Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 177.085.0/4-00

Requerente: Prefeito do Município de Ribeirão Preto

Objeto: Lei nº 11.374, de 31 de agosto de 2007, do Município de Ribeirão Preto

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, da Lei nº 11.374, de 31 de agosto de 2007, do Município de Ribeirão Preto, que dispõe sobre o uso de bem público de uso comum do povo – o passeio público – pelos bares, lanchonetes e estabelecimentos congêneres. Projeto de Vereador. Impossibilidade. A autorização para o uso de bens públicos é ato unilateral, discricionário e precário, que não depende de lei autorizativa. Regulação minuciosa do ato normativo que não é compatível com esse instituto e se traduz em violação do princípio da separação dos poderes (art. 5º da CE). Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Ribeirão Preto, tendo por objeto a Lei Municipal n.º 11.374, de 31 de agosto de 2007, do mesmo município, que “dispõe sobre modificações na Lei nº 6.718/93 (redação dada pela Lei nº 7.836/97 – dispõe sobre a permissão de bares, lanchonetes, etc), conforme especifica e dá outras providências”.

Sustenta o autor que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Assinala que a norma impugnada dispõe sobre o uso de bem público de uso comum do povo – o passeio público – pelos bares e lanchonetes e que, em razão da matéria, reclamava projeto de iniciativa do chefe do Poder Executivo.

Aponta ofensa ao princípio da separação dos poderes e, especificamente, aos artigos 5º; 37; 47, II, III e XIV da Constituição do Estado.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar, “de molde a que se apliquem as normas sem as alterações aqui impugnadas, até o pronunciamento do E. Órgão Especial” (fls. 25).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 43/74, em defesa da lei impugnada. Prestou informações sobre o processo legislativo.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 39/41).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Preliminar

A rigor, há defeito na representação.

O Prefeito Municipal não assina a petição inicial e quem se apresenta como outorgante no instrumento de procuração juntado é a Prefeitura (fls. 10), que não tem legitimidade para a propositura da presente ação:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONAUDADE - Irregularidade de representação - Caracterização - Procurador do Município não pode subscrever sozinho a inicial - Procuração não juntada - Irregularidade que não foi sanada - Extinção sem resolução do mérito, cassada a liminar (ADIN 141.507-0/3, rel. Sousa Lima, j. 21.5.2008).

A solução está no art. 13 do CPC, podendo ser concedido ao autor prazo razoável para que regularize a representação, sob pena de extinção do processo.

Mérito

A Lei nº 6.718/93, com as modificações trazidas pela Lei nº 7.836/97, tinha a seguinte redação:

Lei nº 6.718, de 29 de dezembro de 1993

DISPÕE SOBRE PERMISSÃO AOS BARES, LANCHONETES, CONFEITARIAS, RESTAURANTES E ESTABELECIMENTOS CONGÊNERES PARA USO DO PASSEIO PÚBLICO FRONTEIRIÇO PARA COLOCAÇÃO DE MESAS, CADEIRAS E TOLDOS.

Faço saber que a Câmara Municipal aprovou o projeto de Lei nº 1110/91, de autoria do vereador João Gilberto Filho, e eu promulgo a seguinte lei:

ARTIGO 1º - Poderá ser permitido aos bares, lanchonetes, confeitarias, restaurantes e estabelecimentos congêneres o uso do passeio público fronteiriço ao estabelecimento para colocação de mesas, cadeiras e toldos, desde que obedecidas as seguintes condições:

I - a instalação do mobiliário no passeio não poderá bloquear, obstruir ou dificultar o acesso de veículos e o livre trânsito de pedestres, em especial de portadores de deficiência, nem prejudicar a visibilidade dos motoristas na confluência de vias;

II - independentemente da largura do passeio, deverá ser respeitada a faixa mínima de 1m (um metro) para o livre e seguro trânsito de pedestres pelo mesmo;

III - o trecho de passeio, objeto da permissão de uso para colocação de mesas, cadeiras e toldos, deverá, obrigatoriamente, ser junto à fachada do estabelecimento, ficando o trecho livre de 1 metro, descontados os espaços ocupados por árvores, postes, vasos, telefones e similares, para uso de pedestres e portadores de deficiência, junto ao meio fio;

