impeça o Chefe do Poder Executivo de exercer a prerrogativa de sancionar os projetos de lei aprovados pelo Parlamento.

         Assim, o art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo é inconstitucional, na medida em que viola o modelo adotado pela Constituição Federal para o processo de elaboração das leis.

 

         Como é sabido, o modelo de processo legislativo adotado em nosso ordenamento está delineado no texto da Constituição Federal.

         Embora pondere com relação ao acerto da tese, sustenta Manoel Gonçalves Ferreira Filho que, em que pese a autonomia para organização reservada aos Estados e Municípios, “O STF tem decidido no sentido da simetria entre o processo legislativo da União e o dos Estados e Municípios. É o que resulta da jurisprudência iniciada na Ação Direta de Inconstitucionalidade .216/PB, relatada pelo Min. Celso de Mello (RTJ 146:388)” (Do processo legislativo, cit., p.253).

         Nesse sentido já se posicionou o Pretório Excelso, pacificando a obrigatoriedade de simetria entre o processo legislativo dos Estados e dos Municípios, com relação ao Federal, em que pese a respectiva autonomia dos entes federativos:

"Processo de reforma da Constituição estadual — Necessária observância dos requisitos estabelecidos na Constituição Federal (art. 60, §§ 1º a 5º) — Impossibilidade constitucional de o Estado-Membro, em divergência com o modelo inscrito na Lei Fundamental da República, condicionar a reforma da Constituição estadual à aprovação da respectiva proposta por 4/5 (quatro quintos) da totalidade dos membros integrantes da Assembléia Legislativa — Exigência que virtualmente esteriliza o exercício da função reformadora pelo Poder Legislativo local — A questão da autonomia dos Estados-Membros (CF, art. 25) — Subordinação jurídica do poder constituinte decorrente às limitações que o órgão investido de funções constituintes primárias ou originárias estabeleceu no texto da Constituição da República: (...)." (ADI 486, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 3-4-97, DJ de 10-11-06, g.n.).

 

 "O poder constituinte outorgado aos Estados-Membros sofre as limitações jurídicas impostas pela Constituição da República. Os Estados-membros organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem (CF, art. 25), submetendo-se, no entanto, quanto ao exercício dessa prerrogativa institucional (essencialmente limitada em sua extensão), aos condicionamentos normativos impostos pela Constituição Federal, pois é nessa que reside o núcleo de emanação (e de restrição) que informa e dá substância ao poder constituinte decorrente que a Lei Fundamental da República confere a essas unidades regionais da Federação.” (ADI 507, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 14-2-96, DJ de 8-8-03).

            Registre-se ainda que, à parte de prever regra não contida no processo legislativo federal, o art.25 da Constituição do Estado de São Paulo acaba por criar óbice quase que intransponível ao exercício da iniciativa legislativa por parte de parlamentares (recordemos que a iniciativa em matéria orçamentária é reservada ao Poder Executivo cf. art.174 da Constituição do Estado; e art.165 da Constituição Federal), interferindo, ademais, na prerrogativa do Executivo de sancionar ou vetar os projetos de lei.

         Em síntese, o argumento é inconsistente para fins de reconhecimento de invalidade da lei impugnada.

         De se destacar a relevância social da legislação impugnada.

         A Constituição Federal, no seu art. 203, inc.IV, prevê que “A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

..........................................................................................................

IV- a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária”.

Isso nos permite afirmar que a lei impugnada está em conformidade com a ordem jurídica vigente, sendo absolutamente razoável o benefício por ela concedido.

         Tratar diferentemente não significa, por si, quebra do princípio da isonomia material.

         Deste modo, a relevância social do diploma deve também ser levada em consideração no exame de sua constitucionalidade, que, ao contrário do alegado pelo autor, deve ser confirmada.

Diante do exposto, aguarda-se a improcedência da presente ação direta, reconhecendo-se a constitucionalidade da Lei Municipal nº 6.400, de 01 de julho de 2008, do Município de Guarulhos.

São Paulo, 16 de junho de 2009.

 

 

        Maurício Augusto Gomes

        Subprocurador-Geral de Justiça

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