AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

Processo n.º 990.10.026262-9

Autor: Partido Progressista (Diretório Estadual)

Objeto de impugnação: art. 22, I a IV, parágrafo único, alíneas ‘a’ a ‘i’, da Lei Orgânica do Município de Piraju e arts. 48, incisos I a V, §§ 1.º a 4.º, e 221, I a VII, ‘a’ a ‘q’, do Regimento Interno da Câmara de Vereadores de Piraju, conforme a redação dada pela Resolução 7/2008.

 

                   “EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade. Normas da Lei Orgânica Municipal de Piraju e do Regimento Interno da Câmara de Vereadores de Piraju que disciplinam as hipóteses que autorizam a cassação do mandato de vereador e fixam regras peculiares ao seu processo e julgamento. Matéria de competência privativa da União, que vem regulamentada no Decreto-Lei n.º 201/67 (arts. 5.º e 7.º). O fato de as disposições legais impugnadas apresentarem conteúdo análogo ao da legislação federal de regência da matéria (Decreto-Lei n.º 201/67) não justifica sua preservação. Normas editadas por entes federativos sem competência não podem subsistir, ainda que similares às normas editadas pelo ente federativo com competência para tanto, porquanto o vício é de forma (inconstitucionalidade formal: orgânica) e não de conteúdo. Possibilidade de adoção de normas remissivas como parâmetros de controle de constitucionalidade no âmbito estadual. Precedentes do STF. Ação procedente.”

 

Excelentíssimo Senhor Desembargador Relator,

Colendo Órgão Especial:

 

                   Cuida-se de ação na qual se pretende ver declarada a inconstitucionalidade das disposições normativas em epígrafe – as quais definem crimes de responsabilidade (infrações político-administrativas) dos vereadores e prefeito e, outrossim, fixam regras peculiares ao seu processo e julgamento –, cujo teor, basicamente, é o seguinte: 

 

                   Art. 22 – A perda do mandato dar-se-á por cassação, quando o Vereador:

                   I – infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo 19;

                   II – proceder de modo incompatível com o decoro parlamentar;

                   III – sofrer condenação criminal, com sentença definitiva e irrecorrível;

                   IV – utilizar-se do mandato para a prática de atos de corrupção ou de improbidade administrativa;

                   Parágrafo único – O processo de cassação do mandato do Vereador será regulado no Regimento Interno, observados os seguintes preceitos:

                   a) A denúncia poderá ser feita por Partido Político representado na Casa ou por qualquer eleito do Município, com a exposição dos fatos e a indicação de provas;

                   b) leitura da denúncia em sessão até 5 (cinco) dias após o seu recebimento e protocolo, e despachada a uma Comissão Especial para avaliação, composta por 5 (cinco) vereadores, sorteados dentre os desimpedidos.

                   c) A Comissão de que trata a alínea anterior emitirá parecer em 10 (dez) dias, concluindo se a denúncia deve ou não ser admitida como acusação;

                   d) convocação de sessão extraordinária para se reunir em até 5 (cinco) dias contados do recebimento do parecer, para deliberação do mesmo;

                   e) recebimento da acusação por maioria simples;

                   f) se a acusação for admitida pela maioria absoluta, o Presidente da Câmara afastará o acusado até o final do processo;

                   g) cassação pela maioria de 2/3 (dois terços) dos membros da Câmara, ELOMP 01/02;

                   h) os vereadores denunciante e denunciado não poderão participar, sob pena de nulidade, de nenhuma deliberação plenária desde o recebimento da denúncia até o final, bem como de integrar as comissões de avaliação e processante, podendo, todavia, praticar atos de acusação e defesa e acompanhar todos os atos das referidas comissões;

                   i) a renúncia do Vereador denunciado não suspende o processo de cassação, que tramitará até o relatório final, sujeito à deliberação plenária.

