Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.057772-7

Requerente: Prefeito do Município de Franca

Objeto: Lei nº 7.329, de 16 de novembro de 2009, do Município de Franca

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Prefeito do Município de Franca, da Lei nº 7.329/2009, do mesmo município, que institui a gratuidade de entrada para Guardas Civis Municipais, mediante apresentação de identidade funcional às sessões de cinema, teatro, shows, feiras, exposições, eventos culturais e esportivos no Município de Franca. Projeto nascido do Poder Legislativo, com usurpação das atribuições do Prefeito. Violação dos arts. 4º, 111 e 144, da CE. Inconstitucionalidade reconhecida.

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, promovida pelo Prefeito do Município de Franca, em face da Lei nº 7.329/2009, do mesmo município, que institui a gratuidade de entrada para Guardas Civis Municipais, mediante apresentação de identidade funcional às sessões de cinema, teatro, shows, feiras, exposições, eventos culturais e esportivos.

 

Sustenta o autor que a lei padece de inconstitucionalidade, pois foi concebida no âmbito do Poder Legislativo, com vício de iniciativa e ofensa ao princípio da separação dos poderes (art. 5º da Constituição do Estado).

O pedido de liminar foi deferido (fls. 94/95).

Contra essa decisão, a Câmara Municipal de Franca interpôs agravo regimental, fls. 106/111.

No entanto, referida decisão foi mantida, fls. 123/125.

Requisitaram-se informações ao Presidente da Câmara Municipal, que defendeu a constitucionalidade da legislação impugnada. (fls. 34).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa das normas questionadas, consignando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls.114/116).

É o relatório.

A Lei 7.329, de 16 de novembro de 2009, do Município de Franca, apresenta a seguinte redação:

“Art. 1º - Fica assegurada a gratuidade de entrada aos Guardas Civis Municipais às sessões de cinema, teatro, shows, feiras, exposições, eventos culturais e esportivos realizados no Município de Franca.

Parágrafo único. É assegurada a gratuidade de que trata o “caput” do presente artigo nas sessões de cinema, de segunda à sexta-feira, excetuando finais de semana e feriados.

Art. 2º - O beneficiário deverá comprovar a sua condição de Guarda Civil Municipal, mediante a apresentação da carteira de identidade funcional.

Art. 3º - Os organizadores dos eventos mencionados nesta lei poderão manter relação de entrada do profissionais no local do evento, para o caso de acionamento dos mesmos em situações de emergência.

Art. 4º - As despesas com a execução da presente Lei correm à conta de dotações próprias do orçamento vigente.

Art. 5º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário”.

 

Como se vê, o tema está intrinsecamente ligado à difusão da cultura. Consoante prevê o art. 215, da Constituição Federal, “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.

Nesse sentido, a norma em exame permite a determinado segmento do funcionalismo público municipal – guardas municipais – a gratuidade de entradas às sessões de cinema, teatro, shows, feiras e exposições, eventos culturais e esportivos, realizados no Município de Franca.

Todavia, não se vislumbra uma razão plausível que permita ao legislador local distinguir os guardas municipais da Prefeitura de Franca, dos demais funcionários públicos municipais.

Sabe-se que a isonomia é um dos primados garantidos pelo legislador constitucional. A respeito do assunto, lembra Alexandre de Moraes que “o princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamente diferenciados a pessoas que se encontram em situações idênticas. Em outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem estabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções filosóficas ou políticas, raça, classe social.”[1]

Esse princípio, embora não esteja expresso no art. 111, da Constituição Estadual, pode ser extraído tranquilamente do seu contexto, sobretudo da impessoalidade que nada mais é do que um desdobramento do primeiro. André Ramos Tavares afirma que “o princípio em epígrafe apresenta duas vertentes na análise de seu conteúdo. Em primeiro lugar impede-se o tratamento desigual baseado em critério pessoal. Não se toleram benefícios ou encargos atribuídos desigualmente para certas pessoas. Verifica-se, pois, que o princípio está intimamente relacionado com o princípio da isonomia. Simpatias ou animosidades pessoais, entre a Administração e administrados, são juridicamente irrelevantes. Consoante o princípio da impessoalidade, a atividade da Administração deve ser neutra, objetivando exclusivamente a realização do interesse de todos, jamais de uma pessoa ou um grupo em particular.”[2]

Como se sabe, a competência legislativa do município é suplementar à da União e dos Estados, consoante dispõe o art. 30, I e II, da Carta Federal.

