Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.016908-4

Requerente: Mesa Diretora da Câmara Municipal de Itapira

Requerido: Prefeito do Município de Itapira

Objeto: Lei nº 4.524, de 31 de dezembro de 2009, que “estima a receita e fixa a despesa para o exercício financeiro de 2010”

Ementa: Ação Direta de Inconstitucionalidade, movida pela Mesa Diretora da Câmara Municipal de Itapira, tendo por objeto a Lei nº 4.524, de 31 de dezembro de 2009, que “estima a receita e fixa a despesa para o exercício financeiro de 2010”. Texto afinal publicado que não corresponde àquele aprovado pela Câmara Municipal. Violação do processo legislativo, que conduz à inconstitucionalidade do ato normativo (arts. 5º e 144, CE). Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

A Mesa Diretora da Câmara Municipal de Itapira ajuizou ação direta de inconstitucionalidade da Lei nº 4.524, de 31 de dezembro de 2009, que “estima a receita e fixa a despesa para o exercício financeiro de 2010”.

Alegou que o texto promulgado pelo Prefeito não corresponde ao aprovado pela Casa Legislativa, coincidindo, porém, com o do autógrafo a ela encaminhado (na publicação, foram desconsideradas as emendas parlamentares incidentes nos arts. 2º, 3º e 4º do projeto do Poder Executivo).

Afirmou ter havido ofensa às regras do processo legislativo, de observância cogente aos Municípios, ensejando, segundo os precedentes colacionados, a inconstitucionalidade do ato normativo em análise por ofensa aos artigos 5º; 9º; 19, II; 28; 144; e 175, § 4º, da Constituição do Estado.

Pela r. Despacho de fls. 190/193, o em. rel. Des. CARLOS EDUARDO CAUDURO PADIN, deferiu, liminarmente, a suspensão da vigência da lei objurgada.

Contra essa Decisão, o Prefeito do Município de Itapira interpôs agravo regimental (fls. 194 e 197), cujo provimento foi negado pelo v. Acórdão de fls. 371/379.

O Procurador-Geral do Estado, devidamente citado, declinou da defesa do ato normativo, assinalando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 387/389).

O Município de Itapira arguiu, em preliminar, a impossibilidade de se sindicar em ADIN leis de efeitos concretos, como a norma orçamentária. No mérito, sustentou a higidez da lei orçamentária de 2010 (LOA), afirmando que o chefe do Executivo pode promulgar o projeto originário enviado à Câmara Municipal quando esta não o restitui ao termo da sessão legislativa, como autoriza o art. 42 (rectius: 32) da Lei nº 4.320/64. Explicou que, após a edição da norma objurgada, houve autorização legislativa para suplementação de crédito ao orçamento anual, o que equivale à aprovação tácita da LOA (fls. 197/211).

É o relatório.

Preliminar

A preliminar não merece acolhida, cabendo assinalar que o STF, revendo sua jurisprudência, tem admitido ADI em face de leis de efeitos concretos, como comprova a seguinte ementa:

EMENTA: MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA N° 405, DE 18.12.2007. ABERTURA DE CRÉDITO EXTRAORDINÁRIO. LIMITES CONSTITUCIONAIS À ATIVIDADE LEGISLATIVA EXCEPCIONAL DO PODER EXECUTIVO NA EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS. I. MEDIDA PROVISÓRIA E SUA CONVERSÃO EM LEI. Conversão da medida provisória na Lei n° 11.658/2008, sem alteração substancial. Aditamento ao pedido inicial. Inexistência de obstáculo processual ao prosseguimento do julgamento. A lei de conversão não convalida os vícios existentes na medida provisória. Precedentes. II. CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS ORÇAMENTÁRIAS. REVISÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto. Possibilidade de submissão das normas orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade. III. LIMITES CONSTITUCIONAIS À ATIVIDADE LEGISLATIVA EXCEPCIONAL DO PODER EXECUTIVO NA EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS PARA ABERTURA DE CRÉDITO EXTRAORDINÁRIO. Interpretação do art. 167, § 3º c/c o art. 62, § 1º, inciso I, alínea "d", da Constituição. Além dos requisitos de relevância e urgência (art. 62), a Constituição exige que a abertura do crédito extraordinário seja feita apenas para atender a despesas imprevisíveis e urgentes. Ao contrário do que ocorre em relação aos requisitos de relevância e urgência (art. 62), que se submetem a uma ampla margem de discricionariedade por parte do Presidente da República, os requisitos de imprevisibilidade e urgência (art. 167, § 3º) recebem densificação normativa da Constituição. Os conteúdos semânticos das expressões "guerra", "comoção interna" e "calamidade pública" constituem vetores para a interpretação/aplicação do art. 167, § 3º c/c o art. 62, § 1º, inciso I, alínea "d", da Constituição. "Guerra", "comoção interna" e "calamidade pública" são conceitos que representam realidades ou situações fáticas de extrema gravidade e de conseqüências imprevisíveis para a ordem pública e a paz social, e que dessa forma requerem, com a devida urgência, a adoção de medidas singulares e extraordinárias. A leitura atenta e a análise interpretativa do texto e da exposição de motivos da MP n° 405/2007 demonstram que os créditos abertos são destinados a prover despesas correntes, que não estão qualificadas pela imprevisibilidade ou pela urgência. A edição da MP n° 405/2007 configurou um patente desvirtuamento dos parâmetros constitucionais que permitem a edição de medidas provisórias para a abertura de créditos extraordinários. IV. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. Suspensão da vigência da Lei n° 11.658/2008, desde a sua publicação, ocorrida em 22 de abril de 2008 (ADI 4048 MC, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 14/05/2008, DJe-157 DIVULG 21-08-2008 PUBLIC 22-08-2008 EMENT VOL-02329-01 PP-00055 RTJ VOL-00206-01 PP-00232, grifo nosso).  