 

                   -----------------------------------------------------------------------------------

                  

                   Art. 48 – A Câmara poderá cassar o mandato do Vereador quando:

                   I – infringir qualquer das proibições previstas neste Regimento;

                   II – proceder de modo incompatível com o decoro parlamentar;

                   III – sofrer condenação criminal, com sentença definitiva e irrecorrível;

                   IV – utilizar-se do mandato para a prática de atos de corrupção ou de improbidade administrativa;

                   V – fixar residência fora do Município;

                   § 1.º - Nos casos dos incisos I, II e III, a perda do mandato será decidida pela Câmara por voto secreto, e maioria absoluta, mediante provocação da Mesa ou de Partido Político representado na Casa, assegurada ampla defesa;

                  § 2.º - Nos casos previstos nos inciso IV e V, a cassação do mandato será decidida pela Câmara, por voto secreto de 2/3 (dois terços) de seus membros, assegurada ampla defesa.

                   § 3.º - O processo de cassação do mandato de Vereador deverá estar concluído no prazo de 90 (noventa) dias, contados da data em que se efetivar a notificação, se decorrido o prazo sem julgamento, o processo será arquivado, sem prejuízo de nova denúncia, ainda que sobre os mesmos fatos.

                   § 4.º - O processo obedecerá, no que couber, ao rito de cassação de mandato estabelecido neste Regimento.

 

                   Art. 221 – Nas hipóteses previstas no artigo anterior o processo de cassaco obedecerá o seguinte rito:

 

                   I – a denúncia escrita, contendo a exposição dos fatos e a indicação das provas, será dirigida ao Presidente da Câmara e poderá ser apresentada por qualquer cidadão, Vereador ou partido político com representação na Câmara;

                   II – se a denúncia for apresentada por Vereador, este será impedido de participar da Comissão Processante e de votar em qualquer das fases do processo;

                   III – se o denunciante for o Presidente da Câmara, passará a Presidência ao substituto legal, para os atos do processo;

                   IV – será convocado o suplente do Vereador impedido de votar, exclusivamente para este Ato, estando impedido de participar da Comissão Processante;

                   V – de posse da denúncia, o Presidente da Câmara ou seu Substituto, determinará sua leitura na primeira sessão ordinária, consultando o Plenário sobre o seu recebimento;

                   VI – decidido o recebimento da denúncia pela maioria simples, na mesma sessão será sorteados, dentre os desimpedidos, os 3 (três) membros da Comissão Processante;

                   VII – entregue o processo ao Presidente da Comissão seguir-se-á o seguinte procedimento;

                   a) Como primeiro ato, o Presidente determinará a notificação do denunciado, no prazo máximo de 5 (cinco) dias, mediante remessa de cópia da denúncia e dos documentos que a instruem;

                   b) A notificação será feita pessoalmente ao denunciado ou por edital publicado em jornal local, caso ausente do município, correndo o prazo a partir do primeiro dia útil da publicação;

                   c) uma vez notificado, o denunciado terá direito de apresentar defesa prévia por escrito no prazo de 10 (dez) dias, indicando as provas que pretende produzir e o rol de testemunhas, no máximo de 5 (cinco), que deseja sejam ouvidas no processo;

                   d) decorrido esse prazo, com a defesa ou sem ela, a Comissão emitirá parecer, no prazo máximo de 5 (cinco) dias, opinando pelo prosseguimento ou pelo arquivamento da denúncia;

                   e) se o parecer opinar pelo arquivamento, será submetido ao Plenário que, pela maioria absoluta dos membros da Câmara poderá aprová-lo, caso em que será arquivado, ou rejeitá-lo, hipótese em que o processo terá prosseguimento;

                   f) se pelo prosseguimento, o Presidente da Comissão dará início à instrução do processo, determinando os atos, diligências e audiências que se fizerem necessárias para o depoimento e inquirição das testemunhas arroladas;

