Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 183.608-0/1-00

Requerente: Prefeito Municipal de Itatiba

Objeto: Lei nº 3.570/02, do Município de Itatiba

 

Ementa: 1) Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal. Iniciativa parlamentar. Criação de obrigação ao Executivo.  2) Violação da separação de poderes. Ato normativo que invade a esfera da gestão administrativa (art.5º, 47 II e XIV da Constituição Paulista).  3) Vício de iniciativa por se tratar de matéria exclusiva do Executivo.   4)  Inconstitucionalidade reconhecida.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito Municipal de Itatiba, tendo por objeto a Lei nº 3.570/02, que teve a vigência restabelecida através da Lei n. 4.187/09.

Sustenta o autor que o projeto que antecedeu ambas as Leis iniciou-se na Câmara Municipal.   A Lei n. 3.570/02, que "dispõe sobre a expedição de 'alvará de regularização' e 'habite-se' de prédios irregulares, preenchidas as condições que especifica, e dá outras providências" foi "promulgada pelo anterior prefeito", enquanto que a Lei n. 4.187/09, que revigorou a primeira, teve "sanção tácita".

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 35 e vº).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 61/63).

A Câmara Municipal manifestou-se às fls.44/45.

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Em que pese a boa intenção estampada na propositura legislativa que culminou se transformando na lei impugnada nesta ação, o ato normativo é verticalmente incompatível com nossa sistemática constitucional.

Este é o teor do ato normativo impugnado, no que interessa:

“Art.1º - Fica a Prefeitura Municipal de Itatiba autorizada a expedir "Alvará de Regularização" e "Habite-se" em favor de edifícios que hajam sido construídos, reformados e ampliados irregularmente, em caráter não provisório, e que sejam localizados em terreno com situação regular perante a Prefeitura, desde que preencham as condições mínimas de uso, habitabilidade, higiene, segurança e trabalho, a juízo da administração pública, ficando isentos do pagamento de multa.

(...)

Art. 2º  - Para obter o alvará a que se refere o artigo anterior, deverá o interessado requerer à Prefeitura, dentro de 90 (noventa) dias, a contar da publicação desta Lei, o documento em apreço, juntando prova de estar seu edifício nas condições do artigo primeiro e, ainda, memorial descrito em cinco vias, com descrição dos materiais empregados, planta completa (padrão Prefeitura e uma vi do projeto arquitetônico para análise e verificação), declaração própria e de responsável técnico pelo levantamento afirmando as condições mínimas de uso, habitabilidade, higiene, segurança e trabalho, e demais elementos exigidos normalmente pela Prefeitura para projetos de construção."

A vergastada lei foi reconduzida ao mundo jurídico, uma vez perdida eficácia após o transcurso de 90 (noventa) dias contados da publicação, pela edição da Lei n. 4.187, de 28 de julho de 2009, que assim dispôs:

         "Art. 1º - Para todos os efeitos de direito, fica revigorada a Lei Municipal nº 3.570, de 15 de outubro de 2002, alterada pelas Leis nº 3.608, de 13 de março de 2003; nº 3.716, de 24 de maio de 2004; nº3.861, de 09 de janeiro de 2006; n° 3.909, de 11 de agosto de 2006; nº 3.987, de 23 de julho de 2007, e nº 4.086, de 28 de julho de 2008.

         Art. 2º - O prazo previsto no artigo 2º da Lei nº 3.570 passa a viger por 180 (cento e oitenta) dias, prorrogáveis por mais cento e oitenta, contados da promulgação da presente lei."

        Portanto, o que se operou, com o revigoramento da lei impugnada foi o prazo para que o munícipe pudesse pleitear a regularização de sua obra, que até então se apresentasse irregular perante a administração pública.

        A lei, de iniciativa parlamentar, cria, portanto, obrigações e estabelece condutas a serem cumpridas pela Administração Pública, quais sejam a de expedir alvará e habite-se ao munícipe que cumprir as exigências legais para obter a regularização de sua obra.

Não há dúvida de que, como tal, a iniciativa parlamentar, ainda que revestida de boas intenções, invadiu a esfera da gestão administrativa, e como tal, é inconstitucional, por violar o disposto no art.5º e no art.47 II e XIV da Constituição Paulista, aplicável por simetria ao município.

É ponto pacífico na doutrina, bem como na jurisprudência, que ao Poder Executivo cabe primordialmente a função de administrar, que se revela em atos de planejamento, organização, direção e execução de atividades inerentes ao Poder Público. De outra banda, ao Poder Legislativo, de forma primacial, cabe a função de editar leis, ou seja, atos normativos revestidos de generalidade e abstração.

