Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 183.827-0/0

Requerente: Prefeito do Município de Andradina

Objeto: Lei nº 2.499, de 1 de setembro de 2009, do Município de Andradina

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, promovida por Prefeito, da Lei nº 2.499, de 1 de setembro de 2009, do Município de Andradina, que “dispõe sobre a proibição de contratação de servidores públicos, estagiários e serviços terceirizados, pela municipalidade, e que percebam menos de um salário mínimo vigente”. Ato normativo de autoria de Vereador. A matéria – remuneração de servidores públicos – é daquelas cuja iniciativa é privativa do Prefeito, diante do que dispõe o artigo 24, § 2º, 1 e 4, da Constituição do Estado, aplicável aos municípios em obediência ao princípio da simetria (art. 144). Iniciativa, ademais, que cria despesa sem indicação dos recursos disponíveis para fazer frente ao novo encargo. Afronta aos artigos 5.º; 24, § 2º, incisos 1 e 4; 47, incisos II, IV, XI e XVII, e 144, da Constituição do Estado de São Paulo. Inconstitucionalidade reconhecida.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Andradina, tendo por objeto a Lei nº 2.499, de 1 de setembro de 2009, do mesmo Município, que “dispõe sobre a proibição de contratação de servidores públicos, estagiários e serviços terceirizados, pela municipalidade, e que percebam menos de um salário mínimo vigente”.

O promovente esclarece que o ato normativo em análise, que trata da remuneração de servidores públicos, estagiários e terceirizados, estabelecendo o piso, deriva de projeto de Vereador. No curso do processo legislativo, o veto aposto pelo Poder Executivo foi derrubado e a lei acabou sendo promulgada, sendo ela inconstitucional, a seu ver, por vício de iniciativa.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 94/97).

O Presidente da Câmara Municipal se manifestou a fls. 107 e ss., em defesa da lei impugnada.

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 143/145).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Pela lei impugnada, “fica terminantemente proibido a contratação de servidores públicos, estagiários e serviços terceirizados pela municipalidade e que percebam menos de um salário mínimo vigente no Estado de São Paulo” (art. 1º).

Cuida-se, como se vê, de lei sobre a remuneração de servidores públicos (em sentido lato), cujo projeto foi de iniciativa de Vereador, com inequívoca afronta aos artigos 5.º; 24, § 2º, incisos 1 e 4; 47, incisos II, IV, XI e XVII, e 144, da Constituição do Estado de São Paulo, a seguir transcritos:

Art. 5º - São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Art. 24 - A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembléia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Procurador-Geral de Justiça e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição (...)

§ 2º - Compete, exclusivamente, ao Governador do Estado a iniciativa das leis que disponham sobre:

1 - criação e extinção de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica, bem como a fixação da respectiva remuneração;

(...)

4 - servidores públicos do Estado, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria de civis, reforma e transferência de militares para a inatividade;

(...)

Art. 25 - Nenhum projeto de lei que implique a criação ou o aumento de despesa pública será sancionado sem que dele conste a indicação dos recursos disponíveis, próprios para atender aos novos encargos.

Art. 47 - Compete privativamente ao Governador, além de outras atribuições previstas nesta Constituição:

(...)

II - exercer, com o auxílio dos Secretários de Estado, a direção superior da administração estadual;

(...)

IV - vetar projetos de lei, total ou parcialmente;

(...)

XI - iniciar o processo legislativo, na forma e nos casos previstos nesta Constituição;

(...)

XVII - enviar à Assembléia Legislativa projetos de lei relativos ao plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual, dívida pública e operações de crédito;

Art. 144 - Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por Lei Orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

Com efeito, a disciplina normativa pertinente ao regime jurídico dos servidores públicos, incluindo a concessão de benefícios, é matéria que, em razão de sua essência, insere-se na esfera de exclusiva iniciativa do Chefe do Poder Executivo.

Esse entendimento tem o respaldo de maciça jurisprudência:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 6.065, DE 30 DE DEZEMBRO DE 1999, DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, QUE DÁ NOVA REDAÇÃO À LEI 4.861, DE 31 DE DEZEMBRO DE 1993. ART. 4º E TABELA X QUE ALTERAM OS VALORES DOS VENCIMENTOS DE CARGOS DO QUADRO PERMANENTE DO PESSOAL DA POLÍCIA CIVIL. INADMISSIBILIDADE. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL RECONHECIDA. OFENSA AO ART. 61, § 1º, II, A e C, da CF. OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA SIMETRIA. ADI JULGADA PROCEDENTE. I - É da iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo lei de criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração, bem como que disponha sobre regime jurídico e provimento de cargos dos servidores públicos. II - Afronta, na espécie, ao disposto no art. 61, § 1º, II, a e c, da Constituição de 1988, o qual se aplica aos Estados-membros, em razão do princípio simetria. III - Ação julgada procedente” (STF, ADI 2.192-ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 04-06-2008, v.u.).

