Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 180.517-0/4-00

Requerente: Prefeito do Município de Vargem Grande do Sul

Objeto: Lei nº 2.897, de 17 de junho de 2009, do Município de Vargem Grande do Sul

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, ajuizada por Prefeito, tendo por objeto a Lei Municipal n.º 2.897/09, do Município de Vargem Grande do Sul, que “dispõe sobre a criação do Programa de Auxílio às Empresas e dá outras providências”. Ato normativo que deriva de substitutivo a projeto de lei cuja matéria reclama a iniciativa do Chefe do Executivo. Alegação acolhida de que o substitutivo desfigurou o projeto apresentado, gerando despesas não previstas no texto original. Usurpação das atribuições do Prefeito, com ofensa ao princípio da separação dos poderes (art. 5º da CE). Parecer pela procedência.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Vargem Grande do Sul, tendo por objeto a Lei Municipal n.º 2.897/09, do mesmo Município, que “dispõe sobre a criação do Programa de Auxílio às Empresas e dá outras providências”.

O promovente afirma que encaminhou à Câmara Municipal o projeto de lei nº 43/2009, para instituir o “Programa de Auxílio às Empresas”, e que, no curso do processo legislativo, foi aprovado um projeto substitutivo, assinado por Vereador, que descaracterizou o texto original, ampliando o rol de empresas beneficiárias, majorando o auxílio e alterando os prazos de concessão. Alega a violação dos artigos 5º e 144 da Constituição do Estado, pela quebra do princípio da separação dos poderes.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 161/162).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 168 e ss., em defesa da lei impugnada. Afirmou que o projeto original discriminava as empresas já instaladas no Município, daí porque o Poder Legislativo houve por bem aprovar o substitutivo para alcançá-las. Ressalvou que a regulação não cria despesa porque as benesses são decididas uma a uma pelo Alcaide, à vista do parecer da Comissão de Desenvolvimento Industrial, e efetivadas mediante a edição de outras leis.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 292/294).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Para o deslinde desta ação, convém recordar que o processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 675) e que o desrespeito a tais regras conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo, difuso ou concentrado, por parte do Poder Judiciário.

A iniciativa é o ato que deflagra o processo legislativo. Pode ser geral ou reservada (ou privativa). No primeiro caso, vereador, Mesa, comissão da Câmara, prefeito ou a população podem titularizar o projeto. No segundo, há um único titular.

Dito isso, constata-se que a lei em análise dispõe sobre a criação de programa de governo no âmbito Municipal, com a disponibilização de verba pública para a locação de imóveis de determinadas empresas e atribuição de funções a órgãos da Administração, sendo daquelas, portanto, cuja iniciativa cabe exclusivamente ao Prefeito (art. 24, § 2º e art. 47, inc. II, ambos c.c. o art. 144 da Constituição do Estado).

Embora o Alcaide tenha subscrito o projeto, ficou claro que a Câmara Municipal acabou aprovando o substitutivo, que descaracterizou aspectos relevantes daquele, aumentando, inclusive, as despesas.

Sabe-se que, uma vez apresentado o projeto pelo Chefe do Poder Executivo, está exaurida a sua atuação. Abre-se o caminho, em seguida, para fase constitutiva da lei, que se caracteriza pela discussão e votação públicas da matéria. Nessa fase se sobressai o poder de emendar.

O poder de emendar é reconhecido pela doutrina tradicional e está reservado aos parlamentares enquanto membros do Poder incumbido de estabelecer o direito novo. O Supremo Tribunal Federal o considera como prerrogativa dos parlamentares, como se intui do seguinte julgado:

