Parecer
Autos nº. 176.565-0/8-00
Requerentes: Sindicato da Indústria da Fabricação do Álcool do Estado de São Paulo – SIFAESP e Sindicato da Indústria do Açúcar no Estado de São Paulo – SIAESP
Objeto: art. 2º Lei Complementar nº 2, de 07 de outubro de 2008, do Município de Uchôa
Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Sindicatos das indústrias de Álcool e Açúcar, tendo por objeto o art. 2º da Lei Complementar nº 2, de 07 de outubro de 2008, do Município de Uchôa, que proíbe o emprego de fogo na despalha da cana-de-açúcar como método de pré-colheita. Alegação de que, ao editar o ato normativo, o Município usurpou a competência do legislador estadual, com violação dos arts. 23, parágrafo único, nº 14; 192, § 1º; e 193, inc. XX e XXI, da Constituição do Estado de São Paulo. Desacolhimento. O direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado impõe deveres ao Poder Público em todas as esferas de Governo, autorizando a edição de leis, pelo Município, que atendam à finalidade de proteção desse bem jurídico. Precedentes do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Parecer pela improcedência da ação.
Colendo Órgão Especial
Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente
O Sindicato da Indústria da Fabricação do Álcool do Estado de São Paulo (SIFAESP)
e o Sindicato da Indústria do Açúcar no Estado de São Paulo (SIAESP) propuseram
ação direta de inconstitucionalidade do art. 2º da Lei Complementar nº 2, de 07
de outubro de 2008, do Município de Uchôa, que proíbe o emprego de fogo na
despalha da cana-de-açúcar como método de pré-colheita, alegando, em apertada
síntese, que, ao editar o ato normativo, o Município usurpou a competência
legislativa estadual.
Apontam
violação dos arts. 23, parágrafo único, nº 14; 192, § 1º; e 193, inc. XX e XXI,
da Constituição do Estado de São Paulo.
O
pedido de suspensão liminar dos efeitos do referido dispositivo legal foi
deferido (fls. 212).
Foram
requisitadas informações ao Prefeito e ao Presidente da Câmara Municipal,
certificando-se o decurso do prazo (fls. 235).
Em
atendimento ao art. 90, § 2º, da Constituição Paulista, colheu-se a
manifestação da Procuradoria-Geral do Estado a fls. 241/243.
A
Fazenda do Estado de São Paulo foi admitida como amicus curiae, tendo se pronunciado a fls. 245/261 em defesa da regulação
estadual que, ao contrário da lei vergastada, estipula prazo para a mecanização
da colheita da cana-de-açúcar.
É
o breve relato.
A presente
ação deve ser julgada improcedente.
O
art. 2º Lei Complementar nº 2/2008, do Município de Uchôa, teve por fim garantir o bem estar da
população da cidade e melhorar as condições ambientais do Município, que, em
épocas de seca, se ressente dos deletérios efeitos das queimadas, dentre elas
as da palha da cana-de-açúcar, que espalham gases tóxicos na atmosfera local, afetando, inclusive, a
camada de Ozônio (O³).
A
questão jurídica se resume em saber se é possível ao Município legislar sobre o
tema.
Para o início da exposição, deve-se ter em mente que
a expressão “PODER PÚBLICO”, lançada no artigo 225, caput, da Constituição Federal, abrange a Câmara Municipal e o
Poder Executivo Municipal.
Ou seja, à Câmara Municipal e ao Poder Executivo
municipal incumbem a defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado, do
ponto de vista material e legislativo, embora não haja competência privativa ou
exclusiva na defesa desse direito, pois o seu verdadeiro titular é a
coletividade, considerando-se que estamos diante de direito fundamental,
metaindividual, de terceira geração.
Assim, o Município, no presente caso, agiu nos
limites de sua competência para legislar sobre assuntos de interesse local (CF,
art. 30, I) e respaldada pelo art. 225 da Constituição Federal, que erigiu o
bem ambiental à condição de bem jurídico fundamental.
