Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990. 10. 023640-7

Requerente: Prefeito do Município de Mogi Guaçu

Objeto: Lei nº 4.572, de 21 de outubro de 2009, do Município de Mogi Guaçu

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida por Prefeito, da Lei nº 4.752, de 21 de outubro de 2009, do Município de Mogi Guaçu, que “dispõe sobre a coleta e destinação de resíduos variados contaminados com óleos”. Projeto de autoria de Vereador. Matéria reservada ao Chefe do Poder Executivo, eis que institui programa e gera ônus à Administração. Violação do princípio da separação dos poderes. Criação de despesa, sem indicação da receita. Ofensa aos artigos 5º, 25, 47, II e 144, da CE. Parecer pela procedência da ação.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Mogi Guaçu, tendo por objeto a Lei nº 4.752, de 21de outubro de 2009, do Município de Mogi Guaçu, que “dispõe sobre a coleta e destinação de resíduos variados contaminados com óleos”.

O autor noticia que o projeto que a antecedeu iniciou-se na Câmara Municipal e que, depois de aprovado, foi inteiramente vetado pelo Poder Executivo. O veto foi derrubado e, afinal, a lei foi promulgada pelo Presidente da Câmara Municipal.

Sustenta que referida lei é inconstitucional porque o legislador municipal teria invadido a competência da União para disciplinar normas de proteção ao meio ambiente.

A Lei teve a vigência e eficácia suspensas ex nunc, atendendo-se ao pedido liminar (fls. 37/38).

Não chegaram aos autos as informações do Presidente da Câmara Municipal, embora tenha sido devidamente intimado (fls. 53).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 50/52).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

Deve-se dizer, de início, que, ao sintetizar os princípios ligados ao controle da constitucionalidade, Alfredo Buzaid afirma que “o tribunal não se pronunciará sobre a constitucionalidade de uma lei, salvo em litígio regularmente submetido ao seu conhecimento” (Da ação direta, São Paulo: Saraiva, 1958, p. 22).

Instaurada a relação processual do controle concentrado, nada impede que esse Órgão Especial julgue procedente a presente ação por causa de pedir diversa da exposta na inicial.

No julgamento da ADI n. 2.396/MS, a Ministra Ellen Gracie afirmou ser possível “pelos fatos narrados na inicial, verificar[-se] a ocorrência de agressão a outros dispositivos constitucionais que não os indicados na inicial” (Julgamento do Pleno do STF em 08/05/2003. Publicação: DJ de 1/8/2003, p. 100).

Aliás, no julgamento da ADI-MC n. 2396/MS (Publicação: DJ de 14/12/2001, p. 23), o Pleno do Supremo, em acórdão relatado pela mesma magistrada, foi mais incisivo: “O Tribunal não está adstrito aos fundamentos invocados pelo autor, podendo declarar a inconstitucionalidade por fundamentos diversos dos expendidos na inicial”.

Então, presentes os pressupostos do processo, fica aberta a possibilidade de se aferir a constitucionalidade dos dispositivos impugnados em face de qualquer regra da Carta Bandeirante, ainda que o autor da ação não os tenha indicado expressamente.

Feitas essas considerações – que supomos necessárias para desenvolver nossa argumentação, insta observar, deve-se lembrar que a proteção do meio ambiente foi incluída no rol do art. 24 da Constituição Federal, sendo um dos temas cuja competência é concorrente entre União, Estados e Distrito Federal.

Para esse assunto, a Carta Política adotou a técnica da competência concorrente não-cumulativa, de forma que a competência da União está adstrita ao estabelecimento de normas gerais. Cabe aos Estados-membros e o Distrito Federal a edição das normas específicas e minuciosas para adaptar princípios, bases e diretrizes estabelecidas nas regras gerais às peculiaridades regionais. Fica reservado aos Municípios suplementar a legislação federal e estadual, no que couber (CF, art. 30, II), o que significa dizer que sua competência legislativa relaciona-se aos assuntos de predominante interesse local (cf. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 23ª. ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 303-306; MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. 16ª. ed., São Paulo: Malheiros, p. 579-580).

Ocorre que a Constituição do Estado de São Paulo estabelece, em seu art. 191, o seguinte:

Artigo 191 - O Estado e os Municípios providenciarão, com a participação da coletividade, a preservação, conservação, defesa, recuperação e melhoria do meio ambiente natural, artificial e do trabalho, atendidas as peculiaridades regionais e locais e em harmonia com o desenvolvimento social e econômico.

