Parecer em Ação Direta de Inconstitucionalidade

 

Autos nº. 990.10.057845-6

Requerente: Prefeito do Município de Mauá

Objeto: Lei nº 3.810, de 18 de julho de 2005, do Município de Mauá

 

 

Ementa: Ação direta de inconstitucionalidade, ajuizada por Prefeito, tendo por objeto a Lei n.º 3.810, de 18 de julho de 2005, que “dispõe sobre a proibição do uso de radar móvel e estático móvel no município de Mauá e dá outras providências”. Desrespeito à repartição das competências legislativas (art. 22, inc. XI, da CF) e, em consequência, ao princípio federativo, autorizando o reconhecimento da inconstitucionalidade por violação dos arts. 1º e 144 da Constituição Bandeirante. Parecer pela procedência.

 

 

Colendo Órgão Especial

Excelentíssimo Senhor Desembargador Presidente

 

Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Prefeito Municipal de Mauá, tendo por objeto a Lei n.º 3.810, de 18 de julho de 2005, que “dispõe sobre a proibição do uso de radar móvel e estático móvel no município de Mauá e dá outras providências”.

Sustenta o autor que a lei decorre de projeto de Vereador e que, por meio dela, ficou proibida a utilização de radares eletrônicos móveis e estático-móveis, fotográficos ou não, para a fiscalização de velocidade dos automóveis que trafegam pelo Município. O ato normativo revogou a Lei nº 3.206/99 que, até então, regulava o assunto, proibindo a utilização de radares móveis e facultando à Administração o uso de radares fixos em locais previamente divulgados.

Diz o Alcaide que a lei é inconstitucional, pois trata de matéria cuja competência legislativa é da União (art. 22, XI, CF), a par de ferir o princípio da separação dos Poderes, eis que a Câmara estaria determinando a conduta da Administração.

Aponta como violados os artigos 5º; 25; 47, II; 111; 144; 174; e 176 da Constituição do Estado e pede a declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 3.810/05 e da Lei nº 3.206/99, que, no caso de procedência da ação, seria repristinada.

O Presidente da Câmara Municipal prestou informações sobre o processo legislativo (fls. 84/89).

A Procuradoria-Geral do Estado declinou da defesa do ato impugnado, observando que o tema é de interesse exclusivamente local (fls. 80/82).

Este é o breve resumo do que consta dos autos.

A matéria já foi examinada pela Procuradoria-Geral de Justiça nos autos da ADI nº 114.230.0/6, que tinha por objeto lei do Município de Lins que proibiu a instalação de radares medidores de velocidade no perímetro urbano.

Pede-se vênia para reproduzir, aqui, algumas das considerações que, à época, foram submetidas à apreciação desse Sodalício e integralmente acolhidas:

“A lei impugnada conspurca todo o sistema de prevenção de acidentes do Código de Trânsito Brasileiro, não se podendo utilizar radares ou lombadas eletrônicas em Lins, se aplicada a lei local. A Constituição Federal é clara ao disciplinar o tema, v.g.:

'Art. 22 - Compete privativamente à União legislar sobre:

XI - trânsito e transporte;

Art. 30 - Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (...)'

Legislar sobre o tema trânsito e transporte, tem reiterado o C. STF, é tarefa privativa da União. Tal assunto não se insere na cláusula do ''interesse local'' (art. 30, I, da Constituição da República) sendo, como é obvio, um assunto de interesse geral ou nacional. Sequer competência suplementar, no caso, dispõe o Município (art. 30, II, da Constituição da República), pois, como explica Fernanda Dias Menezes de Almeida, ''... só cabe a suplementação em assuntos que digam respeito ao interesse local. Nenhum sentido haveria, por exemplo, em o Município suplementar legislação federal relativa ao comércio exterior ou relativa à nacionalidade ou naturalização.'' (''Competências na Constituição de 1988'', 2.ª ed., São Paulo,  Atlas, p. 156).

Sobremais, não se pode esquecer que o Município somente pode suplementar a competência privativa de outros entes federados, quando necessário ao exercício de sua competência material privativa, o que não é o caso, obviamente. Diz a mesma autora que:

'(...) terá cabimento a legislação municipal suplementar quando o exercício da competência material privativa do Município depender da observância de normação heterônoma. Isto poderá ocorrer em relação à legislação federal e à legislação estadual. Quanto à legislação federal, o Município complementará ou suprirá normas gerais da União ao exercer, por exemplo, a competência privativa de instituir os próprios tributos. De fato, a instituição de tributos, por qualquer das esferas, se deve pautar pelas normas gerais de Direito Tributário postas pela União. Nesse caso, o Município estabelecerá as normas tributárias específicas (competência complementar) e poderá até mesmo editar normas gerais, admitindo-se, em tese, que à União se omita em expedi-las (competência supletiva). É possível ainda a legislação suplementar do Município nas hipóteses em que, para o atendimento de competência material privativa, o Município tenha que observar lei federal que à União caiba editar no exercício de sua competência legislativa plena.'