                   g) o denunciado deverá ser intimado pessoalmente ou na pessoa de seu Procurador, com a antecedência mínima de 48 (quarenta e oito) horas, de todos os atos do processo, sendo-lhe permitido assistir a todas as audiências e diligências, inclusive a formulação de perguntas e reperguntas às testemunhas, além de requerer tudo quanto for de interesse da defesa;

                   h) concluída a instrução, será aberta vista do processo à defesa para que apresente razões finais no prazo de 5 (cinco) dias, e após, em igual prazo, a Comissão Processante apresentará seu parecer final, pela procedência ou improcedência da acusação, e solicitará ao Presidente da Câmara a convocação de sessão para apreciação do processo;

                   i) na abertura da sessão a que se refere a alínea anterior, a Câmara e o denunciado, que poderá estar representado por advogado, solicitarão a leitura das peças do processo que desejarem, e a seguir poderão usar da palavra até 4 (quatro) Vereadores, por 10 (dez) minutos cada um, sendo os 2 (dois) primeiros com palavra livre e os 2 (dois) últimos para a acusação;

                   j) finda a acusação, o Procurador do denunciado terá até 2 (duas) horas para produzir a defesa, ao final da qual, facultar-se-á ao denunciado o uso da palavra por até 30 (trinta) minutos;

                   k) concluída a fase prevista nas alíneas anterior, proceder-se-á a votação em número igual ao das infrações arroladas na denúncia, considerando-se afastado do cargo o denunciado, se declarado, pelo voto de 2/3 (dois terços) dos membros da Câmara, como incurso em qualquer delas;

                   l) concluídas as votações, o Presidente da Câmara proclamará imediatamente o resultado e fará lavrar ata que consigne a votação de cada infração;

                   m) se o resultado for pelo afastamento, será expedido o competente Decreto Legislativo ou Resolução de cassação de mandato, incontinente;

                   n) se o resultado da votação for pela improcedência da denúncia, o Presidente da Câmara determinará o arquivamento do processo;

                   o) sendo o caso de cassação, o Presidente da Câmara comunicará à Justiça Eleitoral;

                   p) o processo a que se refere este Regimento interno será concluído em até 120 (cento e vinte) dias contados da notificação do denunciado, arquivando-se o processo se escorrido sem a sessão de votação este prazo.

                   q) o arquivamento sem deliberação plenária não prejudicará uma nova denúncia, ainda que sobre os mesmos fatos.

 

                   Segundo consta na inicial, a competência para legislar sobre a referida matéria é privativa da União (CF, art. 22, I), consoante a jurisprudência assente no Colendo Supremo Tribunal Federal, e, por conseguinte, ao dispor sobre tal assunto, sem ter competência para tanto, a Câmara de Vereadores de Piraju violou expressamente o art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo, que manda os municípios atenderem os princípios estabelecidos na Constituição Federal, dentre eles as regras de repartição de competências entre as unidades federativas.

                   Houve concessão parcial da liminar, pelo digno Relator sorteado, tão-só para suspender a eficácia dos arts. 22, ‘b’ (expressão ‘e despachada a uma Comissão Especial para avaliação composta por 5 [cinco] vereadores sorteados dentre os desimpedidos’), ‘c’ e ‘c’; 85, V a VII, §§ 2.º, 4.º, 6.º, 8.º, 9.º e 15, da Lei Orgânica do Município de Piraju; e das alínea ‘b’, ‘c’, ‘e’, ‘g’, ‘i’, ‘j’ e ‘p’ do inciso VI do art. 221 do Regimento Interno da Câmara de Vereadores de Piraju.

                   Citado para os fins do art. 90, § 2.º, da Carta Política Estadual, o Procurador Geral do Estado defendeu a exegese que condiciona a sua intervenção, nos processos de fiscalização abstrata, à existência de interesse estadual na preservação da norma impugnada, ausente, porém, neste caso em que as disposições em epígrafe disciplinam matéria exclusivamente local.

