Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 181.350.0/9

Requerente: Prefeito de Ubatuba

Objeto: Lei nº 3.203, de 06 de junho de 2009, do Município de Ubatuba

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade promovida por Prefeito, tendo por objeto a Lei nº              3.203, de 06 de junho de 2009, do Município de Ubatuba. Lei de iniciativa parlamentar, que concede incentivos fiscais para o pagamento de débitos municipais, em atraso. Diploma que viola o princípio da separação de poderes (art. 5º, 37, 47 II e XIV, e 144 da Constituição Paulista). Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Ubatuba, tendo por objeto a Lei Municipal n.º 3.203, de 06 de julho de 2009, do mesmo Município que “dispõe sobre a concessão de incentivos fiscais para o pagamento de débitos municipais, em atraso, e dá outras providências”.

 Sustenta  o autor que a lei impugnada é inconstitucional, por violar princípio da separação dos poderes e o art. 14, da Lei de Responsabilidade Fiscal, na media que a iniciativa de leis que impliquem em concessão de benefícios de natureza tributária é exclusiva do Chefe do Poder Executivo.

 O pedido de medida liminar foi deferido, fls. 15/16.

 O Presidente da Câmara Municipal de Ubatuba não prestou informações.

Citado para os fins do § 2.º do art. 90 da Constituição Paulista, o Procurador Geral do Estado defendeu a exegese que condiciona a sua intervenção nos processos de fiscalização abstrata à existência de interesse estadual na preservação do texto normativo impugnado, ausente neste caso (fls. 27/29).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

1)   Do ato normativo impugnado.

A Lei Complementar n. 3.203, de 06 de julho de 2009, tem o seguinte teor:

“Art.1º. O contribuinte que estiver em atraso com o pagamento de tributo municipal, inclusive de Imposto Sobre Serviço – ISS da mão de obra na construção civil e de profissionais liberais, inscrito em DIVIDA ATIVA, ajuizado ou não; todos os que estiverem em dia com o exercício corrente, poderão quitar seu débito beneficiando-se do incentivo fiscal instituído por esta Lei.

Art. 2º. O débito tributário poderá ser pago em até 36 (trinta e seis) Parcelas mensais, apenas com multa legal e sem incidência de juros.

§1º. O contribuinte que requerer o parcelamento de débito tributário imobiliário deverá comprovar a condição de proprietário do imóvel.

§2º. Caso o requerente não seja o proprietário do imóvel deverá apresentar  procuração de quem de direito para esse fim.

§3º. O parcelamento a que se refere este artigo será reajustado anualmente pelo (IGPM-FGV), ou outro índice  de correção que o venha suceder.

§4º. O valor das parcelas não poderá ser inferior a R$ 100,00 (cem reais).

Art. 3º . O contribuinte que efetuar o pagamento integral de seu débito à vista, fica dispensado da incidência dos juros de mora e de multa.

Art. 4º . O incentivo fiscal de que trata esta Lei se aplica, também, ao débito inscrito em DIVIDA ATIVA já atualizada.

Parágrafo único. No caso deste artigo, o incentivo fiscal fica condicionado ao pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios, arbitrados nas execuções fiscais.

 

Art. 5º . Os contribuintes que firmaram acordo de parcelamento de débito, anteriormente, e que estiverem com 50% do acordo pago, poderão requerer novo parcelamento instituído por esta Lei.

§1º. O pedido deverá ser protocolizado na Gerência de Expediente e Protocolo, mediante recolhimento da taxa, acompanhado dos comprovantes de pagamento de eventuais parcelas, dos honorários advocatícios e despesas processuais.

§2º . Os pedidos devidamente protocolizados serão analisados no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da data do protocolo.

§3º. Os contribuintes que deixarem de pago acordos anteriores, poderão requerer novo parcelamento, com incidência de juros,multas e correção em até  36 (trinta e seis) parcelas.