Sobre o tema, Alexandre de Moraes afirma que “a Constituição Federal prevê a chamada competência suplementar dos municípios consistente na autorização de regulamentar as normas legislativas federais ou estaduais, para ajustar sua execução a peculiaridades locais, sempre em concordância com aquelas e desde que presente o requisito primordial de fixação de competência desse ente federativo: interesse local”.[3]

Em parecer da lavra do Dr. Geraldo Brindeiro, à época Procurador-Geral da República, ao enfrentar tema semelhante na Ação Direta de Inconstitucionalidade em curso perante o Excelso Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de eliminar a Lei 7.844/92, do Estado de São Paulo, assim se posicionou:[4]

 “Com efeito, vislumbra-se que a finalidade maior da norma em exame enquadra-se na competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal em legislar sobre “educação, cultura, ensino e desporto”, disposta no inciso IX do art. 24 da Carta Magna, e não sobre direito econômico (art. 24, inciso I, CF), como pretende a impetrante, na medida em que o Estado de São Paulo não visa estabelecer qualquer mecanismo de tabelamento de preços uma vez que a sua fixação é absolutamente livre.

Além do mais, o que a norma impugnada faz, na verdade, atendendo plenamente à sua função social, é viabilizar o acesso de estudantes a eventos culturais, por meio de um desconto obrigatório, impondo-se, assim, um tratamento diferenciado ao estudante. Nesse contexto, o desconto a que se refere a lei paulista está voltado para a inclusão social do educando, o acesso às fontes de cultura, às manifestações desportivas e ao lazer, essenciais para o processo de formação do cidadão e desenvolvimento da cidadania.

Tem-se, assim, que inerente a esse direito à cultura reconhecido pela Constituição da República encontra-se o acesso às suas fontes, como observa o Ilustre Professor JOSÉ AFONSO DA SILVA (in “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros Editores, 19ª edição, pág. 316).”[5]

Em razão disso, ao esclarecer de que maneira a lei estadual deve ser aplicada, o legislador local agiu na esfera da sua competência, não havendo motivos para ter-se por inconstitucional aquele ato normativo.

Concluo, assim, que a Lei n. 7.329/09, está em desconformidade com os arts. 4º, 111 e 144, da Constituição do Estado de São Paulo.

Nestes termos, o parecer é pela procedência da demanda, para que seja declarada a inconstitucionalidade da Lei 7.329, de 16 de dezembro de 2009, do Município de Franca, que institui a gratuidade de entrada para Guardas Civis Municipais, mediante apresentação de identidade funcional às sessões de cinema, teatro, shows, feiras, exposições, eventos culturais e esportivos, realizados no Município de Franca.

São Paulo, 23 de dezembro de 2010.

        

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

vlcb

 



[1] Direito Constitucional, São Paulo: Atlas, 9ª ed., 2001, p. 63.

[2] Curso de Direito Constitucional, São Paulo,: Saraiva, 4ª ed., 2006, p. 1.145.

[3] Alexandre de Moraes, Constituição do Brasil Interpretada, São Paulo, Atlas, 2002, p. 743.

[4] Adin 1.950, rel. Min. Eros Grau, julgada improcedente em 14.11.2005, conforme informação obtida no site do STF em 12/4/06.

[5] Parecer do Procurador-Geral da República oferecido na Adin nº 1.950-3/600-SP, promovida pela Confederação Nacional do Comércio – CNC.