Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos n. 990.10.006392-8

Autor: Prefeito Municipal de Serrana

Objeto de impugnação: Art. 3º da Lei Municipal n. 1.366, de 11 de dezembro de 2009, decorrente da Emenda Modificativa Autógrafo n. 135/09

 

 

 

 

Ementa:  1) Art. 3º da Lei Municipal n. 1.366/09, decorrente da Emenda Modificativa n. 135/09, do município de Serrana, de autoria parlamentar, que dispõe sobre orçamento anual;   2) Alteração do projeto de lei relativo ao orçamento anual fora dos parâmetros permitidos constitucionalmente; 3) Emenda que gera despesas e não indica os recursos necessários;  4) Violação ao art. 175, § 1º, “2”, “a”, da Constituição Estadual;  5) Parecer pela procedência.

 

 

 

 

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Colendo Órgão Especial

 

 

O Prefeito Municipal de Serrana formulou a presente ação direta objetivando a declaração de inconstitucionalidade parcial decorrente da Emenda Modificativa n. 135/2009 à Lei Municipal n. 1.366/09.

A Lei Municipal n. 1.366/09, de iniciativa do Chefe do Poder Executivo, estima e fixa a despesa do Município de Serrana para o exercício de 2010.

A proposta de emenda modificativa consistiu em “aumentar orçamento do Legislativo e diminuir o orçamento do Executivo” (fls. 06).

A inicial da presente ação direta argumentou, em síntese, que:

 - Ao emendar o projeto de lei orçamentária, introduzindo alíneas de modo a aumentar orçamento do Legislativo e diminuir o orçamento do Executivo, o legislador municipal violou o princípio de independência e separação de Poderes, previsto no art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, repetitivo do art. 2º da Constituição Federal, acabando por criar indiretamente novos encargos ao erário público, já que a LOA foi planejada de modo a prever atuações e programas para o gabinete do prefeito e secretaria - dotação anulada para criar e suplementar a atividade legislativa, de modo que não indicou os recursos orçamentários suficientes para fazer frente às novas despesas, em afronta ao art. 25 da Constituição do Estado de São Paulo, vez que somente suprimiu atividades do executivo;

- As alíneas introduzidas no art. 3º da LOA ao criar despesas novas para a Câmara Municipal com previsão extra de construção de imóvel e aquisição de equipamentos, anulando parcialmente dotações próprias originárias e de competência exclusiva de criação do executivo, modificando o orçamento originário em R$ 1.000.000,00 afrontou, de forma indubitável, não só a Constituição do Estado de São Paulo (art. 5º e 144 e 47, XVII) como também a própria Constituição Federal;

- Não pode, desta forma, o legislador municipal emendar o orçamento de modo a que possibilite a ingerência de Poder (Legislativo) sobre outro (Executivo), abalando as funções de organizar, de superintender e dirigir os serviços públicos, cuja iniciativa é exclusiva do Prefeito Municipal;

Como parâmetro para o controle de constitucionalidade, a inicial indicou os arts. 5º; 25; 47, XVII; e 144 da Constituição Estadual.

As inserções de despesas no art. 3º da lei municipal nº 1.366/09 tiveram a eficácia suspensa por força da decisão de fls. 107.

Às fls. 117/121 estão as informações da Câmara Municipal.

Devidamente citado, o Procurador-Geral do Estado manifestou-se a fls. 181/183.

É o breve relato.

A presente ação direta é procedente, pois a Emenda Modificativa impugnada, de fato, extrapolou os limites estabelecidos pela Constituição do Estado de São Paulo, resultando na inconstitucionalidade parcial do art. 3º da Lei Municipal n. 1.366/09, decorrente da Emenda Modificativa n. 135/09. Vejamos.

Postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual, e que assim dispõe:

Artigo 5º. São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na idéia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício dessas atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois, observa a doutrina que “o princípio da separação dos poderes (ou divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto, entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que, teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).

Como conseqüência do princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas da função administrativa, como, por exemplo, dispor sobre a sua organização e seu funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de poderes “consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

Também por decorrência do citado princípio da separação de poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a doutrina: “É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers).

(...)

A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

 Assim, se em princípio a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas matérias por tangenciarem assuntos de natureza eminentemente administrativa e, concomitantemente, direitos de terceiros ou o próprio exercício dos poderes estatais, são reservadas à iniciativa legislativa do Poder Executivo.

Esse desenho normativo de status constitucional – aplicável aos Municípios por obra do art. 144 da Constituição Estadual - permite assentar as seguintes conclusões: a) a iniciativa legislativa não é ampla nem livre, só podendo ser exercida por sujeito a quem a Constituição entregou uma determinada competência; b) ao Chefe do Poder Executivo a Constituição prescreve iniciativa legislativa reservada em matérias inerentes à Administração Pública; c) há matérias administrativas que, todavia, escapam à dimensão do princípio da legalidade consistente na reserva de lei em virtude do estabelecimento de reserva de norma do Poder Executivo. A propósito, frisa Hely Lopes Meirelles a linha divisória da iniciativa legislativa:

“Leis de iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que a lei orgânica municipal não reserva, expressa e privativamente à iniciativa do prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § 1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência municipal” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).

