Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 175.623-0/6-00

Requerente: Prefeito do Município de Jundiaí

Objeto: Lei nº 7.043, de 28 de abril de 2008, do Município de Jundiaí

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito Municipal, da Lei nº 7.043, de 28 de abril de 2008, do Município de Jundiaí, que “veda à administração pública utilizar veículos licenciados em outros Estados.”. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que implica em ato de gestão administrativa. Violação do princípio da separação dos poderes. Ofensa aos artigos 5º;  47, II e XIV; 144, da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Jundiaí, tendo por objeto a Lei nº 7.043, de 28 de abril de 2008, do Município de Jundiaí, que “veda à administração pública utilizar veículos licenciados em outros Estados”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal. Segundo o Alcaide, a lei dispõe sobre a organização administrativa,  impondo vedação à administração pública, de matéria cuja iniciativa  é reservada ao Prefeito. Divisa ofensa ao princípio da separação dos poderes. Ademais, alega  que o legislativo municipal usurpou competência exclusiva da União a quem cabe legislar sobre trânsito, conforme disposto no art. 22, XI, da Constituição Federal, desrespeitando os arts. 130 a 135, do Código de Trânsito Brasileiro.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls.19/20).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações sobre o processo legislativo a fls. 34/35.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 61/63).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A legislação impugnada, de fato, viola o artigo 144 da Constituição de São Paulo, que remete ao artigo 30 da Constituição Federal. Segundo este, os Municípios só poderão legislar sobre assuntos de interesse local (inciso I).

Não é o que se vê na Lei nº. 7.043, de 28 de abril de 2008, que avançou em matéria estranha à sua competência.  Isto porque, disciplinou matéria específica do Código de Trânsito Brasileiro, que determina o foro vinculado ao respectivo DETRAN de cada Estado como sede para licenciamento dos veículos, obrigando, inclusive, a comunicação em caso de mudança de sede estatal, não podendo, a norma municipal substituir a previsão ali disposta, aplicável à União, aos Estados e aos Municípios (art. 130 a 135 do CTB).  É que a Constituição Federal, no artigo 22, inc. XI, restringe à União a competência para legislar sobre “trânsito e transporte”.

Vê-se que a lei municipal questionada não suplementa a legislação federal, mas sim altera, em certo aspecto, suas disposições.

Para Pinto Ferreira, a expressão “interesse local” se refere a “matérias específicas dos Municípios” (Comentários à Constituição Brasileira, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 2/277). Comenta Manoel Gonçalves Ferreira Filho que “o texto em estudo refere-se a 'interesse local' e não mais a 'peculiar interesse'. Forçoso é concluir, pois, que a constituição restringiu a autonomia municipal e retirou de sua competência as questões que, embora de seu interesse também, são do interesse de outros entes” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, São Paulo, Saraiva, 1990, p. 1/218).

Especificamente sobre legislação em matéria de trânsito, observa Hely Lopes Meirelles: “De um modo geral, pode-se dizer que cabe à União legislar sobre os assuntos nacionais de trânsito e transporte, ao Estado-membro compete regular e prover os aspectos regionais e a circulação intermunicipal em seu território, e ao Município cabe a ordenação do trânsito urbano, que é de seu interesse local (CF, art. 30, I e V). (...) Na competência do Município insere-se, portanto, a fixação de mão e contramão nas vias urbanas, limites de velocidade e veículos admitidos em determinadas áreas e horários, locais de estacionamento, estações rodoviárias, e tudo o mais que afetar a vida da cidade” (Direito municipal brasileiro, São Paulo, Malheiros, 2000, pp. 417 e 419). Diógenes Gasparini também comenta: “No que respeita à competência legislativa do Município, em matéria de trânsito, podemos afirmar, seguramente, não se tratar de matéria de interesse local, haja vista ter sido reservada expressamente e de forma privativa, à União, consoante dispõe o art. 22, inc. XI, da Constituição da República. (...) Com efeito, nas responsabilidades legislativas privativas da União, só se admite, excepcionalmente, a atuação dos Estados e Municípios, mediante lei complementar e, mesmo assim, sobre questões específicas, conforme faculta o parágrafo único, do art. 22, do Estatuto Supremo” (Revista de Direito Administrativo, nº. 212, abril/junho, 1998, pp. 175-194).

Ademais, tanto a Lei n. 7.043/2008, é fruto de iniciativa parlamentar, sendo por mais essa razão verticalmente incompatível com o nosso sistema constitucional, como será demonstrado a seguir.

A lei em exame - fruto de iniciativa parlamentar - estabeleceu proibição à Administração Pública quanto à utilização de veículos licenciados em outros Estados.

Desta feita, houve violação do princípio da separação de poderes.

É ponto pacífico na doutrina bem como na jurisprudência que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O legislador municipal, na hipótese analisada, acolheu iniciativa parlamentar, impondo proibição ao Poder Executivo de matéria relacionada ao gerenciamento do serviço público.

Em que pese a relevante intenção do parlamentar, o fato é que ela interfere no âmbito da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional.

Referido diploma, na prática, invadiu a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que "dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material    explicativo    dos    efeitos das radiações                                                                          remitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

 

Nesse panorama, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade da lei em análise.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 7.043, de 28 de abril de 2008, do Município de Jundiaí, que “veda à administração pública utilizar veículos licenciados em outros Estados”.

São Paulo, 13 de julho de 2009.

 

        Maurício Augusto Gomes

        Subprocurador-Geral de Justiça

        - Assuntos Jurídicos -

vlcb