Mérito

Compreende-se a aflição do Prefeito que, segundo sua versão (a certidão de fls. 31 o contraria), iniciaria o exercício financeiro de 2010 sem que a lei orçamentária tivesse sido aprovada.

Como se sabe, não pode haver despesa sem previsão legal. A Constituição Federal proíbe, expressamente, o início de programas ou projetos não incluídos na LOA (art. 167, I).

De outro giro, o art. 6º da Lei nº 4.320/64 determina que todas as despesas constem da lei orçamentária, consagrando, assim, o princípio da universalidade.

O sistema normativo, aliás, prevê graves sanções para o administrador que ordena despesas não autorizadas na lei orçamentária (v.g. Código Penal, artigo 359-D; Decreto-Lei nº 201/67, art. 1º, V, e § 2º; Lei nº 8.429/92, art. 10, IX).

Por isso, a doutrina sugere soluções para a situação em que o Poder Legislativo não aprova o orçamento antes do início do exercício financeiro, a saber: a) execução, em quotas duodecimais, do orçamento do ano anterior; b) autorização de abertura de créditos adicionais extraordinários via medida provisória; c) aprovação de lei autorizativa da abertura de créditos adicionais especiais; e d) execução do projeto de lei do orçamento anual encaminhado pelo Poder Executivo para o Legislativo até que a LOA seja aprovada (cf. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário. Orçamento na Constituição. Vol. V, 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 247).

Nenhuma delas, entretanto, corresponde à opção adotada pelo Prefeito, que decidiu, em frontal desrespeito ao processo legislativo, promulgar o texto original do projeto de lei orçamentária encaminhado à Câmara Municipal, desprezando o autógrafo aprovado em 1ª. e 2ª. votações, com as emendas modificativas nº 01/09 e subemendas nº 01, 2, 5, 7, 8 e 9/09, que, de acordo com a certidão de fls. 31, fora remetido para o Poder Executivo Municipal, para sanção, no dia 30 de dezembro de 2009, às 13 horas.

Mesmo que fosse possível duvidar da validade da aludida certidão, não se reputa legítima a conduta do Alcaide, pois executar o projeto de lei orçamentária encaminhado não corresponde a promulgá-lo.

Desprezou-se, às inteiras, o processo legislativo, compreendido o conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção e veto) realizados para a formação das leis, que é objeto de minuciosa previsão na Constituição Federal, para que se constitua em meio garantidor da independência e harmonia dos Poderes (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 675).

O desrespeito às normas do processo legislativo, cujas linhas mestras estão traçadas na Constituição da República, conduz à inconstitucionalidade formal do ato produzido, que poderá sofrer o controle repressivo, difuso ou concentrado, por parte do Poder Judiciário.

De fato:

As regras gerais que veiculam princípios do processo legislativo são impositivas para as três esferas do governo. A legislação local não pode restringi-la nem ampliá-las. São dispositivos inarredáveis, considerados de importância primordial para a regência das relações harmônicas e independentes dos Poderes. Dizem respeito à própria configuração do Estado, em seu modelo de organização política, traçado pela nova ordem constitucional. Dele, o Município, como integrante da Federação, não pode se afastar (Hely Lopes Meirelles. Direito Municipal Brasileiro, 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 675).

Estabelece-se, assim, a premissa de que “dada a tese da simetria, consagrada pelo STF, o processo legislativo municipal acaba por coincidir com o processo legislativo federal” (Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Do processo legislativo, 5ª. ed., rev., ampl. E atual. São Paulo: RT, p. 254).

O caso em análise representa notória ofensa ao processo legislativo fundamental, isto é, aquele desenhado pela Constituição da República.

A iniciativa, compreendida como a entrega do projeto à Câmara, foi concretizada com a protocolização do texto original.

O que se sucedeu, entretanto, foi o frontal desrespeito às regras da separação dos Poderes e do relacionamento entre eles, de observância obrigatória pelos Municípios (art. 144 da Constituição Bandeirante), que a disciplina das emendas garante, pois, ainda que a Câmara Municipal tivesse retardado a restituição do autógrafo, o Prefeito jamais poderia publicar a lei não aprovada.

Resta dizer que, ao contrário do que sugere o Prefeito nas razões recursais, não há autorização normativa que avalize o seu proceder, consignando-se que o art. 32 da Lei nº 4.320/64, cujo teor segue transcrito, contém solução para a omissão do Poder Executivo, não se aplicando à hipótese dos autos, sequer por analogia:

Art. 32. Se não receber a proposta orçamentária no prazo fixado nas Constituições ou nas Leis Orgânicas dos Municípios, o Poder Legislativo considerará como proposta a Lei de Orçamento vigente.

Diante do exposto, opino pela procedência da presente ação direta de inconstitucionalidade.

 

São Paulo, 30 de Novembro de 2010.

 

 

 

         Sérgio Turra Sobrana

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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