Art. 6º . O não cumprimento, do parcelamento concedido, acarretará o cancelamento do incentivo fiscal instituído por esta Lei, ficando o contribuinte inadimplente  obrigado a pagar à Fazenda Municipal, o saldo restante do débito acrescido das obrigações acessórias, anistiadas por esta Lei.

Art. 7º. O incentivo fiscal instituído por esta Lei  terá validade até 60 (sessenta) dias, a contar da data de sua publicação.

Art. 8º. As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão por conta de verbas próprias, consignadas no orçamento vigente, suplementadas se necessário.

 

 

 

Art. 9º. Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação, revogando as disposições em contrário.”

2)    Do Direito.

         A lei em exame, a propósito  de beneficiar os munícipes, impôs ao Poder Executivo Municipal,  a concessão de incentivos fiscais para o pagamento de débitos municipais em atraso.

 Nesse contexto, embora a lei não trate de matéria atinente à iniciativa reservada do Chefe do Executivo, nos termos do art.24 §2º da Constituição Bandeirante, ela se traduz em quebra da regra da separação de poderes, contida na Constituição do Estado, nos art.5º, e 47 II e XIV, aplicáveis aos Municípios por força do art.144 da referida Carta.

Em primeiro lugar, com a devida vênia, não nos parece correto afirmar que a hipótese examinada nestes autos seja de iniciativa reservada ao Chefe do Poder Executivo.

As matérias cuja iniciativa legislativa cabe apenas ao Executivo são expressamente previstas no art.24 da Constituição Paulista, entre as quais não se encontra aquela tratada no ato normativo aqui examinado.

Ademais, já pacificou o E. STF o entendimento de que as hipóteses de iniciativa reservada, referindo-se a direito estrito, devem ser interpretadas restritivamente (Nesse sentido, v.g.: MS 22.690, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 17-4-97, DJ de 7-12-06).

Entretanto, no caso ora analisado houve violação do princípio da separação de poderes.

É ponto pacífico na doutrina bem como na jurisprudência que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O legislador municipal, na hipótese analisada, acolheu iniciativa parlamentar, impondo ao Poder Executivo medidas concretas relacionadas ao gerenciamento do serviço público, em especial, a concessão de incentivos fiscais para o pagamento de débitos municipais em atraso.

Em que pese a relevante intenção do parlamentar que apresentou originariamente referida propositura, o fato é que ela interfere no âmbito da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional.

Note-se que: (a)  a concessão de incentivos fiscais para o pagamento de débitos municipais em atraso é providência que deve decorrer de deliberação da administração pública, e não de imposição legal; (b) quando o legislador, a pretexto de legislar, assume o papel do administrador, está a extrapolar no exercício de suas competências constitucionais.

Referido diploma, na prática, criou obrigação para a administração local, invadindo a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando que “a Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que "dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

Note-se também que, como demonstrou o autor e afirmou o Sr. des. Palma Bisson, i. relator da presente ação direta, na ADI 94.356-0/7 (j. 18.06.2003, rel. des. Ruy Camilo) foi declarada a inconstitucionalidade de lei do município de Guarulhos em situação análoga à destes autos, valendo transcrever a ementa do referido julgado:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal 5777 de 8 de março de 2002 que, nos dispositivos questionados (art.2º e incisos e art.3º, § único), impõem ao Executivo o dever de fixar dias e horários para a prestação de serviços públicos de coleta de lixo domiciliar e varrição de vias públicas e ainda o de divulgar tais informações no carnê do IPTU e jornais locais – matéria que diz respeito ao gerenciamento da prestação de serviços de iniciativa exclusiva do Executivo. Ação procedente.”

Posto isso, aguardo o julgamento de procedência da presente ação direta a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 3.203, de 06 de julho de 2009, do Município de Ubatuba, que “ dispõe sobre a concessão de incentivos fiscais para o pagamento de incentivos fiscais para o pagamento de débitos municipais, em atraso, e dá outras providências”.

 

                            São Paulo, 07 de dezembro de 2009.

 

 

Maurício Augusto Gomes

Subprocurador-Geral de Justiça

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