Todos os Poderes dos Municípios devem agir para a
defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Nesse
contexto, afigura-se louvável a iniciativa do Município, podendo-se extrair da análise
sistemática do texto constitucional federal a exegese segundo a qual o
Município, pelo chefe do Poder Executivo, ou por meio de membro do Poder
Legislativo municipal, tem competência legislativa para a defesa do meio
ambiente, não sendo justa a conclusão no sentido que em matéria ambiental o
município tenha apenas função suplementadora e restrita ao interesse local.
Também é relevante consignar
que a Constituição Federal de 1988 foi pioneira ao determinar, no plano
constitucional, a tutela do bem ambiental, elevando-o à condição de
direito/garantia fundamental.
E, como adverte Luís Roberto Barroso (Interpretação
e aplicação da Constituição, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 153):
“a supremacia constitucional, em nível dogmático e positivo, traduz-se em uma superlegalidade formal e material. A superlegalidade formal identifica a Constituição como a fonte primária da produção normativa, ditando competências e procedimentos para a elaboração dos atos normativos inferiores. E a superlagalidade material subordina o conteúdo de toda a atividade normativa estatal à conformidade com os princípios e regras da Constituição. A inobservância dessas prescrições formais e materiais deflagra um mecanismo de proteção da Constituição, conhecido na sua matriz norte-americana como judicial review, e batizado entre nós de ‘controle de constitucionalidade’”.
Os parâmetros para o controle de
constitucionalidade, portanto, são os aspectos formais e materiais da produção
normativo infraconstitucional. Daí a razão pela qual se fala em
inconstitucionalidade formal e material.
A análise puramente formal das questões
discutidas na presente ação direta até pode levar o interprete a concluir pela
inconstitucionalidade da lei municipal.
Ao instituir o bem ambiental como bem jurídico
fundamental, o legislador constituinte trouxe um importante dever ao Poder
Público e, portanto, também aos prefeitos municipais: determinou ao Poder
Público uma série de deveres fundamentais.
Com
efeito, estabelece o art. 225, caput,
que todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
O § 1º do
mencionado dispositivo legal explicita diversos deveres:
Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos
essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
II - preservar a diversidade e a integridade do
patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e
manipulação de material genético;
III - definir, em todas as unidades da Federação,
espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo
a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer
utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua
proteção;
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra
ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio
ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;
V - controlar a produção, a comercialização e o
emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a
qualidade de vida e o meio ambiente;
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis
de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da
lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a
extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
Portanto, não há dúvida: INCUMBE AO PODER PÚBLICO
A DEFESA DO MEIO AMBIENTE ECOLGICAMENTE EQUILIBRADO. Não há discricionariedade.
A EXPRESSÃO “PODER PÚBLICO” ABRANGE A CÂMARA
MUNICIPAL E O CHEFE DO PODER EXECUTIVO MUNICIPAL.
Ou seja, ao Município também incumbe a defesa do
meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Não há competência privativa ou exclusiva dos
demais entes federativos, de forma a relegar o município a um plano secundário
na tutela do meio ambiente.
Assim, o Município agiu nos limites de sua
competência para legislar sobre assuntos de interesse local (CF, art. 30, I) e
respaldada pelo art. 225 da Constituição Federal, que erigiu o bem ambiental à
condição de bem jurídico fundamental.
Reputar-se inconstitucional a atitude do
legislador municipal que atua na defesa do meio ambiente ecologicamente
equilibrado também significa contrariar
o artigo 23, VI, da Constituição Federal, que afirma ser de competência comum da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios proteger o meio ambiente e combater a
poluição em qualquer de suas formas.