                   Notificada, a Câmara de Vereadores de Piraju prestou informações no prazo regimental, aduzindo apenas que o processo de cassação do vereador Clóvis Braz seguiu o rito do Decreto-Lei n.º 201/67, inexistindo, assim, qualquer irregularidade a ser declarada. Por sua vez, o Prefeito Municipal de Piraju aduziu o seguinte: há carência de ação, por ausência de interesse de agir; as disposições da Lei Orgânica do Município de Piraju são compatíveis com o Decreto-Lei n.º 201/67 e com a própria Constituição Federal, encaminhando à improcedência desta ação.

        

                                Em resumo, é o que consta nos autos.

                   Data venia’, a presente ação deverá ser julgada procedente.

                   Com efeito, a matéria sobre a qual a Câmara legislou (definição dos casos que ensejam a cassação do mandato de vereador e fixação de regras peculiares ao seu processo e julgamento) vem disciplinada no Decreto-Lei n.º 201/67, mais precisamente nos seus arts. 5.º, I a VII, e 7.º, I a III, §1.º, o que sinaliza para a inconstitucionalidade orgânica (formal) das disposições normativas municipais ora impugnadas.

                   A circunstância de a Câmara haver reproduzido parcialmente os preceitos do Decreto-Lei n.º 201/67 não é suficiente para validar, em parte, as normas que foram simplesmente repetidas, pois a discussão sobre a constitucionalidade ou não de tais disposições não tem a ver propriamente com o seu conteúdo, mas sim com a sua forma, visto que, se as disposições contrastadas apresentam conteúdo análogo, torna-se relativamente fácil a tarefa de identificar que o Município de Piraju legislou sobre matéria de competência privativa da União (CF, art. 22, I).

                   No caso em análise, não se trata de discussão sobre competência concorrente (CF, art. 24, I a XVI), em que incumbe à União editar normas gerais e aos Estados suplementá-las, ocasionando, a omissão daquela entidade federativa, na competência legislativa plena desta entidade.

                   Assim, se os Municípios dispusessem de competência concorrente com a União para legislar sobre regras de repartição de competências, o que se admite somente para argumentar, a eventual omissão desta resultaria na competência legislativa plena daqueles. Mas, na espécie, como se trata de competência privativa, é defeso aos Municípios legislar sobre esse tema e a consequência, em caso de inobservância desse preceito, é a invalidade da norma.

                   Em lapidar voto proferido no julgamento da Rcl. 383/SP, o Min. Moreira Alves anotou que:

                   ... pelo sistema constitucional brasileiro, ou há invasão de competência, e consequente invalidade da lei estadual que legisla na área de competência exclusiva da lei federal (g.n.), ou, na esfera de competência concorrente (que, aqui, se traduz na concorrência quanto à edição de normas gerais, que, se editadas pela União são normas nacionais), o princípio que vigora é o de que a norma estadual pode preencher o vazio deixado pela norma federal, que, se vier a preenchê-lo, afasta a eficácia da norma estadual apenas quando esta entra em choque com aquela – o § 4.º do art. 24 da atua Constituição preceitua que ‘a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual no que lhe for contrário, o que demonstra que as normas estaduais de conteúdo igual permanecem eficazes.                 

                   Portanto, mesmo as disposições da Lei Orgânica e do Regimento Interno da Câmara de Piraju, cujo conteúdo se assemelha ao dos arts. 5.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 201/67, devem ser declarados formalmente inconstitucionais, não podendo ser mantidas tais disposições até mesmo sob pena de gerar grave insegurança jurídica, visto que, se a cassação do mandato de vereador obedecer às regras locais, em detrimento das disposições do Decreto-Lei n.º 201/67, haverá sempre a possibilidade de questionamento judicial da regularidade desse procedimento.

