Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.057262-8

Requerente: Governador do Estado de São Paulo

Objeto: Lei n. 6.367, de 03 de janeiro de 2006, do Município de Araraquara

 

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Governador do Estado de São Paulo, da Lei n. 6.367, de 03 de janeiro de 2006, do Município de Araraquara, que “ dispõe sobre a comercialização de produtos não farmacêuticos e prestação de serviços de menor complexidade útil ao público por farmácias e drogarias e dá outras providências”. Matéria cuja competência pertence à União e aos Estados. Violação do art. 1º e 144, da Constituição do Estado e do art. 24, XII, da Constituição Federal. Parecer pela procedência da ação.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Governador do Estado de São Paulo, tendo por objeto a Lei n. 6.367, de 03 de janeiro de 2006, do Município de Araraquara, que “dispõe sobre a comercialização de produtos não farmacêuticos e prestação de serviços de menor complexidade útil ao público por farmácias e drogarias e dá outras providências”.

Alega o autor que a legislação impugnada autoriza as farmácias e drogarias a comercializarem produtos e serviços alheios ao ramo farmacêutico, contrariando a legislação federal competente.

 Ademais, como as atividades próprias das farmácias e drogarias recaem sob a égide do conceito de “proteção e defesa à saúde”, devem ser regulamentadas pela União e Estados, nos termos do art. 24,XII e parágrafos da Constituição Federal.

Por tal razão, não pode o legislador municipal, a pretexto de legislar sobre o conceito de “interesse local” (art.30, I,CF), disciplinar as atividades desempenhadas pelas farmácias e drogarias, como o fez, através da legislação impugnada.

Desta feita, ocorreu violação, não só da Lei Federal mencionada, como do art. 24, XII, da Constituição Federal e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.

Foi deferida a liminar, para suspensão da eficácia do ato normativo (fls. 25/31).

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações, defendendo a constitucionalidade da lei impugnada (fls. 42/51).

A Procuradoria-Geral do Estado opinou pela procedência da ação (fls. 74/75).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A presente ação deve ser julgada procedente.

 

Isto porque, a mencionada lei contém dispositivos que ferem a Constituição Federal e a Constituição do Estado de São Paulo, motivo pelo qual se faz necessária a declaração de inconstitucionalidade destes, de sorte a afastar a possibilidade de lesão ao patrimônio jurídico dos cidadãos daquele município.

A Lei n° 6.367/06 do Município de Araraquara autoriza a comercialização em farmácias e drogarias, de produtos e prestação de serviços estranhos à sua atividade-fim, acabando por invadir seara legislativa alheia.

Por tal razão, acabou por ofender o sistema de competências atribuído pela Constituição Federal, notadamente em face do que determinam os arts. 1°, caput, 24, XII, e, consequentemente, os arts. 1° e 144 da Constituição do Estado de São Paulo.

De fato, não obstante tenha o art. 23, II, do Texto Maior conferido competência material (ou de execução) a todos os entes federados para cuidar da saúde, é certo que restringiu a competência legislativa quanto a esta matéria, atribuindo-a de forma concorrente à União, aos Estados e ao Distrito Federal.

Consignou o art. 24, XII, da Carta Magna que os mencionados entes federados que detêm a competência legislativa concorrente poderão editar normas sobre “proteção e defesa da saúde”, aí certamente incluídas as iniciativas referentes à vigilância sanitária.

E, em sede de competência concorrente, não podemos olvidar que a União é a detentora da possibilidade de editar normas de caráter geral (art. 24, § 1°, CF), que somente será transferida aos Estados de forma ampla em caso de inexistência de lei federal a tratar da matéria (art. 24, § 3°, CF). A competência conferida à União para tratar de normas gerais não exclui a competência dos Estados, que a exercem de forma suplementar, e, evidentemente, não podendo se chocar com as regras contidas na legislação de âmbito nacional (art. 24, § 2°, CF).

Aos Municípios, portanto, restaria apenas “suplementar a legislação federal e a estadual no que couber” (art. 30, II, CF), pois, precipuamente, não lhe competente legislar sobre “proteção e defesa da saúde”, mas sim, e tão-só, executar as políticas estabelecidas pelos demais entes (art. 23, II, CF).