Todos os Poderes devem agir para a defesa do meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Além disso, na magistral lição de Juarez Freitas,
“no centro do dilema entre legalidade e legitimidade, o juiz há de
posicionar-se de modo transdogmático, na busca de um sistema jurídico aberto,
epistemologicamente, à sociedade que, em regra, deslegitima os logicismos
formais de todas as correntes positivistas que desprezam os princípios
fundamentais, garantidos e assegurados na própria Constituição. Tais
princípios, a propósito, exigem que a legalidade se subordine à legitimidade,
esta última consagrada pro estes mesmos princípios, aos quais se deve garantir
a maior eficácia, sob pena de reduzi-los a meros enunciados retóricos, sem a
efetividade concreta que a sociedade tanto solicita” (A substancial
inconstitucionalidade da lei injusta, Petrópolis: Vozes/EDIPUCRS, 1989, p. 107).
O citado autor (op. cit., p. 90), aliás, formula
um exemplo perfeitamente coincidente com o caso
“Só à guisa de exemplificação, admitamos a hipótese de que um juiz federal, atribuindo a pecha de inconstitucionalidade à Lei Estadual, pois a competência para legislar sobre florestas é exclusiva da União, julgue improcedente a impetração de mandado de segurança contra ato de autoridade do Estado-membro, que determina a sustação dos pedidos de exploração florestal para o abate e a industrialização de árvores nativas, argumentando que não se pode ter do Direito uma estreita visão positivista, desconhecendo que ao Direito do Estado deve-se antepor a prova do ‘jusnaturalismo’. Admitir-se – pensou ele – que a norma escrita, posta pelo Estado, contém, única e exclusivamente, o Direito, é cair em grave risco, razão pela qual aplica o dispositivo por ele considerado, equivocadamente, inconstitucional.
Faltou a este juiz imaginário uma correta formação dialética, pois, ao invés de reconhecer a inconstitucionalidade do diploma estadual, julgando que o ato da autoridade impetrada deveria ser mantido pelo direito natural à vida e à dignidade humana, deveria considerá-lo constitucional, pois tais direitos, não apenas retoricamente, constituem os fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito”.
De fato, o
aspecto material da constitucionalidade não pode ser desprezado.
E, nesse
aspecto, o Município tem competência para legislar sobre a questão de interesse
local tratada na referida lei, inclusive, no que se refere à proibição da
queima, não padecendo da necessidade de controle abstrato, visto que não ofende
frontalmente a Constituição Bandeirante e está apta a permanecer no mundo
jurídico.
A proibição
da queima da palha da cana-de-açúcar no Município, à evidência, não coloca em
perigo “fatores sensíveis da economia regional” envolvendo a realização da
colheita desta cultura, como alegam as entidades autoras, já que, sabidamente,
o setor vem, a cada ano, aumentando significativamente a quantidade de hectares
de cana crua colhidos mecanicamente. Este aspecto deita por terra o argumento
de que o interesse é somente regional ou Estadual, até porque a norma abstrata
não pode ser totalmente divorciada da possibilidade de aplicação concreta -
para isso ela é feita, aplicação ao caso concreto – e como já dito, os
munícipes são os primeiros a sofrerem com os efeitos das queimadas da palha da
cana-de-açúcar no território do município.
E aos
argumentos relacionados à afirmação da competência do Município para a
proibição de queimadas ao ar livre em seu território, somam-se os preceitos da
Constituição Federal, cuja transcrição é de rigor:
“Art. 182 – A Política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana (...)” .
Ainda sobre o
interesse local e inequívoca competência dos Municípios para legislarem sobre
questões de ordenamento do solo, mormente o urbano e de expansão urbana, dispõe
a Lei Federal nº 10.257, de 10.07.2001 – Estatuto da Cidade:
“Art. 39 – A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art.2º desta Lei.
Art. 40 – O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.
1º - O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas.
§ 2º - O plano diretor deverá englobar o território do Município como um todo”.
Já o art. 4º
do Estatuto da Cidade dispõe:
“Art. 4º - Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:
...
III – planejamento municipal, em especial:
a– plano diretor;
b– disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo;
c– zoneamento ambiental ...”.
