Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 178.694-0/0

Requerente: Prefeito Municipal de Franca

Objeto: §§ 1º e 2º do art. 35 da Lei Complementar nº 137, de 18 de dezembro de 2008, do Município de Franca

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, ajuizada por Prefeito, dos §§ 1º e 2º do art. 35 da Lei Complementar nº 137, de 18 de dezembro de 2008, do Município de Franca. Dispositivos que derivam de emenda modificativa a projeto de lei sobre parcelamento do solo urbano, matéria de iniciativa privativa do Chefe do Executivo. Alegação acolhida de que os dispositivos impugnados descaracterizaram o projeto original e geram despesas não previstas. Usurpação das atribuições do Prefeito, com ofensa ao princípio da separação dos poderes (art. 5º da CE). Parecer pela procedência.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Franca, tendo por objeto os §§ 1º e 2º do art. 35 da Lei Complementar nº 137, de 18 de dezembro de 2008, do Município de Franca.

Sustenta o autor que os dispositivos questionados derivam da Emenda Modificativa nº 10, da autoria do Vereador (...), a projeto de lei complementar nascido no Poder Executivo, para dispor “sobre o parcelamento do solo no Município de Franca”.

Esses dispositivos, conforme a inicial, teriam desfigurado o projeto original e criado despesas para o Poder Executivo, sem previsão de receitas. Além disso, a alteração não foi precedida de audiência pública.

Aponta ofensa aos artigos 5º, caput, e §§ 1º e 2º; 25, caput; 47, II, XI e XIV; 144; 180, I, II e V; e 181, caput, da Constituição do Estado de São Paulo.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 273/274).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 288/293, em defesa da lei impugnada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 284/286).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

O processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes[1].

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República[2], conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo, difuso ou concentrado, por parte do Poder Judiciário.

A iniciativa é o ato que deflagra o processo legislativo. Pode ser geral ou reservada (ou privativa). No primeiro caso, vereador, Mesa, comissão da Câmara, prefeito ou a população podem titularizar o projeto. No segundo, há um único titular.

A matéria de que trata a lei em análise – uso do solo urbano – é daquelas cuja iniciativa cabe ao Prefeito[3]. Nesse aspecto, não há qualquer objeção, pois a Lei Complementar nº 137, de 18 de dezembro de 2008, que “dispõe sobre o parcelamento do solo no Município de Franca e dá outras providências”, decorre de projeto do Poder Executivo (fls. 30).

O problema, segundo o Alcaide, está circunscrito à Emenda modificativa nº 10, de autoria do vereador (...), que teria descaracterizado relevantes aspectos do projeto.

Sabe-se que, uma vez apresentado o projeto pelo Chefe do Poder Executivo, está exaurida a sua atuação. Abre-se o caminho, em seguida, para fase constitutiva da lei, que se caracteriza pela discussão e votação públicas da matéria.

Nessa fase se sobressai o poder de emendar.

O poder de emendar é reconhecido pela doutrina tradicional e está reservado aos parlamentares enquanto membros do Poder incumbido de estabelecer o direito novo.

O Supremo Tribunal Federal o considera como prerrogativa dos parlamentares, como se intui do seguinte julgado:

“O exercício do poder de emenda, pelos membros do parlamento, qualifica-se como prerrogativa inerente à função legislativa do Estado - O poder de emendar - que não constitui derivação do poder de iniciar o processo de formação das leis - qualifica-se como prerrogativa deferida aos parlamentares, que se sujeitam, no entanto, quanto ao seu exercício, às restrições impostas, em "numerus clausus", pela Constituição Federal. - A Constituição Federal de 1988, prestigiando o exercício da função parlamentar, afastou muitas das restrições que incidiam, especificamente, no regime constitucional anterior, sobre o poder de emenda reconhecido aos membros do Legislativo. O legislador constituinte, ao assim proceder, certamente pretendeu repudiar a concepção regalista de Estado (RTJ 32/143 - RTJ 33/107 - RTJ 34/6 - RTJ 40/348), que suprimiria, caso prevalecesse, o poder de emenda dos membros do Legislativo. - Revela-se plenamente legítimo, desse modo, o exercício do poder de emenda pelos parlamentares, mesmo quando se tratar de projetos de lei sujeitos à reserva de iniciativa de outros órgãos e Poderes do Estado, incidindo, no entanto, sobre essa prerrogativa parlamentar - que é inerente à atividade legislativa -, as restrições decorrentes do próprio texto constitucional (CF, art. 63, I e II), bem assim aquela fundada na exigência de que as emendas de iniciativa parlamentar sempre guardem relação de pertinência com o objeto da proposição legislativa” (STF, Pleno, ADI nº 973-7/AP – medida cautelar. Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19 dez. 2006, p. 34 –g.n.).