IV - Para assegurar o direito dos pedestres, os estabelecimentos deverão marcar à tinta, nos pisos dos passeios públicos, o limite destinado aos pedestres, cujo espaço deverá ser mantido limpo, sem detritos, lixeiras ou quaisquer objetos que possam impedir a livre passagem;

V - Em hipótese alguma, o passeio público poderá ser ocupado com churrasqueiras, assadeiras, frangueiras, balcões, caixas de bebidas, caixotes, geladeiras, freezer, ou qualquer outro equipamento ou móvel que não esteja explícito na presente lei;

VI - Todo e qualquer estabelecimento interessado em utilizar ou que já esteja utilizando o passeio público fronteiriço para colocação de mesas, cadeiras e toldos, deverá, a partir desta lei, ter a expressa autorização do Departamento de Fiscalização Geral do Município, que só autorizará mediante a inspeção do local e satisfeitas todas as exigências previstas nesta lei.

ARTIGO 2º - A permissão de que trata esta lei será dada a título precário e sem direito de ressarcimento ao permissionário em caso de revogação ou cassação da mesma.

PARÁGRAFO ÚNICO - Revoga a permissão por interesse público, terá o permissionário o prazo de 30 (trinta) dias para remoção do mobiliário do passeio, findo o qual será o mobiliário apreendido e removido pela autoridade competente.

ARTIGO 3º - O desrespeito ao disposto na presente lei implicará na multa de 300 (trezentas) UFM, cobrada em dobro em caso de reincidência.

§ 1º - Persistindo a infração por mais de três reincidências, será cassada a autorização e o proprietário intimado a remover o mobiliário do passeio, no prazo de 5 (cinco) dias.

§ 2º - Findo o prazo a que se refere o parágrafo anterior e não atendida a intimação, o mobiliário será apreendido e removido pela autoridade competente, sempre às expensas do infrator.

§ 3º - A devolução do material deverá ser solicitada num prazo máximo de 3 (três) dias úteis, após o que o mesmo poderá ser destinado a instituições de utilidade pública ou de caráter social.

§ 4º - A devolução do material apreendido só será efetivada mediante a apresentação dos recibos de quitação das respectivas multas e despesas de remoção.

ARTIGO 4º - Dentro do prazo de 90 (noventa) dias da publicação da presente lei, o Prefeito, mediante decreto, expedirá o correspondente regulamento.

ARTIGO 5º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Palácio Rio Branco

ANTÔNIO PALOCCI FILHO

Prefeito Municipal

A Lei nº 11.374, de 31 de agosto de 2007, do Município de Ribeirão Preto, ora impugnada, foi redigida nos seguintes termos:

DISPÕE SOBRE MODIFICAÇÕES NA LEI Nº 6718/93 (REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 7836/97 - DISPÕE SOBRE PERMISSÃO DE BARES, LANCHONETES ETC) CONFORME ESPECIFICA E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.

Faço saber que a Câmara Municipal de Ribeirão Preto rejeitou, em sessão ordinária realizada no dia 30/08/2007, o Veto Total ao Projeto de Lei nº 1273/07, e eu, Wandeir Silva, Presidente, nos termos do Artigo 44, Parágrafo 6º, da Lei Orgânica do Município de Ribeirão Preto, promulgo a seguinte Lei:

Artigo 1º - Fica pela presente lei, alterada a Lei nº 6718, de 29 de dezembro de 1993 (redação dada pela Lei nº 7836, de 08 de outubro de 1997), nos dispositivos abaixo elencados, mantendo-se-lhe os demais dispositivos, cujas alterações são as seguintes:

I - suprima-se no “caput” do artigo 1º da lei supra-referenciada a expressão “fronteiriço”, mantendo-se-lhe os demais dispositivos legais.

II - suprima-se a expressão “obrigatoriamente, ser junto à fachada do estabelecimento..” do inciso III do artigo 1º da lei supra-referenciada, mantendo-lhe suas demais disposições.