Pertinente,
ademais, invocar novamente o conteúdo da espinha dorsal do Capítulo VI - Do
Meio Ambiente, inscrito pelo constituinte originário de 1988:
“Art. 225 – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Frise-se,
ainda, que as disposições do capítulo referente ao meio ambiente encontram eco
em outros princípios do texto fundamental, inclusive, como elemento de
legitimação da própria atividade econômica, conforme dá conta o art. 170, III e
VI, da CF:
“Art.
III – função social da propriedade;
VI – defesa do meio ambiente”.
Ainda sobre o
interesse e competência de todos os organismos do Estado na proteção ambiental,
bem assim no resguardo e recuperação da qualidade de vida e saúde da população,
mister acorrer ao texto da Constituição Bandeirante:
“Art. 191 – O Estado e os Municípios providenciarão, com a participação da coletividade, a preservação, conservação, defesa, recuperação e melhoria do meio ambiente natural, artificial e do trabalho, atendidas as peculiaridades regionais e locais e em harmonia com o desenvolvimento social e econômico.
Art. 192 – A execução de obras, atividades, processos produtivos e empreendimentos e a exploração de recursos naturais de qualquer espécie, quer pelo setor público, quer pelo privado, serão admitidas se houver resguardo do meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Art. 201 – O Estado apoiará a formação de consórcios entre os Municípios, objetivando a solução de problemas comuns relativos à proteção ambiental, em particular à preservação dos recursos hídricos e ao uso equilibrado dos recursos naturais”.
Do que se
extrai até aqui, considerando que o direito é uno, e considerando que a lei
como uma das principais fontes do direito pátrio não contém palavras e
disposições inúteis e, por fim, considerando que os princípios constitucionais
devem ser interpretados, aplicados e harmonizados sem prevalência de uns em
detrimento de outros, não há como negar que o Município, através dos seus
representantes eleitos, no caso sob análise, tem competência e o dever de zelar
pelo interesse público da manutenção da qualidade de vida local.
Julgando a
Apelação Cível nº 240.742.5/5, da Comarca de Mauá, deduzida em Mandado de
Segurança e tendo como apelada a Secretaria do Planejamento e Meio Ambiente do
Município de Mauá, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em acórdão
relatado pelo Eminente Desembargador Soares Lima, enfocando o tema competência
legislativa dos municípios, denegou a ordem em pleito de anulação de
indeferimento de licenciamento ambiental nos seguintes termos:
“(...) Inconsistente se afigura o reclamo, na medida em que não se vislumbra a inconstitucionalidade do artigo 157, da Lei Orgânica do Município de Mauá.
A propósito, justificado ficou, de passagem, que ‘os direitos de livre concorrência não são absolutos, podendo sofrer limitações em prol do interesse social’ (fls. 220).
Realmente, embora a livre concorrência tenha sido ditada constitucionalmente em princípio geral da atividade econômica (art. 170, IV, da Constituição Federal), a defesa do meio ambiente também o foi (inciso VI), o que ‘tem o efeito de condicionar a atividade produtiva ao respeito do meio ambiente e possibilita ao Poder Público interferir drasticamente, se necessário, para que a exploração econômica preserve e ecologia’ (Curso de Direito Constitucional Positivo, José Afonso da Silva, 11ª ed., 1996, Malheiros Editores, SP., pág. 728).
Nessa ordem de raciocínio, de toda evidência que a lei municipal não invadiu esfera de competência exclusiva do Estado ou da União, traçando parâmetros para a execução de atividade de fins lucrativos que, indiscutivelmente, deteriora o meio ambiente, vez que lhe cabe ‘o controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano’ (artigo 30, VIII, da Carta Magna) cumprindo-lhe, ainda, ‘proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas’ (artigo 23, VI, da Constituição Federal).
É o quanto basta para desvanecer o almejado direito subjetivo líquido e certo dos impetrantes. Nego provimento ao recurso”.
