Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

 

Autos nº 179.051-0/4-00

Requerente: Prefeito Municipal de Jandira

Objeto: Lei Municipal nº 1747, de 6 de novembro de 2008, e Lei Complementar nº 14, de 6 de novembro de 2008, ambas de Jandira.

 

 

Ementa:

1)Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal nº 1747, de 6 de novembro de 2008, e Lei Complementar nº 14, de 6 de novembro de 2008, ambas de Jandira. Leis que alteraram, respectivamente, dispositivos da Lei Municipal nº 1042/96, e nº 1426/06. Concessão de imunidade tributária com relação a IPTU, para entidades religiosas e beneficentes, quando o imóvel utilizado é locado.

2)Quebra da separação de poderes. Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa (art. 5º, 47, II e 144 da Constituição Paulista).

3)Sujeito passivo da obrigação tributária quanto ao IPTU. Proprietário, possuidor ou titular do domínio útil. Imunidade constitucional para “templos de qualquer culto” e para entidades beneficentes. Norma que, de forma inconstitucional, estende a imunidade ao locador. (art. 163, VI, b e c, bem como § 4º da Constituição Paulista).

4)Inconstitucionalidade reconhecida.

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Senhor Prefeito Municipal de Jandira, tendo como alvo a Lei Municipal nº 1747, de 6 de novembro de 2008, e a Lei Complementar nº 14, de 6 de novembro de 2008, ambas de Jandira, que alteraram, respectivamente, dispositivos da Lei Municipal nº 1042/96, e nº 1426/06, ampliando a imunidade constitucional tributária de entidades religiosas e beneficentes.

Sustenta o Senhor Prefeito Municipal que os diplomas são inconstitucionais, na medida em que houve quebra da separação de poderes, bem como aumento de despesas ou redução de receitas sem amparo na legislação orçamentária. Apontou, assim, violação ao disposto nos seguintes dispositivos da Constituição Estadual: art. 5º, art. 47, XIV, art. 144, art. 163, art. 174, II e III, e §§ 2º e 6º.

Foi concedida a liminar, determinando-se a suspensão da eficácia dos diplomas impugnados (fls. 86/88).

Citado (fls. 111), o Senhor Procurador-Geral do Estado declinou da defesa do ato normativo (fls. 113/115).

Notificada (fls. 103), a Câmara não prestou informações até o momento (fls. 116).

É o relato do essencial.

Eis o teor dos diplomas impugnados:

Lei nº 1747, de 6 de novembro de 2008.

Dispõe sobre alteração na Lei nº 1042, de 11 de setembro de 1996 e dá outras providências.

(...)

Art. 1º. Fica alterado o artigo 2º da Lei nº 1042 de 11 de setembro de 1996 que passa a vigorar com a seguinte redação:

‘art. 2º. Fica garantido este direito as entidades religiosas e beneficentes, seja ela sede e / ou filiais, sendo próprias ou alugadas.’

Art. 2º. Permanecem inalterados os demais artigos da Lei nº 1042 de 11 de setembro de 1996.

Parágrafo único. Quando o imóvel tiver outra finalidade além do que estabelece o artigo 1º, a isenção será calculada proporcionalmente sobre o espaço utilizado para os fins que especifica.

Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

 

(...)

 

Lei Complementar nº 14 de 6 de setembro de 2008.

Dispõe sobre alteração da Lei nº 1426 de 26 de dezembro de 2006 e dá outras providências.

(...)

Art. 1º. Fica alterada a Lei nº 1426 de 26 de dezembro de 2006 passando a vigorar com a seguinte redação:

‘Art. 7º....

§ 2º. SUPRIMIDO.’

Art. 2º. Esta Lei Complementar entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.”

Para compreender tais alterações, é necessário averbar a redação anterior dos dispositivos modificados pelas leis impugnadas.

A Lei nº 1042, de 11 de setembro de 1996 (alterada pela Lei 1747/2008, impugnada nesta ação direta), conforme respectiva rubrica “dispõe sobre isenção da taxa de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), todas as entidades religiosas e beneficentes”. O dispositivo modificado tinha, anteriormente, a seguinte redação:

“Art. 2º. Fica garantido este direito às entidades religiosas e beneficentes que tenham sua sede própria, que não sejam alugadas”.

De outro lado, a Lei Municipal nº 1426, de 26 de dezembro de 2006 (alterada pela Lei Complementar nº 14/2008, impugnada nesta ação direta), conforme respectiva rubrica, “dispõe sobre o sistema tributário municipal e as normas gerais de direito tributário aplicáveis ao Município”. O dispositivo alterado (ou seja, suprimido), tinha, anteriormente, a seguinte redação:

“Art. 7º....

§ 2º. A vedação para o Município instituir impostos sobre templos de qualquer culto, compreende somente o patrimônio e os serviços relacionados com as suas finalidades essenciais”.