“O exercício do poder de emenda, pelos membros do parlamento, qualifica-se como prerrogativa inerente à função legislativa do Estado - O poder de emendar - que não constitui derivação do poder de iniciar o processo de formação das leis - qualifica-se como prerrogativa deferida aos parlamentares, que se sujeitam, no entanto, quanto ao seu exercício, às restrições impostas, em "numerus clausus", pela Constituição Federal. - A Constituição Federal de 1988, prestigiando o exercício da função parlamentar, afastou muitas das restrições que incidiam, especificamente, no regime constitucional anterior, sobre o poder de emenda reconhecido aos membros do Legislativo. O legislador constituinte, ao assim proceder, certamente pretendeu repudiar a concepção regalista de Estado (RTJ 32/143 - RTJ 33/107 - RTJ 34/6 - RTJ 40/348), que suprimiria, caso prevalecesse, o poder de emenda dos membros do Legislativo. - Revela-se plenamente legítimo, desse modo, o exercício do poder de emenda pelos parlamentares, mesmo quando se tratar de projetos de lei sujeitos à reserva de iniciativa de outros órgãos e Poderes do Estado, incidindo, no entanto, sobre essa prerrogativa parlamentar - que é inerente à atividade legislativa -, as restrições decorrentes do próprio texto constitucional (CF, art. 63, I e II), bem assim aquela fundada na exigência de que as emendas de iniciativa parlamentar sempre guardem relação de pertinência com o objeto da proposição legislativa” (STF, Pleno, ADI nº 973-7/AP – medida cautelar. Rel. Min. Celso de Mello, DJ 19 dez. 2006, p. 34 –g.n.).

Mas o considera restrito, como se conclui do trecho acima destacado e do paradigmático julgado adiante transcrito:

Incorre em vício de inconstitucionalidade formal (CF, artigos 61, § 1º., II, "a" e "c" e 63, I) a norma jurídica decorrente de emenda parlamentar em projeto de lei de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo, de que resulte aumento de despesa. Parâmetro de observância cogente pelos Estados da Federação, à luz do princípio da simetria. Precedentes. 2. Ausência de prévia dotação orçamentária para o pagamento do beneficio instituído pela norma impugnada. Violação ao artigo 169 da Constituição Federal, com a redação que lhe foi conferida pela Emenda Constitucional 19/98. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente (ADI 2079/SC, STF - Pleno, rel. Maurício Corrêa, DJ 18.06.2004, p. 44; Ement. Vol. 2156-01, p. 73).

A limitação ao poder de emendar projetos de lei de iniciativa reservada do Poder Executivo existe no sentido de evitar: (a) aumento de despesa não prevista, inicialmente; ou então (b) a desfiguração da proposta inicial, seja pela inclusão de regra que com ela não guarde pertinência temática; seja ainda pela alteração extrema do texto originário, que rende ensejo a regulação praticamente e substancialmente distinta da proposta original.

No caso dos autos, como se vê, esses dois pecados foram cometidos.

Com efeito, do cotejo dos artigos 1º do projeto e do autógrafo substitutivo se constata que o Poder Legislativo ampliou o rol de empresas beneficiárias, incluindo no programa aquelas já instaladas no Município. Em que pesem os elevados propósitos dos Edis, tem-se aí a desvirtuação do projeto, que visava atrair as empresas de fora e não despender verba com aquelas existentes na Comuna.

Se não bastasse, nos artigos seguintes, foram alterados prazos, majorados os percentuais de aluguéis (com novo aumento de despesas) e modificados os requisitos para a concessão da benesse. A propósito disso, o Presidente da Câmara Municipal alegou em suas informações que o substitutivo não gera despesas porque as benesses são concedidas uma a uma, após manifestação de colegiado e edição normativa autônoma. Essas circunstâncias, entretanto, não contornam a proibição do art. 24, § 5º, 1, da Carta Paulista, porque, como é intuitivo, na medida em que as empresas atenderem aos requisitos legais, farão jus ao auxílio instituído.

Como se vê, o substitutivo alterou profundamente o projeto de lei e representa, inequivocamente, a usurpação do Poder Legislativo nas atribuições do Administrador, a par de aumentar as despesas inicialmente previstas, sem a indicação dos recursos disponíveis.

Reconhece-se, assim, o abuso do poder de emendar e a consequente violação do princípio da separação dos poderes de que trata o art. 5º da Constituição do Estado.

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei Municipal n.º 2.897/09, do mesmo Município, que “dispõe sobre a criação do Programa de Auxílio às Empresas e dá outras providências”.

 

São Paulo, 26 de novembro de 2009.

 

 

        Maurício Augusto Gomes

        Subprocurador-Geral de Justiça

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