                   Na verdade, sob a perspectiva eminentemente jurídica, é inviável a co-existência das disposições normativas locais com o Decreto-Lei n.º 201/67, pois as regras de repartição de competências da Constituição Federal sinalizam que à União compete privativamente legislar sobre direito penal e processual (art. 22, I), de tal modo que qualquer norma editada por municípios, relativamente a essas matérias, não tem como subsistir na ordem jurídico-constitucional vigente.

                   Volta-se a insistir: a inconstitucionalidade aqui identificada é a formal, ou seja, a entidade que editou a regra não dispõe de competência para tanto, e não a material, o que torna indiferente à resolução da controvérsia a circunstância de as disposições ora impugnadas apresentarem conteúdo análogo ao da legislação federal de regência da matéria (Decreto-Lei n.º 201/67).

                   Por outro lado, é necessário definir se a norma remissiva do art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo, que manda os municípios atenderem os princípios estabelecidos da Constituição Federal, pode ser utilizada isoladamente como parâmetro de controle de constitucionalidade na presente ação direta.

                   Essa questão foi enfrentada pelo STF, no julgamento da Rcl. n.º 3906/SP (rel. Min. GILMAR MENDES), no qual se admitiu adoção de normas remissivas como parâmetros válidos de controle de constitucionalidade nas ações processadas perante os Tribunais Estaduais, ‘verbis’:       