Dessa forma, observa-se que as duas leis impugnadas impuseram as seguintes modificações no ordenamento municipal: (a) ampliaram a imunidade tributária relativamente ao IPTU das entidades religiosas, que antes alcançava apenas a sede própria (não alugada), passando a aplicar-se também à hipótese de utilização de sedes ou filiais alugadas; (b) excluiu do ordenamento tributário local a cláusula pela qual a imunidade tributária dos templos de qualquer culto compreendia somente os serviços relacionados com as suas finalidades essenciais; permitindo, assim, que essa imunidade seja mais ampla.

Em outros termos, a novel legislação, na prática, ampliou a imunidade tributária das entidades religiosas e beneficentes, tendo isso ocorrido, como noticia a inicial, em decorrência de iniciativa parlamentar.

Esta Procuradoria-Geral de Justiça vem sustentando que as denominadas “leis tributárias benéficas”, ou seja, aquelas que concedem benesses ao contribuinte são inconstitucionais não por violação da iniciativa reservada do Executivo, que não existe na hipótese, mas sim pela quebra da regra da separação de poderes.

Reserva de iniciativa é matéria de direito estrito, e só deve ser reconhecida nos casos taxativamente previstos na Constituição Federal ou Estadual. Suas hipóteses estão indicadas taxativamente no art. 61, § 1º da CR/88, e no art. 24, § 2º da Constituição Paulista, não incluindo matéria tributária.

Essa é a posição que tem prevalecido no E. STF, que explicita a inexistência de reserva de iniciativa em matéria de legislação tributária, inclusive no que toca aos casos de leis tributárias benéficas.

Confira-se o seguinte precedente:

“(...)

Lei de iniciativa parlamentar. Ausência de vício formal. Não ofende o art. 61, § 1º, II, b da Constituição Federal lei oriunda de projeto elaborado na Assembléia Legislativa estadual que trate sobre matéria tributária, uma vez que a aplicação deste dispositivo está circunscrita às iniciativas privativas do Chefe do Poder Executivo Federal na órbita exclusiva dos territórios federais. Precedentes: ADI n. 2.724, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 2-4-04, ADI n. 2.304, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 15-12-2000 e ADI n. 2.599-MC, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 13-12-02. A reserva de iniciativa prevista no art. 165, II da Carta Magna, por referir-se a normas concernentes às diretrizes orçamentárias, não se aplica a normas que tratam de direito tributário, como são aquelas que concedem benefícios fiscais. Precedentes: ADI n. 724-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 27-4-01 e ADI n. 2.659, Rel. Min. Nelson Jobim, DJ de 6-2-04. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga improcedente." (ADI 2.464, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 11-4-07, DJ de 25-5-07).

No mesmo sentido os seguintes julgados: ADI 3.205, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-10-06, DJ de 17-11-06; ADI 2.392-MC, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 28-3-01, DJ de 1º-8-03; ADI 2.474, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 19-3-03, DJ de 25-4-03; ADI 2.638, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 15-2-06, DJ de 9-6-06. Outros ainda: ADI 2659/SC (DJU de 6.2.2004); ADI 2548/PR (DJU de 15.6.2007); ADI 3312/MT (DJU de 23.3.2007); ADI 3809/ES, rel. Min. Eros Grau, 14.6.2007.

Entretanto, em casos assim, em nosso sentir, é viável o reconhecimento da violação do princípio da separação de poderes, o que decorre da afronta aos art. 5º, caput, 47 II, e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

É ponto pacífico na doutrina bem como na jurisprudência que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

E não há como negar que iniciativas parlamentares que dispensam contribuintes do recolhimento de tributos interferem diretamente no âmbito da gestão administrativa. Isso, na prática, significa invadir a esfera da administração, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo.

A consequência dessa construção é a invalidade do ato normativo que invade a esfera da gestão executiva, ou do ato administrativo que invade a esfera da atuação legislativa. Nesse sentido a insuperável lição de Hely Lopes Meirelles, Direito municipal brasileiro, 15ª ed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p. 708 e 712.

Nesse C. Órgão Especial vem sendo reconhecida, reiteradamente, a inconstitucionalidade de leis de iniciativa parlamentar que, naturalmente sem o adequado planejamento inerente à gestão executiva, concedem isenções tributárias.

A título de exemplificação, consultem-se os seguintes precedentes: ADI 153.962-0/1-00, rel. Antônio Carlos Mathias Coltro, j. 19.03.2008; ADI 015.033-0/5-00, rel. Debatin Cardoso, j. 23.01.2008; ADI 149.269-0/4-00, rel. Boris Kauffmann, j. 20.02.2008; entre outras.

Assim, é possível o reconhecimento da inconstitucionalidade das leis impugnadas pela quebra do princípio da separação de poderes, nos termos do art. 5º, art. 47, II, e art. 144, todos da Constituição Paulista.