Com base nesse dispositivo, o C. Órgão Especial tem dito que “no atendimento de peculiaridades locais voltadas à preservação, conservação e defesa do meio ambiente natural, artificial ou do trabalho, [a Constituição Estadual] igualmente autoriza a edição legislativa de normas que viabilizem esse desideratum, desde que não incompatíveis com normas estaduais ou federais ex vi de seu artigo 191” (trecho do voto do Des. OSCARLINO MOELLER na ADIN nº 164.487-0/9, j. 4.02.2009, v.u.).

Com essa premissa, a Corte julgou válida lei municipal que instituía a compensação às emissões de gases de efeito estufa (GEE) e o manejo adequado dos resíduos gerados por empresas instaladas na cidade de Valinhos, forte no entendimento de que a regra do art. 144 da Constituição Estadual, de caráter genérico, cede em face da clareza e especificidade do art. 191 citado.

Desse modo, em que pese o vigor da argumentação do Alcaide, ela não convence de que é defeso ao Município legislar sobre a matéria versada no ato impugnado.

De toda sorte, vê-se que a Lei em análise decorre de projeto de autoria de vereador (fls. 25) e impõe ao Poder Executivo, através da Secretaria Municipal de Agricultura, Abastecimento e Meio Ambiente a fiscalização do cumprimento das obrigações previstas na lei, bem como, a aplicação de penalidades aos que a descumprirem (art. 24).

Por isso, é de ser acolhida a tese do vício de iniciativa.

De fato, somente ao Chefe do Poder Executivo assiste a iniciativa de leis que criem – como é o caso – obrigações e deveres para órgãos municipais (art. 47, inc. II da Constituição Estadual, de aplicação extensível aos municípios por força do art. 144 da mesma Carta).

Note-se que, instituindo uma obrigação para as pessoas físicas ou jurídicas, que produzam ou revendam resíduos sólidos, embalagens vazias de óleos lubrificantes e aditivos, filtros de óleos lubrificantes e combustíveis, contaminados com óleo, no Município de Mogi Guaçu, responsabilizem-se pela destinação adequada de tais resíduos, mediante procedimentos de coleta, reutilização, reciclagem, beneficiamento ou disposição final, a lei impõe à Administração o correspondente dever de fiscalizá-la. Desse modo, incide no serviço público.

Como a lei foi concebida no Poder Legislativo, a iniciativa acabou invadindo a seara da administração pública, da alçada exclusiva do Prefeito, violando sua prerrogativa de analisar a conveniência e oportunidade das providências que a lei quis determinar.

Bem por isso, a matéria somente poderia objeto de tramitação legislativa por proposta do próprio Chefe do Poder Executivo.

Ofendeu-se, igualmente, o princípio basilar da separação de poderes, pois, na dicção desse Tribunal:

“Ao Executivo haverá de caber sempre o exercício de atos que impliquem no gerir as atividades municipais. Terá, também, evidentemente, a iniciativa das leis que lhe propiciem a boa execução dos trabalhos que lhe são atribuídos. Quando a Câmara Municipal, o órgão meramente legislativo, pretende intervir na forma pela qual se dará esse gerenciamento, está a usurpar funções que são de incumbência do Prefeito” (ADIN n. 53.583-0, rel. Des. FONSECA TAVARES).

Por fim, existe outro fundamento, igualmente relevante (embora, também, não mencionado na inicial), que, por si só, demandaria o reconhecimento da inconstitucionalidade.

A regra do art. 25 da Constituição do Estado, fortemente influenciada pela noção de responsabilidade fiscal, exige que o projeto de lei que implique criação ou aumento de despesa pública contenha a previsão dos recursos disponíveis para o atendimento dos novos encargos.

Na hipótese em análise é intuitivo que a atividade de fiscalização criada gera despesas. E a lei não contém nenhum elemento indicador de sua provisão, sendo também sob esse aspecto incompatível com o texto constitucional.

Diante do exposto, opino pela procedência desta ação direta, declarando-se a inconstitucionalidade da Lei nº 4.572, de 21 de outubro de 2009, do Município de Mogi Guaçu, que “dispõe sobre a coleta e a destinação de resíduos variados contaminados com óleos”.

 

São Paulo, 25 de outubro de 2010.

 

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

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