Mas o considera restrito, como se conclui do trecho acima destacado e do paradigmático julgado adiante transcrito:

Incorre em vício de inconstitucionalidade formal (CF, artigos 61, § 1º., II, "a" e "c" e 63, I) a norma jurídica decorrente de emenda parlamentar em projeto de lei de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, de que resulte aumento de despesa. Parâmetro de observância cogente pelos Estados da Federação, à luz do princípio da simetria. Precedentes. 2. Ausência de prévia dotação orçamentária para o pagamento do beneficio instituído pela norma impugnada. Violação ao artigo 169 da Constituição Federal, com a redação que lhe foi conferida pela Emenda Constitucional 19/98. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente (ADI 2079/SC, STF - Pleno, rel. Maurício Corrêa, DJ 18.06.2004, p. 44; Ement. Vol. 2156-01, p. 73).

A limitação ao poder de emendar projetos de lei de iniciativa reservada do Poder Executivo existe no sentido de evitar: (a) aumento de despesa não prevista, inicialmente; ou então (b) a desfiguração da proposta inicial, seja pela inclusão de regra que com ela não guarde pertinência temática; seja ainda pela alteração extrema do texto originário, que rende ensejo a regulação praticamente e substancialmente distinta da proposta original.

No caso dos autos, a Emenda incidiu sobre os §§ do art. 35 do projeto, que ficaram assim redigidos:

Art. 35 - ...

§ 1º - Na hipótese prevista neste artigo, será obrigatória a implantação das obras previstas nos incisos I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII e XIII do art. 33 desta Lei Complementar, sendo as demais obras de infraestrutura executadas através de programas de contribuição de melhorias;

§ 2º - As obras exigidas no parágrafo anterior deverão estar obrigatoriamente concluídas no prazo de 36 (trinta e seis) meses, contados a partir da data de registro do empreendimento no Cartório de Registro de Imóveis, sendo dispensada a apresentação de garantia para sua conclusão, se o loteamento for empreendido pelo Poder Público, entidade de sua administração indireta ou por cooperativas habitacionais.

A Emenda é, de fato, inconstitucional, porque, nos termos do § 1º do art. 35, reduz as obrigações do empreendedor referentes à execução das obras de infraestrutura do loteamento instituído, transferindo-as à Municipalidade.

Cuida-se, à evidência, de regra que gera despesa não prevista no projeto original e que, por esse só motivo, não tem como prosperar. Nem mesmo a alegação do Presidente da Câmara de que esse ônus será coberto por contribuição de melhoria afasta a inconstitucionalidade, cumprindo observar que, a rigor, o texto aprovado, embora se refira à exação, não a cria.

O § 2º do art. 35, com a redação que lhe deu a Emenda, desfigura o projeto original, porque despreza às inteiras o cronograma de obras de saneamento, água potável, rede elétrica e iluminação pública, consentâneo aos estudos técnicos previamente elaborados pelo Poder Executivo.

Soma-se a isso que o tratamento privilegiado concedido às cooperativas habitacionais, que ficam dispensadas da apresentação de garantias para a execução e conclusão das obras, é injustificável e pode resultar em mais despesas para a Administração.

Reconhece-se, assim, o abuso do poder de emendar e a conseqüente violação do princípio da separação dos poderes de que trata o art. 5º da Constituição do Estado.

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta de inconstitucionalidade .

 

São Paulo, 15 de julho de 2009.

 

 

        Maurício Augusto Gomes

        Subprocurador-Geral de Justiça

        - Assuntos Jurídicos -

jesp



[1] Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 675.

[2] Alexandre de Moraes. Direito Constitucional, 23ª. ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 641.

[3] “Nesse passo, deve-se observar que, se a Constituição do Estado impôs o ‘estabelecimento de diretrizes e normas relativas ao desenvolvimento urbano’ (artigo 180, caput), a elaboração de ‘planos, programas e projetos’ em matéria urbanística (artigo 180, inciso II), bem como a subordinação da legislação municipal respectiva as diretrizes do plano diretor e, como visto, dos planos parciais que o plano geral devia conter, a conseqüência inafastável é a de que é mesmo do Poder Executivo a iniciativa do processo legislativo, sempre que a matéria reservada à lei seja de tal natureza que reclame a feitura de planos prévios” (trecho do v. Acórdão da ADI nº 66.667-0/6, rel. Dante Busana, j. 12.9.01)