Mas não é só.

A imunidade tributária relativamente aos “templos de qualquer culto”, instituída por força do art. 163, VI, b da Constituição Paulista (reprodução do art. 150, VI, b da CR); bem como com relação ao “patrimônio, renda ou serviços” de entidades de assistência social sem fins lucrativos, instituída pelo art. 163, VI, c da Constituição Paulista (reprodução do art. 150, VI, c da CR), não é ilimitada.

O art. 163, § 4º da Constituição Bandeirante (reprodução do art. 150, § 4º da CR) prevê que tais imunidades “compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas”.

E a respeito da delimitação dessa imunidade tributária, instituída pela Constituição com relação aos “templos de qualquer culto”, já decidiu o C. STF que deve ser compreendida em consonância com a cláusula constitucional que a circunscreve ao patrimônio, renda e serviços relacionados às finalidades essenciais das entidades religiosas, bem como das entidades beneficentes (RE 578.562, rel. Min. Eros Grau, julgamento em 21-5-08, DJE de 12-9-08; RE 325.822, Rel. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 15-12-02, Plenário, DJ de 14-5-04; AI 690.712-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 23-6-09, 1ª Turma, DJE de 14-8-09; AI 651.138-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 26-6-07, 2ª Turma, DJ de 17-8-07).

Nesse contexto foi editada a súmula nº 724 do C. STF, com o seguinte teor:

“Ainda quando alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel pertencente a qualquer das entidades referidas pelo art. 150, VI, c, da Constituição, desde que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades essenciais de tais entidades.”

A hipótese aqui examinada, entretanto, é diversa.

Ao permitir, por força das leis impugnadas na ação direta, que imóveis locados pela entidade religiosa ou beneficente, sejam alcançados pela imunidade relativa ao IPTU, o legislador municipal estendeu a proteção constitucional não àquelas entidades, mas sim ao proprietário dos imóveis locados, visto que este, e não o locatário, é o sujeito passivo, mais especificamente o contribuinte do IPTU.

Essa, com a devida vênia, não nos parece que foi verdadeiramente a intenção do constituinte, e tampouco a finalidade da imunidade constitucional tributária.

Embora não trate especificamente da questão aqui examinada, Leandro Paulsen, invocando o pensamento de Ives Gandra da Silva Martins pondera quanto à imunidade prevista n art. 150, VI, c da CR que “o que o constituinte declarou é que, sem quaisquer restrições, as Igrejas de qualquer culto são imunes a todos os impostos. Não o prédio, mas a instituição (Direito Tributário, 3ª Ed., Porto Alegre, Livraria do Advogado editora, 2001, p. 218, g.n.).

Idêntico o ensinamento de Roque Antônio Carrazza, ao aduzir que a imunidade não alcança o “templo propriamente dito, isto é, o local destinado a cerimônias religiosas, mas, sim, a entidade mantenedora do templo, a Igreja (Curso de Direito Constitucional Tributário, 22ª Ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p. 716).

Reitere-se que o contribuinte do IPTU, como é assente, é o proprietário, o titular do domínio útil, ou o possuidor de imóvel urbano (art. 34 do Código Tributário Nacional). Não são oponíveis à Administração Tributária convenções particulares relativas ao pagamento de tributos (como as ordinariamente constantes de contratos de locação, que repassam ao locatário o encargo de recolhê-los), que não têm o condão de modificar definições legais relativas à identificação do sujeito passivo da obrigação fiscal (art. 123 do Código Tributário Nacional).

Anota Luciano Amaro que contribuinte pode ser identificado como “a pessoa que realiza o fato gerador da obrigação tributária principal (...) geralmente identificável à vista da simples descrição da materialidade do fato gerador” (Direito Tributário Brasileiro, 12ª Ed., São Paulo, Saraiva, 2006, p. 299).

No mesmo sentido Ricardo Lobo Torres, Curso de Direito Financeiro e Tributário, 13ª Ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2006, p. 256/260.

Assim, a legislação municipal glosada na presente ação direta, respeitado entendimento diverso, teve o condão de estender ao proprietário de imóveis (locador) nos quais funcionem templos de qualquer natureza ou entidades beneficentes, a imunidade relativa ao IPTU que se destina às próprias entidades imunes.

Tal diretriz legal contraria frontalmente a própria abrangência da imunidade constitucional tributária, estabelecida no art. 163, VI, b e c, e § 4º da Constituição Paulista (reprodução do art. 150, VI, b e c, e § 4º da CR).

Daí a inconstitucionalidade material das leis impugnadas.

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal nº 1747, de 6 de novembro de 2008, e da Lei Complementar nº 14, de 6 de novembro de 2008, ambas de Jandira.

São Paulo, 23 de setembro de 2009.

 

Maurício Augusto Gomes

Subprocurador-Geral de Justiça

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