E no plano do
pacto federativo o art. 1º, da Constituição Federal de 1988, não deixa nenhuma
dúvida acerca da autonomia política dos municípios, dispondo:
“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal ...”.
E o projeto
de repartição de competências introduzido pelo constituinte, segundo o
magistério de Joaquim Castro Aguiar, (Competência e Autonomia Dos Municípios na
Nova Constituição, Forense, Rio de Janeiro, 1995, pág.19), “contrariamente ao
que se costuma ver nos regimes federativos, a federação brasileira possui
quatro centros distintos de poder: um, federal, da União; um, regional, dos
Estados-membros; um, do Distrito Federal; e um quarto, local, dos Municípios,
todos autônomos e com poderes políticos emanados diretamente da Constituição.
Embora tenha atribuído à União um quinhão maior na partilha das competências,
concedeu ao Município um poder, insuscetível de usurpação pelo governo central
ou pelo regional e sem qualquer diferença de caráter dos poderes concedidos à
União e ao Estado (...). Do exposto pode-se chegar à conclusão de que a lei
municipal não é menos autêntica do que a lei federal e a estadual. O Município
faz parte, pois, da estrutura do regime federativo brasileiro. Não recebeu
competência por delegação da União ou do Estado. Possui competência originária,
de primeiro grau, nascida da própria Constituição, diretamente”.
A doutrina de
José Souto Maior Borges (Lei Complementar Tributária, RT, São Paulo, 1975,
págs.10/12) ensina que “não há desníveis hierárquicos entre as pessoas
constitucionais, que juridicamente são iguais entre si”. E na seqüência
arremata: “No campo de competência do Município, a lei municipal é exclusiva e
excludente de qualquer outra lei. Não está acima nem abaixo das leis federais e
estaduais, precisamente porque está isolada na sua esfera privativa de
competência”.
E comentando
as competências exclusiva, privativa, comum, concorrente e suplementar da
União, dos Estados, dos Municípios e Distrito Federal, leciona Joaquim Castro
Aguiar (op. cit., p. 24):
“Existem matérias sobre as quais tanto a União, quanto os Estados, o Distrito Federal e os Municípios podem legislar, sendo os poderes compartilhados entre as unidades federativas. Podemos ditar, como exemplos, a proteção e defesa da saúde, a proteção do meio ambiente e controle da poluição. Nesses casos, diz-se que a legislação é concorrente, no sentido de que cada ente federativo possui um quinhão do poder legislativo, nessa partilha de competências. A matéria não é exclusive e nem privativa de ninguém, podendo, pois, ser objeto de legislação federal, estadual, distrital ou municipal”.
A
Constituição Federal, no art. 23, prevê como segue:
“Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artística e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;
IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;
VI – proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas”;
A respeito do
tema, pontua Vladimir Passos de Freitas (A
Constituição Federal e a efetividade das normas ambientais, 2ª ed., São
Paulo, RT, 2002, p. 75) que:
“A Constituição Federal, no art. 23, partilhou entre os vários entes da Federação um vasto rol de matérias em que todos, isolados, em parceria ou em conjunto, podem atuar segundo regras pré-estabelecidas. É a chamada competência comum. Ela se distingue da competência concorrente, que se verifica quando em relação a uma só matéria concorre mais de uma pessoa política”.
De outro
lado, indispensável recordar o conteúdo do que dispõe o art. 30 da Constituição
Federal:
“Art. 30 – Compete aos Municípios:
I – legislar sobre assuntos de interesse local;
II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;
VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”.
Ao discorrer
sobre o assunto, José Nilo de Castro observa que “inegavelmente, cabe ao
Município, como poder público, dispor sobre regras de direto, legislando em
comum com a União e o Estado, com fundamento no art. 23, VI, CR. Portanto,
quando um Município, através de lei – mesmo que se lhe reconheça conteúdo
administrativo, em se tratando de competência comum -, disciplinar esta
matéria, fa-lo-á no exercício da competência comum, peculiarizando-lhe a
ordenação pela compatibilidade local, e consideração a esta ou àquela vocação
sua” (“Perspectivas do Direito Municipal”, “in”. Ciência Jurídica, set-out.