O legislador municipal, na hipótese analisada, criou órgão e obrigações de cunho administrativo para a Administração Pública local.

Abstraindo quanto aos motivos que podem ter levado a tal solução legislativa, ela se apresenta como manifestamente inconstitucional, por interferir na realização, em certa medida, da gestão administrativa do Município.

Referidos diplomas (tanto a lei restaurada, quanto a restauradora, ambas de iniciativa do Poder Legislativo), na prática, invadiram a esfera da gestão administrativa, que cabe ao Poder Executivo, e envolve o planejamento, a direção, a organização e a execução de atos de governo. Isso equivale à prática de ato de administração, de sorte a malferir a separação dos poderes.

Cumpre recordar aqui o ensinamento de Hely Lopes Meirelles, anotando quea Prefeitura não pode legislar, como a Câmara não pode administrar. Cada um dos órgãos tem missão própria e privativa: a Câmara estabelece regra para a Administração; a Prefeitura a executa, convertendo o mandamento legal, genérico e abstrato, em atos administrativos, individuais e concretos. O Legislativo edita normas; o Executivo pratica atos segundo as normas. Nesta sinergia de funções é que residem a harmonia e independência dos Poderes, princípio constitucional (art.2º) extensivo ao governo local. Qualquer atividade, da Prefeitura ou Câmara, realizada com usurpação de funções é nula e inoperante”. Sintetiza, ademais, que “todo ato do Prefeito que infringir prerrogativa da Câmara – como também toda deliberação da Câmara que invadir ou retirar atribuição da Prefeitura ou do Prefeito – é nulo, por ofensivo ao princípio da separação de funções dos órgãos do governo local (CF, art.2º c/c o art.31), podendo ser invalidado pelo Poder Judiciário” (Direito municipal brasileiro, 15ªed., atualizada por Márcio Schneider Reis e Edgard Neves da Silva, São Paulo, Malheiros, 2006, p.708 e 712).

Deste modo, quando a pretexto de legislar, o Poder Legislativo administra, editando leis que equivalem na prática a verdadeiros atos de administração, viola a harmonia e independência que deve existir entre os poderes estatais.

Esse E. Tribunal de Justiça tem declarado a inconstitucionalidade de leis municipais de iniciativa parlamentar que interferem na gestão administrativa, com amparo na violação da regra da separação de poderes, conforme ementas de julgados recentes, transcritas a seguir:

“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei 9882, de 20 de abril de 2007, do Município de São José do Rio Preto. Obrigatoriedade de ascensoristas nos elevadores dos edifícios comerciais. Violação ao princípio constitucional da independência entre os poderes. Inconstitucionalidade declarada. Pedido julgado procedente.” (TJSP, ADI 149.044-0/8-00, rel. des. Armando Toledo, j.20.02.2008, v.u.).

 

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei Municipal de Itapetininga n° 4.979, de 28 de setembro de 2.005, do Município de Itapetininga, que dispõe sobre a obrigatoriedade de confecção distribuição de material explicativo dos efeitos das radiações emitidas pelos aparelhos celulares e sobre sua correta utilização, e dá outras providências. Decorrente de projeto de iniciativa parlamentar, promulgada pela Câmara Municipal depois de rejeitado o veto do Prefeito - Realmente, há que se reconhecer que a Câmara Municipal exorbitou no exercício da função legislativa, interferindo em atividade concreta do Poder Executivo - Afronta aos artigos 5°, 25, e 144 e da Constituição Estadual. JULGARAM PROCEDENTE A AÇÃO.” (TJSP, ADI 134.410-0/4, rel. des. Viana Santos, j. 05.03.2008).

 

         Ademais, a própria sistemática constitucional, em prestígio ao sistema de “freios e contrapesos”, estabelece exceções à separação de poderes. Tais ressalvas acabam por integrar-se, frise-se, às opções fundamentais do constituinte, conferindo o exato perfil institucional do Estado Brasileiro, no particular quanto à intensidade da adoção da regra da separação.

Assim, se qualquer emenda constitucional tendente a abolir o princípio será inconstitucional, por ofensa à cláusula pétrea contida no art.60 §4º III da CR/88, também será verticalmente incompatível com o texto constitucional ato normativo de menor positividade que venha a conflitar com referido núcleo constitucional imodificável.

         Desta forma, a norma impugnada na presente ação nitidamente violou o necessário equilíbrio e harmonia que devem existir entre os Poderes Legislativo e Executivo.

            Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 3.570, de 15 de outubro de 2002.

São Paulo, 2 de dezembro de 2009.

 

 

        Maurício Augusto Gomes

        Subprocurador-Geral de Justiça

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