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR N. 792, DO ESTADO DE SÃO PAULO. ATO NORMATIVO QUE ALTERA PRECEITO DO ESTATUTO DOS SERVIDORES PÚBLICOS CIVIS ESTADUAIS. OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO PROCESSO LEGISLATIVO ESTADUAL. PROJETO DE LEI VETADO PELO GOVERNADOR. DERRUBADA DE VETO. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. AFRONTA AO DISPOSTO NO ARTIGO 61, § 1º, II, C, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A Constituição do Brasil, ao conferir aos Estados-membros a capacidade de auto-organização e de autogoverno [artigo 25, caput], impõe a observância obrigatória de vários princípios, entre os quais o pertinente ao processo legislativo, de modo que o legislador estadual não pode validamente dispor sobre as matérias reservadas à iniciativa privativa do Chefe do Executivo. Precedentes. 2. O ato impugnado versa sobre matéria concernente a servidores públicos estaduais, modifica o Estatuto dos Servidores e fixa prazo máximo para a concessão de adicional por tempo de serviço. 3. A proposição legislativa converteu-se em lei não obstante o veto aposto pelo Governador. O acréscimo legislativo consubstancia alteração no regime jurídico dos servidores estaduais. 4. Vício formal insanável, eis que configurada manifesta usurpação da competência exclusiva do Chefe do Poder Executivo [artigo 61, § 1º, inciso II, alínea ‘c’, da Constituição do Brasil]. Precedentes. 5. Ação direta julgada procedente para declarar inconstitucional a Lei Complementar n. 792, do Estado de São Paulo” (STF, ADI 3.167-SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 18-06-2007, v.u., DJ 06-09-2007, p. 36).

Dessa orientação não destoa a doutrina:

As referidas matérias cuja discussão legislativa depende da iniciativa privativa do Presidente da República (CF, art. 61, § 1º) são de observância obrigatória pelos Estados-membros que, ao disciplinar o processo legislativo no âmbito das respectivas Constituições estaduais, não poderão afastar-se da disciplina constitucional federal.

Assim, por exemplo, a iniciativa reservada das leis que versem o regime jurídico dos servidores públicos revela-se, enquanto prerrogativa conferida pela Carta Política ao Chefe do Poder Executivo, projeção específica do princípio da separação dos poderes, incidindo em inconstitucionalidade formal a norma inscrita em Constituição do Estado que, subtraindo a disciplina da matéria ao domínio normativo da lei, dispõe sobre provimento de cargos que integram a estrutura jurídico-administrativa do Poder Executivo local (Alexandre de Moraes. Direito Constitucional. 23ª. ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 646).

Esse panorama conduz à ofensa ao princípio basilar da separação de poderes, pois, no dizer desse Sodalício:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (Adin n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

No caso dos autos, entretanto, existe outro fundamento, igualmente relevante, que, por si só, demandaria o reconhecimento da inconstitucionalidade.

A regra do art. 25 da Constituição do Estado, incidente por força do art. 144 da Carta Magna Bandeirante, é fortemente influenciada pela noção de responsabilidade fiscal. Exige ela que projeto de lei que implique criação ou aumento de despesa pública contenha a previsão dos recursos disponíveis para o atendimento dos novos encargos.

Na hipótese em análise é intuitivo que o benefício criado, em especial porque representa aumento do quantum recebido pelos estagiários (em número de 206), gera despesas para a Prefeitura. E a lei não contém nenhum elemento indicador de sua provisão, do que decorre sua incompatibilidade com o texto constitucional.

Em suma, divisa-se como solução deste processo a declaração de inconstitucionalidade, pois “se a Câmara, desatendendo à privatividade do Executivo para esses projetos, votar e aprovar leis sobre tais matérias, caberá ao prefeito vetá-las, por inconstitucionais. Sancionadas e promulgadas que sejam, nem por isso se nos afigura que convalesçam do vício inicial, porque o Executivo não pode renunciar prerrogativas institucionais, inerentes às suas funções, como não pode delegá-las ou aquiescer que o Legislativo as exerça” (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008,  p. 748).

Diante do exposto, nosso parecer é no sentido da integral procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 2.499, de 1 de setembro de 2009, do mesmo Município, que “dispõe sobre a proibição de contratação de servidores públicos, estagiários e serviços terceirizados, pela municipalidade, e que percebam menos de um salário mínimo vigente.

 

São Paulo, 30 de novembro de 2009.

 

 

        Maurício Augusto Gomes

        Subprocurador-Geral de Justiça

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