1993, vol. 53, pág.131).
Para Toshio
Mukai, de outro lado, “a competência do Município é sempre concorrente com a da
União e a dos Estados-membros, podendo legislar sobre todos os aspectos do meio
ambiente, de acordo com sua autonomia municipal (art.15 da CF), prevalecendo
sua legislação sobre qualquer outra, desde que inferida do seu predominante
interesse; não prevalecerá em relação às outras legislações, nas hipóteses em
que estas forem diretamente inferidas de suas competências privativas,
subsistindo a do Município, entretanto, embora observando as mesmas”
(“Legislação, meio ambiente e autonomia municipal. Estudos e Comentários”: RDP,
Vol. 79, pág.131).
Ante as
circunstâncias jurídicas e regras de competência traçadas na Constituição
Federal, a existência de leis ordinárias reafirmando a autonomia política dos
municípios na República Federativa do Brasil, tudo ainda sob o enfoque da
doutrina e jurisprudência, inclusive, do Egrégio Supremo Tribunal Federal, não
há como afastar a possibilidade da edição de lei municipal destinada a garantir
a qualidade do meio ambiente e de vida à sua população.
Registre-se
que o próprio Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Medida Cautelar
na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.540/DF, em acórdão do qual foi
relator o eminente Ministro Celso de Mello (Julgamento proferido pelo Tribunal
Pleno, em 1/9/2005. DJ de 3-2-2006, p. 14), proclamou que o meio ambiente
ecologicamente equilibrado tem natureza de direito constitucional fundamental:
“MEIO AMBIENTE - DIREITO À PRESERVAÇÃO DE SUA INTEGRIDADE (CF, ART. 225) - PRERROGATIVA QUALIFICADA POR SEU CARÁTER DE METAINDIVIDUALIDADE - DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO (OU DE NOVÍSSIMA DIMENSÃO) QUE CONSAGRA O POSTULADO DA SOLIDARIEDADE - NECESSIDADE DE IMPEDIR QUE A TRANSGRESSÃO A ESSE DIREITO FAÇA IRROMPER, NO SEIO DA COLETIVIDADE, CONFLITOS INTERGENERACIONAIS - ESPAÇOS TERRITORIAIS ESPECIALMENTE PROTEGIDOS (CF, ART. 225, § 1º, III) - ALTERAÇÃO E SUPRESSÃO DO REGIME JURÍDICO A ELES PERTINENTE - MEDIDAS SUJEITAS AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA RESERVA DE LEI - SUPRESSÃO DE VEGETAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE - POSSIBILIDADE DE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, CUMPRIDAS AS EXIGÊNCIAS LEGAIS, AUTORIZAR, LICENCIAR OU PERMITIR OBRAS E/OU ATIVIDADES NOS ESPAÇOS TERRITORIAIS PROTEGIDOS, DESDE QUE RESPEITADA, QUANTO A ESTES, A INTEGRIDADE DOS ATRIBUTOS JUSTIFICADORES DO REGIME DE PROTEÇÃO ESPECIAL - RELAÇÕES ENTRE ECONOMIA (CF, ART. 3º, II, C/C O ART. 170, VI) E ECOLOGIA (CF, ART. 225) - COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS - CRITÉRIOS DE SUPERAÇÃO DESSE ESTADO DE TENSÃO ENTRE VALORES CONSTITUCIONAIS RELEVANTES - OS DIREITOS BÁSICOS DA PESSOA HUMANA E AS SUCESSIVAS GERAÇÕES (FASES OU DIMENSÕES) DE DIREITOS (RTJ 164/158, 160-161) - A QUESTÃO DA PRECEDÊNCIA DO DIREITO À PRESERVAÇÃO DO MEIO AMBIENTE: UMA LIMITAÇÃO CONSTITUCIONAL EXPLÍCITA À ATIVIDADE ECONÔMICA (CF, ART. 170, VI) - DECISÃO NÃO REFERENDADA - CONSEQÜENTE INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE MEDIDA CAUTELAR. A PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE: EXPRESSÃO CONSTITUCIONAL DE UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE À GENERALIDADE DAS PESSOAS.