Apenas para argumentar, a norma geral da União existe, e está consubstanciada na Lei Federal n° 9.782, de 26 de janeiro de 1999, que definiu o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e que dispôs em seu art. 7°, III, que compete a esta agência “estabelecer normas, propor, acompanhar e executar as políticas, as diretrizes e as ações de vigilância sanitária”.

E a citada agência de regulação, normatização, controle e fiscalização na área de vigilância sanitária baixou norma impondo que “é vedado à farmácia e drogaria (...) expor a venda produtos alheios aos conceitos de medicamento, cosmético, produto para a saúde e acessórios, alimento para fins especiais, alimento com alegação de propriedade funcional e alimento com alegação de propriedades de saúde” (item 5.4.2 da Resolução n° 328, de 22.07.1999). E, mesmo assim, os alimentos de que trata mencionada regra “somente podem ser vendidos em farmácias quando possuírem forma farmacêutica e estiverem devidamente legalizados no órgão sanitário competente e apresentarem Padrão de Identidade e Qualidade (PIQ) estabelecidos em legislação específica” (item 5.4.2.1).                                       

A autoridade competente para normatizar acerca dos produtos que podem e não podem ser comercializados em farmácia e drogarias é a ANVISA, e esta já havia, há anos, se pronunciado justamente em sentido contrário ao que fez o Poder Legislativa de Araraquara, ao arrepio da Constituição Federal, diga-se de passagem.

Não  resta  dúvida,  diante desse quadro, que a Lei n. 6.367/06, do Município de Araraquara, invadiu a seara da União, que possui a competência para estabelecer normas gerais, tal como a editada, e com isto  quebrou a harmonia entre as esferas de competência dispostas pelo constituinte na Carta de Regência, e o pacto federativo instituído em seu art. 1°, caput.

Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior anotam que “o federalismo brasileiro reúne em seu interior quatro entidades federativas – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios -, todas dotadas de autonomia, assim entendida a capacidade de autodeterminação dentro de um rol de competências constitucionalmente definidas”. Consignam, ainda, que “cada uma das esferas federativas possui um rol próprio de competências, que, salvo hipótese de delegação, deve exercer com exclusão das demais” (Curso de Direito Constitucional. 11ª Ed. São Paulo. Saraiva, 2007, p.271-272).

A repartição de competências é a marca indelével da federação, sem a qual não se sustenta sua estrutura, pois, se cada um dos entes federados passar a exercer as competências atribuídas aos demais, haverá um choque de gestão que enfraquecerá até a morte esta forma de Estado.

Para arrematar, lembraríamos as palavras de José Afonso da Silva, para quem “a repartição de competências entre a União e os Estados-membros constitui o fulcro do Estado Federal” (Curso de Direito Constitucional Positivo. 2ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 100-101).

Portanto, ao legislar sobre normas gerais de proteção e defesa da saúde, afastando-se do princípio da legalidade insculpido no art. 37, “caput”, da Lei Maior, princípio este repetido no art. 111 da Carta Estadual, violou o legislador municipal os arts. 1° e 144 da Constituição Paulista, por atentar contra o Estado Federativo brasileiro (arts. 1°, caput e 25, caput e § 1°, CF).

É neste sentido, inclusive, o posicionamento deste Colendo Órgão Especial do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que, em caso análogo, assim decidiu:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei que autoriza farmácias e drogarias a comercializarem artigos diversos. Inconstitucionalidade configurada tanto frente à Constituição Federal, quanto frente à Constituição Estadual” (ADIN n° 110.607.0/8-00 – Comarca de Cajuru – Rel. Des. Vallim Bellochi – j. 28.09.2005).

Ante o  exposto,  o   parecer é pela procedência  da ação, para que  seja declarada   inconstitucional a Lei n. 6.367, de 03 de janeiro de 2006, do Município de Araraquara, que “dispõe sobre a comercialização de produtos não farmacêuticos e prestação de serviços de menor complexidade útil ao público por farmácias e drogarias e dá outras providências”.

São Paulo, 14 de setembro de 2010.

 

         Sérgio Turra Sobrane

          Subprocurador-Geral de Justiça

    Jurídico

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