                       ‘Sobre a problemática da aptidão das normas remissivas para compor o parâmetro de controle em abstrato de constitucionalidade no âmbito do Estado-membro, cito novamente as lições de Leo Leoncy (Controle de constitucionalidade estadual. São Paulo: Saraiva, 2006, no prelo): “A elevação da Constituição do Estado-membro a parâmetro único e exclusivo do controle abstrato de normas estaduais torna oportuna a discussão acerca das normas constitucionais estaduais que podem ser consideradas idôneas para efeito de se realizar esse controle. O que se quer saber é se tal controle pode ser realizado em face de todas as normas da Constituição Estadual ou se, ao contrário, haveria algum tipo de norma que, em razão da sua natureza, não pudesse servir de parâmetro normativo idôneo. Nesse sentido, assume especial relevo a discussão acerca das chamadas normas jurídicas remissivas presentes nas diversas Constituições Estaduais. Em sua grande maioria, as normas jurídicas trazem elas próprias a regulamentação imediata da matéria a que concernem, merecendo, por isso, a denominação de normas de regulamentação direta ou, em fórmula mais sintética, normas materiais. Por outro lado, em contraposição a estas normas, há outras em que a técnica utilizada para a atribuição de efeitos jurídicos a determinado fato contido na hipótese normativa é indireta, “consistindo numa remissão para outras normas materiais que ao caso se consideram, por esta via, aplicáveis”. Tais normas podem designar-se normas de regulamentação indireta ou normas per relationem, sendo mais apropriado, entretanto, denominá-las normas remissivas. Essa classificação das normas jurídicas em geral aplica-se também às normas constitucionais em particular, sendo possível, portanto, proceder à distinção entre normas constitucionais materiais e normas constitucionais remissivas, “consoante encerram em si a regulamentação ou a devolvem para a regulamentação constante de outras normas”. Como não poderia deixar de ser, fenômeno semelhante ocorre com as normas contidas nas diversas Constituições Estaduais. É comum o poder constituinte decorrente fazer constar das Constituições Estaduais um significativo número de proposições jurídicas remissivas à Constituição Federal. O uso de tais fórmulas acaba por revelar muitas vezes a intenção daquele constituinte de transpor para o plano constitucional estadual a mesma disciplina normativa existente para uma determinada matéria no plano constitucional federal. Diante dessa constatação, coloca-se o problema de saber se tais proposições jurídicas remissivas constantes das Constituições Estaduais configuram parâmetro normativo idôneo para o efeito de se proceder, em face delas, ao controle da legitimidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais perante os Tribunais de Justiça dos Estados. Uma das dificuldades encontradas radica no fato de que, para se revelar o conteúdo normativo da norma estadual de remissão, em face da qual se impugna a lei ou ato normativo local, seria necessário valer-se antes do(s) dispositivo(s) da Constituição Federal mencionado(s) ou remetido(s). Nesses termos, a norma constitucional estadual não possuiria conteúdo próprio, por não revelar sentido normativo autônomo. (...) Nesta hipótese, a questão que se coloca pode ser assim formulada: seria possível impugnar por meio de ação direta, perante Tribunal de Justiça, lei ou ato normativo local por violação ao princípio da isonomia previsto na Constituição Federal e ao qual, segundo aquela proposição remissiva genérica, a Constituição do Estado-membro faz referência? O Supremo Tribunal Federal enfrentou essa questão no julgamento do RE n° 213.120/BA, Re. Min. Maurício Corrêa, DJ 2.6.2000, diante de norma remissiva constante da Constituição do Estado da Bahia (art. 149), que possui o seguinte teor: “O sistema tributário estadual obedecerá ao disposto na Constituição Federal, em leis complementares federais, em resoluções do Senado Federal, nesta Constituição e em leis ordinárias”. Na ocasião, o Tribunal entendeu que tal norma não poderia figurar como parâmetro de controle de constitucionalidade perante o Tribunal de Justiça estadual. O julgado está assim ementado: “EMENTA: CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE LEI MUNICIPAL. PRESSUPOSTOS. HIPÓTESE DE NORMAS QUE FAZEM MERA REMISSÃO FORMAL AOS PRINCÍPIOS TRIBUTÁRIOS CONSTITUCIONAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A simples referência aos princípios estabelecidos na Constituição Federal não autoriza o exercício do controle abstrato da constitucionalidade de lei municipal por este Tribunal. 2. O ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade perante esta Corte só é permitido se a causa de pedir consubstanciar norma da Constituição Estadual que reproduza princípios ou dispositivos da Carta da República. 3. A hipótese não se identifica com a jurisprudência desta Corte que admite o controle abstrato de constitucionalidade de ato normativo municipal quando a Constituição Estadual reproduz literalmente os preceitos da Carta Federal. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido para declarar o autor carecedor do direito de ação.” Porém, esse posicionamento foi superado no julgamento da RCL n° 733/BA, na qual o Tribunal, por unanimidade de votos, seguiu o voto do Ministro Ilmar Galvão, relator, no sentido de que as normas pertencentes à Constituição estadual, que remetem à disciplina de determinada matéria na Constituição Federal, podem servir de parâmetro de controle abstrato de constitucionalidade no âmbito estadual. No caso, tratava-se do art. 5º, caput, da Constituição do Estado do Piauí, que possui o seguinte teor: “O Estado assegura, no seu território e nos limites de sua competência, a inviolabilidade dos direitos e garantias fundamentais que a Constituição Federal confere aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país”. Sobre o acerto desse novo posicionamento do Tribunal, Leo Leoncy tece os seguintes comentários, em análise crítica da decisão proferida anteriormente no RE n° 213.120: “Em face de tal decisão (proferida no RE n° 213.120), convém perguntar se o uso de normas remissivas pelo constituinte estadual, para disciplinar determinada matéria que em outras normas elaboradas pelo constituinte federal já teve sua disciplina amplamente formulada, inviabiliza a defesa processual daquelas, em controle abstrato, perante o Tribunal de Justiça. Para resolver essa questão, é preciso desenvolver um pouco mais a noção de norma jurídica remissiva, para, ao final, tecerem-se algumas conclusões a respeito. Para isso, far-se-á uso dos conhecimentos disponíveis em teoria geral do direito. A remissão por meio de proposições jurídicas é um recurso técnico-legislativo de que o legislador se vale para evitar repetições incômodas. Proposições jurídicas dessa natureza “remetem, tendo em vista um elemento da previsão normativa ou a conseqüência jurídica, para outra proposição jurídica”. Daí porque tais proposições serem consideradas como proposições jurídicas incompletas. Consideradas isoladamente, tais proposições carecem de maior significado, apenas o adquirindo em união com outras proposições jurídicas. Daí se afirmar que as proposições jurídicas incompletas são apenas partes de outras proposições normativas. Para Larenz, “[t]odas as proposições deste género são frases gramaticalmente completas, mas são, enquanto proposições jurídicas, incompletas”. Não obstante, tais normas são válidas, são tidas como direito vigente, recebendo sua força constitutiva, fundamentadora de conseqüências jurídicas, quando em conexão com outras proposições jurídico-normativas. Esse caráter incompleto das proposições jurídicas remissivas remete ainda a uma outra classificação doutrinária. Nesse sentido, outra dicotomia que merece atenção é a relativa às normas autônomas e às normas não autônomas ou dependentes, “consoante valem por si, contêm todos os elementos de uma norma jurídica, ou somente valem integradas ou conjugadas com outras”. Desse modo, normas autônomas “são as que têm por si um sentido [normativo] completo” e não autônomas ou dependentes as que “exigem a combinação com outras”. Uma proposição autônoma “basta-se a si própria, tem nos seus termos todos os elementos necessários para a definição do seu alcance normativo”. Por outro lado, uma proposição não autônoma “não contém todos esses elementos”, devendo ser conexionada com outra proposição jurídica “para que o comando que nela se contém fique completo”. Imbricando uma e outra classificação, é possível afirmar que apenas as normas materiais seriam normas autônomas, porquanto as normas remissivas, por carecerem dos elementos de uma outra norma jurídica com a qual ganhariam sentido se e quando conjugadas, constituem-se, em última análise, em normas não autônomas ou dependentes. A norma constitucional estadual de remissão, na condição de norma dependente, toma de empréstimo, portanto, um determinado elemento da norma constitucional federal remetida, não se fazendo completa senão em combinação com este componente normativo externo ao texto da Constituição Estadual. Essa circunstância, todavia, não retira a força normativa das normas constitucionais estaduais de remissão, que, uma vez conjugadas com as normas às quais se referem, gozam de todos os atributos de uma norma jurídica. É o que se extrai da seguinte passagem de Karl Larenz: “O serem proposições jurídicas, se bem que incompletas, significa que comungam do sentido de validade da lei, que não são proposições enunciativas, mas partes de ordenações de vigência. Todavia, a sua força constitutiva, fundamentadora de conseqüências jurídicas, recebem-na só em conexão com outras proposições jurídicas”. Com isso, se uma norma estadual ou municipal viola ou não uma proposição constitucional estadual remissiva, é circunstância que apenas se saberá após a combinação entre norma remissiva e norma remetida, que é o que vai determinar o alcance normativo do parâmetro de controle a ser adotado. Entretanto, uma vez determinado esse alcance, a anulação da norma estadual ou municipal por violação a tal parâmetro nada mais é do que uma conseqüência da supremacia da Constituição Estadual no âmbito do Estado-membro. Em outras palavras, as conseqüências jurídicas decorrentes de eventual violação à proposição remissiva constante da Constituição Estadual derivam da própria posição hierárquico-normativa superior desta no âmbito do ordenamento jurídico do Estado-membro, e não da norma da Constituição Federal a que se faz referência. Assim, se as proposições remissivas constantes das diversas Constituições Estaduais, apesar de seu caráter dependente e incompleto, mantêm sua condição de proposições jurídicas, não haveria razão para se lhes negar a condição de parâmetro normativo idôneo para se proceder, em face delas, ao controle abstrato de normas perante os Tribunais de Justiça. Essa parece ser a tese subjacente ao entendimento adotado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, que, no julgamento da RCL 733, por unanimidade de votos, seguiu a orientação do Min. Ilmar Galvão, no sentido de que as normas constitucionais estaduais remissivas à disciplina de determinada matéria prevista na Constituição Federal constituem parâmetro idôneo de controle no âmbito local.(...) Portanto, tal qual o entendimento adotado na RCL n° 383 para as hipóteses de normas constitucionais estaduais que reproduzem dispositivos da Constituição Federal, também as normas constitucionais estaduais de caráter remissivo podem compor o parâmetro de controle das ações diretas de inconstitucionalidade perante o Tribunal de Justiça estadual. Dessa forma, também aqui não é possível vislumbrar qualquer usurpação da competência do STF.
 
