Parecer
Autos nº. 176.272-0/0-00
Requerente: Prefeito Municipal de Marília
Objeto: Lei nº 5.310, de 07 de outubro de 2002, do Município de Marília
Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade promovida pelo Prefeito Municipal, tendo por objeto a Lei nº 5.310, de 07 de outubro de 2002, do Município de Marília, que revoga “a alínea ‘b’, do parágrafo único do artigo 2º, da lei nº 4009, de 29 de junho de 1994, com modificações posteriores, possibilitando que os servidores municipais que registrem o ponto através de sistema manual também possam concorrer ao prêmio incentivo. Projeto de lei de Vereador. Matéria, contudo, cuja iniciativa é privativa do Prefeito. Alegada ofensa ao princípio da separação dos Poderes (arts. 5º; 14, §2º, ns. 1 a 4; e 47, II, da Constituição do Estado). Parecer pela procedência da ação.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Marília, tendo por objeto a Lei nº 5.310, de 07 de outubro de 2002, daquele município, que revoga “a alínea ‘b’, do parágrafo único do artigo 2º, da lei nº 4009, de 29 de junho de 1994, com modificações posteriores, possibilitando que os servidores municipais que registrem o ponto através de sistema manual também possam concorrer ao prêmio incentivo”.
Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.
O Presidente da Câmara Municipal prestou informações, defendendo a constitucionalidade da lei em questão (fls.81/91).
A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 77/79).
Este é o breve resumo do que consta dos autos.
O pedido
de declaração de inconstitucionalidade procede.
A lei em
debate originada de projeto de lei de iniciativa do Poder Legislativo e, mesmo
com o veto do Prefeito Municipal, foi promulgada pelo Presidente da Câmara
Municipal.
Pretende-se
o reconhecimento de afronta ao princípio da independência e harmonia dos
poderes, pois o diploma sob exame, cujo teor encontra-se copiado às fls.53/55,
apresenta vício de iniciativa ao dispor sobre “prêmio-incentivo” a ser
distribuído aos servidores municipais.
Verifica-se,
de início, que a inconstitucionalidade reside na ofensa ao artigo 5º, caput da Constituição
Estadual Paulista, no tocante ao princípio da independência e harmonia de
poderes, diante da invasão, pela conduta do Poder Legislativo local, da
competência exclusiva do Poder Executivo.
O
Município, ao lado de sua autonomia política e financeira, tem, igualmente,
liberdade para organizar assuntos de seu peculiar interesse, tal como os
serviços públicos e o regime jurídico dos servidores públicos. Como decorrência
do equilíbrio entre os poderes, o processo legislativo prevê a participação do Poder
Executivo na atividade típica do Poder Legislativo, pela via da iniciativa, que
pode ser reservada ou concorrente.
São
confiadas ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo funções diferenciadas e
independentes, de acordo com a estrutura da organização política da República,
inclusive quanto ao município, é que sua parte integrante. Bem por isso a
Constituição Federal procurou estabelecer as atribuições do Poder Executivo e
Poder Legislativo, fixando tarefas adequadas à organização dos poderes, no que
foi seguida pela Constituição do Estado de São Paulo.
O
Prefeito, enquanto chefe do Poder Executivo, exerce tarefas específicas à
atividade de administrador, tendente à atuação concreta, referentes ao
“planejamento, organização e direção de serviços e obras da municipalidade.
Para tanto, dispõe de poderes correspondentes de comando, de coordenação e de
controle de todos os empreendimentos da Prefeitura ... A execução das obras e
serviços públicos municipais está sujeita, portanto, em toda a sua plenitude, à
direção do Prefeito, sem interferência da Câmara, tanto no que se refere às
atividades internas das repartições da Prefeitura (serviços burocráticos ou
técnicos), quanto às atividades externas (obras e serviços públicos) que o
Município realiza e põe à disposição da coletividade” (Hely Lopes Meirelles,
Direito Municipal Brasileiro, São Paulo, RT, 3ª ed., pp. 870/873). Em idêntica
lição, José Afonso da Silva, “O Prefeito e o Município”, Fundação Pref. Faria
Lima, 1977, pp. 134/143. Por outro lado, disciplinando atividade abstrata e
genérica, a Câmara Municipal “não administra o Município, estabelece, apenas,
normas de administração” (Hely Lopes Meirelles, ob. cit., p. 444).
Assim o
Município, ao lado de sua autonomia política e financeira, tem, igualmente, liberdade
para organizar assuntos de seu peculiar interesse, tais como a estruturação do
serviço público, que é atividade reservada do chefe do Poder Executivo.
Na lição
de Hely Lopes Meirelles, esta exclusividade é destinada aos temas que disponham
sobre “a criação, estruturação e atribuição das secretarias, órgãos e entidades
da administração pública municipal; a criação de cargos, funções ou empregos
públicos na administração direta e autárquica, fixação e aumento de sua
remuneração; o regime jurídico dos servidores municipais; e o plano plurianual,
as diretrizes orçamentárias, os orçamentos anuais, créditos suplementares e
especiais” (ob. cit., p. 530).
No tocante
à iniciativa reservada, a Constituição Paulista, repetidora de norma
constitucional federal, delineia os limites de iniciativa legislativa de cada
um dos poderes, podendo “resguardar a seu titular a decisão de propor direito
novo em matérias confiadas à sua especial atenção, ou de seu interesse
preponderante” (Manoel Gonçalves Ferreira Filho, “Do Processo Legislativo”, São
Paulo, Saraiva, 1995, p. 204).
