Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº 990.10.023638-5

Requerente: Prefeito Municipal de Mogi Guaçu

Objeto: Lei Municipal n. 4.567, de 13 de outubro de 2009

 

Ementa:

1)      Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Municipal n. 4.567, de 13 de outubro de 2009, de iniciativa parlamentar, que cria o “Dia do Rio Mogi Guaçu” e dispõe sobre atribuições do Poder Executivo.

2)      Procedência em parte, no que se refere ao estabelecimento de atribuições do Poder Executivo. Inconstitucionalidade formal subjetiva pelo vício de iniciativa e pela ofensa ao Princípio da Separação e da Harmonia entre os Poderes (art. 5º, caput, da Constituição do Estado).

 

3)      Parecer pela procedência parcial.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Excelentíssimo Senhor Prefeito Municipal de Mogi Guaçu, tendo como alvo a Lei Municipal n. 4.567, de 13 de outubro de 2009, de iniciativa parlamentar, que cria o “Dia do Rio Mogi Guaçu” e dispõe sobre atribuições do Poder Executivo.

Alegação de vício de iniciativa por ofensa aos arts. 5º e 47, II, da Constituição Estadual, sob o argumento de se tratar de lei que cria despesa pública e não prevê dotação orçamentária, bem como invada a esfera de iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo Municipal.

Foi deferido o pedido de liminar (fls. 17/18).

O Presidente da Câmara Municipal foi devidamente citado (fls. 23).

O Senhor Procurador-Geral do Estado foi devidamente citado e se manifestou a fls. 28/30.

É o relato do essencial.

A Lei Municipal impugnada pela presente ação direta é, realmente, inconstitucional, pois acaba por afrontar o princípio da separação de poderes.

Por isso, há violação do disposto no art. 144 da Constituição Paulista, que tem a seguinte redação:

Art. 144. Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição.

À evidência que a lei municipal questionada, embora contenha proposta louvável, invade competência privativa do chefe do Poder Executivo municipal.

Assim, apenas o Prefeito Municipal tem iniciativa para deflagrar processo legislativo para aprovação de lei com o conteúdo da que se pretende ver declarada como inconstitucional, sob pena de indevida interferência de um Poder sobre o outro.

Postulado básico da organização do Estado é o princípio da separação dos poderes, constante do art. 5º da Constituição do Estado de São Paulo, norma de observância obrigatória nos Municípios conforme estabelece o art. 144 da mesma Carta Estadual, e que assim dispõe:

Artigo 5º. São Poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.

Este dispositivo é tradicional pedra fundamental do Estado de Direito assentado na idéia de que as funções estatais são divididas e entregues a órgãos ou poderes que as exercem com independência e harmonia, vedando interferências indevidas de um sobre o outro. Todavia, o exercício dessas atribuições nem sempre é fragmentado e estanque, pois, observa a doutrina que “o princípio da separação dos poderes (ou divisão, ou distribuição, conforme a terminologia adotada) significa, portanto, entrosamento, coordenação, colaboração, desempenho harmônico e independente das respectivas funções, e ainda que cada órgão (poder), ao lado de suas funções principais, correspondentes à sua natureza, em caráter secundário colabora com os demais órgãos de diferente natureza, ou pratica certos atos que, teoricamente, não pertenceriam à sua esfera de competência” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 585).

Como conseqüência do princípio da separação dos poderes, a Constituição Estadual, perfilhando as diretrizes da Constituição Federal, comete a um Poder competências próprias, insuscetíveis de invasão por outro. Assim, ao Poder Executivo são outorgadas atribuições típicas da função administrativa, como, por exemplo, dispor sobre a sua organização e seu funcionamento. Em essência, a separação ou divisão de poderes “consiste um confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e jurisdicional) a órgãos diferentes (...) A divisão de Poderes fundamenta-se, pois, em dois elementos: (a) especialização funcional, significando que cada órgão é especializado no exercício de uma função (...); (b) independência orgânica, significando que, além da especialização funcional, é necessário que cada órgão seja efetivamente independente dos outros, o que postula ausência de meios de subordinação” (José Afonso da Silva. Comentário contextual à Constituição, São Paulo: Malheiros, 2006, 2ª ed., p. 44).

Também por decorrência do citado princípio da separação de poderes, e à vista dos mecanismos de controle recíprocos de um sobre o outro para evitar abusos e disfunções, a Constituição Estadual cuidou de precisar a participação do Poder Executivo no processo legislativo. Como observa a doutrina: “É a esse arranjo, mediante o qual, pela distribuição de competências, pela participação parcial de certos órgãos estatais controlam-se e limitam-se reciprocamente, que os ingleses denominavam, já anteriormente a Montesquieu, sistema de ‘freios recíprocos’, ‘controles recíprocos’, ‘reservas’, ‘freios e contrapesos’ (checks and controls, checks and balances), tudo isso visando um verdadeiro ‘equilíbrio dos poderes’ (equilibrium of powers) (...)

A distribuição das funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte, através da Constituição. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criarem novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua natureza específica” (J. H. Meirelles Teixeira. Curso de Direito Constitucional, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 581, 592-593).

 Assim, se em princípio a competência normativa é do domínio do Poder Legislativo, certas matérias por tangenciarem assuntos de natureza eminentemente administrativa e, concomitantemente, direitos de terceiros ou o próprio exercício dos poderes estatais, são reservadas à iniciativa legislativa do Poder Executivo.

Esse desenho normativo de status constitucional – aplicável aos Municípios por obra do art. 144 da Constituição Estadual - permite assentar as seguintes conclusões: a) a iniciativa legislativa não é ampla nem livre, só podendo ser exercida por sujeito a quem a Constituição entregou uma determinada competência; b) ao Chefe do Poder Executivo a Constituição prescreve iniciativa legislativa reservada em matérias inerentes à Administração Pública; c) há matérias administrativas que, todavia, escapam à dimensão do princípio da legalidade consistente na reserva de lei em virtude do estabelecimento de reserva de norma do Poder Executivo. A propósito, frisa Hely Lopes Meirelles a linha divisória da iniciativa legislativa: “Leis de iniciativa da Câmara ou, mais propriamente, de seus vereadores são todas as que a lei orgânica municipal não reserva, expressa e privativamente à iniciativa do prefeito. As leis orgânicas municipais devem reproduzir, dentre as matérias previstas nos arts. 61, § 1º, e 165 da CF, as que se inserem no âmbito da competência municipal” (Direito Municipal Brasileiro, São Paulo: Malheiros, 1997, 9ª ed., p. 431).

Portanto, irradia-se do princípio da separação de poderes a própria técnica jurídica de freios e contrapesos com a previsão de iniciativa legislativa reservada ao Chefe do Poder Executivo em matéria administrativa.

Nesse contexto, são inconstitucionais os arts. 2º, 3º e 4º do diploma normativo impugnado. Porém, não há razão para se declarar a inconstitucionalidade do art. 1º, que cria o “Dia do Rio Mogi Guaçu”.

Posto isso, aguardo o julgamento de procedência parcial da presente ação direta a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade dos arts. 2º, 3º e 4º da Lei Municipal n. 4.567, de 13 de outubro de 2009.

São Paulo, 29 de junho de 2010.

 

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

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