                        A análise desse excerto revela que, no âmbito do Colendo Supremo Tribunal Federal, encontra-se definitivamente superada a jurisprudência que inadmitia o uso de norma remissiva como parâmetro idôneo do controle normativo abstrato que se desenvolve no plano estadual, revelando-se, assim, viável o processamento da presente ação direta de inconstitucionalidade na qual se aponta exclusivamente a violação do art. 144 da Carta Paulista.
                        Nessa ordem de ideias, cumpre acrescentar que o referido art. 144 manda os municípios atenderem os princípios estabelecidos na Constituição Federal. Acerca de tais princípios, RAUL MACHADO HORTA (Cf. ‘Direito Constitucional’, Del Rey, 5.ª edição, 2010, p. 42) registrou que:
 
                       outro grupo de normas centrais é o constituído pelos princípios estabelecidos na Constituição Federal, que, a partir da Constituição Federal de 1946 (art. 18, passaram a limitar a autonomia constitucional do Estado-Membro, quer no exercício excepcional do poder constituinte auto-organizador, quer no exercício constante dos poderes reservados, obedecendo à regra de que aos Estados se reservam todos os poderes que implícita ou explicitamente, não lhes sejam vedados pela Constituição Federal.
                       A identificação dos princípios estabelecidos reclama a interpretação do texto da Constituição Federal o seu conjunto, para reunir as regras dispersas que definam a origem, a causa, o começo, o germe, o elemento predominante da Constituição Federal. Os princípios estabelecidos se alojam nas normas constitucionais federais sobre repartição de competências (g.n.), o sistema tributário, a organização dos Poderes, os direitos políticos, nacionalidade, os direitos e as garantias individuais, os direitos sociais, ordem econômica, a educação, a família e a cultura, afinal, na matéria dispersa no texto constitucional federal. A Constituição expansiva amplia e dilata o campo dessa pesquisa dos princípios estabelecidos, enquanto a Constituição não expansiva e breve contrai e reduz o campo dos princípios estabelecidos.

                                     Como os princípios estabelecidos se alojam nas normas constitucionais federais sobre repartição de competências, a par de outras, a violação do art. 144 da Carta Política Estadual parece bem caracterizada, tendo em vista que a Câmara de Vereadores de Piraju usurpou competência privativa da União ao legislar sobre as hipóteses que ensejam a cassação do mandato dos vereadores e a definição de regras peculiares ao seu processo e julgamento.

                            De resto, conquanto exaustivamente exposto na inicial, nunca é demais reiterar que no âmbito desse Egrégio Tribunal de Justiça (ADI 990.10.115755-1, Rel. Des. RIBEIRO DOS SANTOS; ADI 994.09.231439-5, Rel. Des. ARTUR MARQUES) e do próprio Supremo Tribunal Federal (Súmula n.º 722) é tranquilo o entendimento no sentido de que os municípios não dispõem de competência para legislar sobre a definição de infrações político-administrativas (crimes de responsabilidade) dos agentes políticos locais, tampouco o estabelecimento de regras peculiares ao seu processo e julgamento.

                            Assim, por encontrar-se bem caracterizada a violação do art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo, o parecer é pela integral procedência da presente ação direta.

                            São Paulo, 4 de março de 2011.

 

Sérgio Turra Sobrane

Subprocurador-Geral de Justiça

Jurídico

 

Krcy