Deste
modo, no município, tem o prefeito municipal a iniciativa reservada para
disciplinar matéria relativa ao servidor público e aos serviços públicos, como
disposto no artigo 24, § 2º, ns. 1 e 4 da Constituição Paulista, de observância
obrigatória dos municípios, como determinado pelo artigo 144 do mesmo diploma
legal. O tema do regime jurídico dos servidores públicos deve ser,
necessariamente, de iniciativa do Poder Executivo, que tem interesse preponderante
em sua organização. A não ser assim adentra o Poder Legislativo na esfera de
atribuições do Poder Executivo, o que não se coaduna com o princípio da
harmonia e independência entre os poderes, conforme já se decidiu na ADIn nº
19.542-0/7, rel. Des. Nigro Conceição, que cita farta jurisprudência, entre as
quais destaco:
“...dizendo respeito ao regime jurídico dos servidores públicos
municipais, a lei deve respeitar a iniciativa privativa do Executivo. Essa
iniciativa é privativa porquanto à Administração não pode ser negada a
prerrogativa de avaliar, a cada momento, a necessidade do provimento de cargos
públicos, bem assim o sistema de vantagens e benefícios atinentes ao Pessoal da
Prefeitura, coadunando-a com o interesse público e a disponibilidade destinada
ao custeio do serviço em questão” (ADIn nº 12.240-0, rel. Des. Ney Almada). No
mesmo sentido, ADIn nº 33.924-0/3, Rel. Des. Rebouças de Carvalho.
Sendo
assim, não poderá a Câmara Municipal legislar sobre temas de atribuição
exclusiva do Prefeito Municipal, diante da limitação contida no artigo 24, § 5º
da Carta Paulista, que repete o artigo 63 da Constituição Federal.
No caso em
tela pretendeu a Câmara Municipal exercer uma atuação mediata e genérica,
impondo conduta a ser seguida pelo Poder Executivo, vale dizer, a extensão do
direito de concorrer ao “prêmio-incentivo” aos servidores municipais que
“registrem o ponto através de sistema manual”.
Houve,
portanto, limitação à iniciativa reservada do Poder Executivo. Reconhece-se a
interferência em atividade tipicamente administrativa, pois “em assunto da
alçada do Chefe do Executivo, extrapolando de suas atribuições de edição de
normas, com evidente invasão de competência, afrontando, por via de
conseqüência, o princípio da independência e harmonia dos Poderes” (RTJSP
111/466).
Mas não se
pode olvidar que a lei em tela também ofende o artigo 111 da Carta Paulista, na
medida em que contraria os princípios da moralidade administrativa e do
interesse público.
A
respeito, ensina a doutrina que:
“... a inserção da
moralidade administrativa como princípio veiculado pela norma jurídica
determinou não apenas que a conduta da Administração Pública fosse moral, mas,
ainda, que o próprio Direito elaborado e positivado observasse aquela exigência
fundamental. Destarte, normas legais positivadas sem o acatamento do princípio
da moralidade administrativa são contestáveis perante os órgãos jurisdicionais
competentes, pois afrontam os fundamentos do próprio sistema jurídico. A
obrigação jurídica de conduzir-se segundo os parâmetros de moralidade
administrativa não apenas submete o administrador público, mas também o
legislador, como antes salientado, pois, no Estado Democrático de Direito, é
este que elabora, em geral, a norma segundo a qual aquele se deverá conduzir.
Assim, o Direito elaborado e positivado não poderá ser validado se não se
acatar aquele princípio. O que se constata, então, é que o princípio da
moralidade administrativa não apenas tem o sentido da moralidade da
Administração Pública segundo o Direito, mas a moralidade do Direito para o
aperfeiçoamento das atividades da Administração. A moralidade não está apenas
no Direito. O Direito legítimo traz o grão e produz o fruto da moralidade
(Carmen Lúcia Antunes, Princípios Constitucionais da Administração Pública, Ed.
Del Rey, 1994, p. 195).
Sobre o tema, este E. Tribunal de Justiça
já apreciou situações análogas:
“Ação direta de inconstitucionalidade –
Lei Municipal que dá nova redação à lei que institui auxílio-alimentação a
servidores públicos, ampliando seu campo de incidência – Vício de iniciativa,
que é privativa do Chefe do Poder Executivo – Ação procedente” (ADIn nº
63.352-0/7, Rel. Des. Theodoro Guimarães, j. 26.09.01).
“Lei
municipal de iniciativa de vereador. Promulgação pelo Presidente da Câmara.
Autorização ao Poder Executivo para concessão de cesta básica a servidores
públicos municipais, ativos e inativos e pensionistas. Inconstitucionalidade
reconhecida. Ação procedente” (ADIn nº 66.400-0/9, Rel. Des. Olavo Silveira, j.
25.04.01).
Conclui-se,
portanto, que houve invasão na atribuição reservada do Chefe do Poder Executivo
com a conseqüente imposição de normas que ofende diretamente sua iniciativa
legislativa, com infringência aos artigos 5º, caput; 24, § 2º, nº 4, 111; e 144, todos da Constituição
do Estado de São Paulo.
Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 5.310, de 07 de outubro de 2002, do Município de Marília.
São Paulo, 24 de junho de 2009.
Maurício Augusto Gomes
Subprocurador-Geral de Justiça
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