Perfilhando essa orientação centrada, como dito, no princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual determina em matéria orçamentária – igualmente aplicável no âmbito municipal (art. 144, Constituição Estadual) – que:

Art. 174. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão, com observância dos preceitos correspondentes da Constituição Federal:

I - o plano plurianual;

II - as diretrizes orçamentárias;

III - os orçamentos anuais.

§ 1º. A lei que instituir o plano plurianual estabelecerá as diretrizes, objetivos e metas da administração pública estadual para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada.

§ 2º. A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública estadual, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subseqüente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de momento.

(...)

§ 5º. A matéria do projeto das leis a que se refere o ‘caput’ deste artigo será organizada e compatibilizada em todos os seus aspectos setoriais e regionais pelo órgão central de planejamento do Estado.

(...)

§ 9º. Cabe à lei complementar, com observância da legislação federal:

1 - dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual;

2 - estabelecer normas de gestão financeira e patrimonial da administração direta e indireta, bem como condições para a instituição e funcionamento de fundos.

Art. 175. Os projetos de lei relativos ao plano plurianual, às diretrizes orçamentárias, ao orçamento anual e aos créditos adicionais, bem como suas emendas, serão apreciados pela Assembléia Legislativa.

§ 1º. As emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem serão admitidas desde que:

1 - sejam compatíveis com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias;

2 - indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa, excluídas as que incidam sobre:

a) dotações para pessoal e seus encargos;

b) serviço da dívida;

c) transferências tributárias constitucionais para Municípios;

3 - sejam relacionadas:

a) com correção de erros ou omissões;

b) com os dispositivos do texto do projeto de lei.

§ 2º. As emendas ao projeto de lei de diretrizes orçamentárias não poderão ser aprovadas quando incompatíveis com o plano plurianual.

§ 3º. O Governador poderá enviar mensagem ao Legislativo para propor modificações nos projetos a que se refere este artigo, enquanto não iniciada, na Comissão competente, a votação da parte cuja alteração é proposta.

§ 4º. Aplicam-se aos projetos mencionados neste artigo, no que não contrariar o disposto nesta seção, as demais normas relativas ao processo legislativo.

Portanto, irradia-se do princípio da separação de poderes a própria técnica jurídica de freios e contrapesos com a previsão de iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo em matéria administrativa e orçamentária. É o que consta, no plano federal, dos arts. 61, § 1º, II, e, e 165, da Constituição Federal, reproduzidos pelos arts. 24, § 2º, 2, e 174, da Constituição do Estado de São Paulo.

No aspecto orçamentário, não por coincidência o art. 174 da Constituição Bandeirante reproduz o art. 165 da Constituição Brasileira, e Hely Lopes Meirelles complementa sua opinião asseverando a privatividade da iniciativa legislativa na matéria: “A iniciativa e elaboração do projeto de lei orçamentária anual cabem privativamente ao Executivo, que deverá enviá-lo, no prazo legal, ao Legislativo, com todos os requisitos indicados na Constituição da República” (ob. cit., pp. 485-486).

Neste sentido, reverbera a jurisprudência:

“Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Inciso V, do § 3º, do art. 120, da Constituição do Estado de Santa Catarina, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 14. Alegação de afronta aos arts. 2º, 61, § 1º, II, alínea b; 165, § 2º; 166, § 3º, I e § 4º; e 167, IV, da Constituição Federal. 3. Competência exclusiva do Poder Executivo iniciar o processo legislativo das matérias pertinentes ao Plano Plurianual, às Diretrizes Orçamentárias e aos Orçamentos Anuais. Precedentes: ADIN 103 e ADIN 550. 4. Relevantes os fundamentos da inicial e conveniente a suspensão da vigência da norma impugnada. 5. Medida liminar deferida, para suspender, até decisão final da ação direta, a vigência do inciso V do § 3º do art. 120, da Constituição do Estado de Santa Catarina, na redação dada pela Emenda Constitucional nº 14, de 10.11.1997” (STF, ADI-MC 1.759-SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Néri da Silveira, 12-03-1998, v.u. DJ 06-04-2001, p. 66).

Ora, no quadro constitucional vigente não há dúvida que ao Chefe do Poder Executivo é conferida a iniciativa legislativa reservada em matéria orçamentária, abrangendo inclusive a disciplina do processo orçamentário em todas as suas fases.

Além disso, no caso em tela, também o poder de emendar o projeto de lei do executivo é condicionado por parâmetros constitucionais, de tal forma que, além de serem compatíveis com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias, há necessidade de que indiquem os recursos necessários. Esses, por sua vez, só são admitidos se provenientes de anulação de despesa. Não é só. Mesmo que sejam provenientes de anulação de despesa, não podem incidir sobre dotações para pessoal e seus encargos.

Assim, considerando que a Emenda impugnada provocou modificação referente ao “Processo Legislativo”, com aumento de despesa e, além disso, atingiu dotações do Executivo e não indicou os recursos necessários, aguardo o julgamento de procedência da presente ação direta a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade das alíneas que inseriram no orçamento do Legislativo de Serrana do ano de 2010 o valor de R$2.247.000,00 e as dotações nos valores de R$900.000,00 ao orçamento do legislativo, para construção do prédio da Câmara Municipal, e de R$100.000,00 para a aquisição de equipamentos, constantes no art.3º da Lei nº 1.366/09, do Município de Serrana.

São Paulo, 9 de junho de 2010.

 

 

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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