III - acrescenta parágrafo único ao inciso III do artigo 1º, com a seguinte redação:

“Artigo 1º - omissis

I a III - omissis

Parágrafo Único - Poderá o estabelecimento, obtendo autorização de seu vizinho, utilizar-se do passeio público dele, respeitadas as disposições constantes desta lei.

Artigo 2º - Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

WANDEIR SILVA

Presidente

Como se vê, os atos normativos transcritos tratam de regras sobre o uso especial do passeio público por particulares.

A propósito do tema, Hely Lopes Meirelles anota que “autorização de uso é o ato unilateral, discricionário e precário pelo qual a Administração consente na prática de determinada atividade individual incidente sobre um bem público. Não tem forma nem requisitos especiais para sua efetivação, pois visa apenas a atividades transitórias e irrelevantes para o Poder Público, bastando que se consubstancie em ato escrito, revogável sumariamente a qualquer tempo e sem ônus para a Administração. (...) Tais autorizações não geram privilégios contra a Administração ainda que remuneradas e fruídas por muito tempo, e, por isso mesmo, dispensam lei autorizativa e licitação para seu deferimento” (Direito Administrativo Brasileiro, 34ªed., atual. por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho, São Paulo, Malheiros, 2008, p.533).

Essa lição, indicativa dos pressupostos e dos limites das autorizações de uso, é repetida, de forma geral, pela doutrina (Cf. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ªed., São Paulo, Atlas, 2006, p.658/659; Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Saraiva, 2005, p.1085; Marçal Justen Filho, Curso de Direito Administrativo, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 2006, p.736/737; entre outros).

Edmir Netto de Araújo, aliás, enfatiza que tais autorizações podem ser concedidas por “decreto, portaria ou outro ato jurídico administrativo típico da autoridade competente (geralmente do órgão ou entidade estatal ao qual cabe a administração do bem), sem necessidade de lei autorizativa e procedimento licitatório, e versar sobre qualquer tipo de bem público, desde que compatível com o interesse público e eventual afetação do bem” (op. cit., p.1085).

No caso em análise, a Câmara Municipal de Ribeirão Preto estabeleceu regras para disciplinar as tais “autorizações”. E, embora a matéria não se encontre expressamente prevista no art. 24, § 2º, da Constituição do Estado – que trata dos temas cuja iniciativa normativa está reservada ao chefe do Poder Executivo – acabou invadindo a esfera reservada à gestão do Município a cargo do Prefeito.

É que, ao editar a lei, o Poder Legislativo acabou instituindo o uso do passeio público pelas lanchonetes, confeitarias, restaurantes e congêneres para além dos limites originais (que se restringiam à fachada do estabelecimento) para o particular que obtiver “a autorização de seu vizinho” para “utilizar-se do passeio público dele”. Criou para o comerciante verdadeiro direito subjetivo à ocupação do espaço público, incompatível com a natureza do instituto da autorização de uso em análise.

Na esteira das lições acima transcritas, não é necessário que a lei diga o que o Poder Executivo pode ou não fazer dentro de sua típica atividade administrativa. Se o faz, torna-se patente que a atividade legislativa imiscuiu-se no âmbito de atuação do administrador, fazendo-o de modo inconstitucional, como, aliás, tem afirmado esse E. Tribunal de Justiça:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (ADI n. 53.583-0, rel. Des. Fonseca Tavares).

Em caso análogo (e do mesmo município) decidiu-se:

Ação Direta de Inconstitucionalidade – Lei Municipal que normatiza o uso do passeio público - Intervenção indevida em área de competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo - Violação dos artigos 5º, 37, 47, II, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo - Ação procedente (ADIN nº 125.192-0/7, Ribeirão Preto, rel. Des. Laerte Nordi, j. 26/4/2006).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei n.º 11.374, de 31 de agosto de 2007, do Município de Ribeirão Preto, que “dispõe sobre modificações na Lei n. 6.718/93 (redação dada pela Lei n. 7.836/97 – dispõe sobre a permissão de bares, lanchonetes, etc), conforme especifica e dá outras providências”.

São Paulo, 17 de julho de 2009.

 

 

        Maurício Augusto Gomes

        Subprocurador-Geral de Justiça

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