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Trata-se de um típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão),
que assiste a todo o gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à
própria coletividade, a especial obrigação de defender e preservar, em
benefício das presentes e futuras gerações, esse direito de titularidade
coletiva e de caráter transindividual (RTJ 164/158-161). O adimplemento desse
encargo, que é irrenunciável, representa a garantia de que não se instaurarão,
no seio da coletividade, os graves conflitos intergeneracionais marcados pelo desrespeito
ao dever de solidariedade, que a todos se impõe, na proteção desse bem
essencial de uso comum das pessoas
A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a "defesa do meio ambiente" (CF, art. 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. Doutrina. Os instrumentos jurídicos de caráter legal e de natureza constitucional objetivam viabilizar a tutela efetiva do meio ambiente, para que não se alterem as propriedades e os atributos que lhe são inerentes, o que provocaria inaceitável comprometimento da saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população, além de causar graves danos ecológicos ao patrimônio ambiental, considerado este em seu aspecto físico ou natural. A QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF, ART. 3º, II) E A NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE (CF, ART. 225): O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO ENTRE AS EXIGÊNCIAS DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA.
O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações. O ART. 4º DO CÓDIGO FLORESTAL E A MEDIDA PROVISÓRIA Nº 2.166-67/2001: UM AVANÇO EXPRESSIVO NA TUTELA DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE.
A Medida Provisória nº 2.166-67, de 24/08/2001, na parte em que introduziu significativas alterações no art. 4º do Código Florestal, longe de comprometer os valores constitucionais consagrados no art. 225 da Lei Fundamental, estabeleceu, ao contrário, mecanismos que permitem um real controle, pelo Estado, das atividades desenvolvidas no âmbito das áreas de preservação permanente, em ordem a impedir ações predatórias e lesivas ao patrimônio ambiental, cuja situação de maior vulnerabilidade reclama proteção mais intensa, agora propiciada, de modo adequado e compatível com o texto constitucional, pelo diploma normativo em questão.
Somente a alteração e a supressão do regime jurídico pertinente aos espaços territoriais especialmente protegidos qualificam-se, por efeito da cláusula inscrita no art. 225, § 1º, III, da Constituição, como matérias sujeitas ao princípio da reserva legal.
É lícito ao Poder Público - qualquer que seja a dimensão institucional em que se posicione na estrutura federativa (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) - autorizar, licenciar ou permitir a execução de obras e/ou a realização de serviços no âmbito dos espaços territoriais especialmente protegidos, desde que, além de observadas as restrições, limitações e exigências abstratamente estabelecidas em lei, não resulte comprometida a integridade dos atributos que justificaram, quanto a tais territórios, a instituição de regime jurídico de proteção especial (CF, art. 225, § 1º, III)”.
Sendo assim,
com enorme respeito aos pensamentos divergentes, gostaríamos de frisar que só
uma visão excessivamente formalista do direito pode, de fato, conduzir à
conclusão de que o Município está impedido de legislar para defender o meio
ambiente ecologicamente equilibrado.
Não há
competência reservada apenas aos demais entes da Federação e, por isso, o
argumento da existência de lei estadual a regular a questão em debate, não é
suficiente para caracterizar estrito interesse regional e alijar o interesse do
Município.
Diante do exposto, aguarda-se a improcedência da presente ação direta de inconstitucionalidade.
São Paulo, 22 de dezembro de 2009.
Maurício Augusto Gomes
Subprocurador-Geral de Justiça
- Assuntos Jurídicos -
jesp