Ora, se a Constituição atribui privativamente à União a competência legislativa sobre trânsito, evidentemente que veda tal competência aos Municípios, que somente podem exercer as competências que não lhe são vedadas pelas Constituições, federal e estadual. A repartição e limitação das competências é vetor da Constituição Federal.

O Município invadiu tema sobre o qual não dispõe de competência constitucional. REINHOLD ZIPPELIUS escreve sobre a estrutura de Estado como o nosso que: "O Estado Federal, é, pois também uma reunião de Estados, mas organizada de tal maneira que o seu conjunto constitui igualmente um Estado em si mesmo. Esse conjunto das respectivas competências estatais no Estado Federal acha-se de tal modo distribuído entre os órgãos do Estado Federal e os dos diferentes países que o constituem, que o problema da hierarquia dessas competências fica sempre como que suspenso e em aberto. Por via de regra, as atribuições exclusivas dos Estados são repartidas segundo o critério das diferentes matérias. Assim, serão geralmente cometidas aos órgãos centrais as questões da política externa e aos Estados membros as questões de segurança e ordem pública interior. A competência legislativa pode também pertencer, segundo a índole das matérias de que se trata, já aos órgãos do poder central, já aos dos diversos países ou Estados. Ambos podem, porém, colaborar também na feitura das leis, ficando aos órgãos centrais a promulgação e aos outros, os das regiões, a execução delas.’ Apud, Celso Bastos e Ives G. Martins, Comentários à Constituição do Brasil, p. 107, Saraiva, São Paulo, 3.º vol. Tomo I)”.

Em acréscimo, há de se recordar que, de conformidade com o art. 144 da Constituição do Estado de São Paulo, “Os Municípios, com autonomia política, legislativa, administrativa e financeira se auto-organizarão por lei orgânica, atendidos os princípios estabelecidos na Constituição Federal e nesta Constituição” (g.n.).

Desse dispositivo se extrai que os princípios estabelecidos pela Constituição Federal são de observância obrigatória pelos Estados e Municípios.

A mesma idéia pode ser extraída do art. 29, caput, da Constituição Federal, que determina que “O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado, e os seguintes preceitos” (g.n.).

Ora, a repartição constitucional de competências entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, é um dos elementos que, de modo concreto, delimita e caracteriza o princípio federativo, sendo certo que este é um dos princípios fundamentais ou estabelecidos pela Constituição Federal, ditando, pois, o exato perfil do Estado Brasileiro.

Traçando esse parâmetro, é viável afirmar que o princípio federativo, por força do art. 1º e 18º da CR/88, por remissão do art. 144 da Constituição do Estado, bem ainda por expressa previsão no art. 1º da própria Carta Bandeirante, é de observância obrigatória, permitindo o controle abstrato de normas no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado.

Atos normativos que violam a repartição constitucional de competências desrespeitam não apenas regras relativas à divisão do poder de editar normas infraconstitucionais, mas desautorizam diretamente uma das opções fundamentais da República Federativa do Brasil, ou seja, o próprio princípio federativo.

Nesse ponto, é relevante anotar que esse Tribunal de Justiça acolhe, com tranquilidade, a tese de que é possível declarar a inconstitucionalidade de lei municipal por violação do princípio da repartição de competências estabelecido na Constituição Federal, como comprova recente julgado (ADI 130.227.0/0-00 em 21.08.07, rel. Des. Renato Nalini).

Do voto do Des. Walter de Almeida Guilherme se extrai definitiva lição sobre o tema:

“(...) Ora, um dos princípios da Constituição Federal – e de capital importância – é o princípio federativo, que se expressa, no Título I, denominado ‘Dos Princípios Fundamentais’, logo no art.1º: ‘A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito...’.

Sendo a organização federativa do Estado brasileiro um princípio fundamental da República do Brasil, e constituindo elemento essencial dessa forma de estado a distribuição de competência legislativa dos entes federados, inescapável a conclusão de ser essa discriminação de competência um princípio estabelecido na Constituição Federal.

Assim, quando o referido art. 144 ordena que os Municípios, ao se organizarem, devem atender os princípios da Constituição Federal, fica claro que se estes editam lei municipal fora dos parâmetros de sua competência legislativa, invadindo a esfera de competência legislativa da união, não estão obedecendo ao princípio federativo, e, pois, afrontando estão o art.144 da Constituição do Estado (...)”

No citado caso de Lins, essa orientação também foi prestigiada. Confira-se:

ADIN - Lei municipal que proíbe a instalação de radares registradores de excesso de velocidade no perímetro urbano do município de Lins. Incompetência do Município para legislar sobre o tema trânsito e transporte, pois tal assunto não se insere na cláusula do "interesse local" (inteligência dos artigos 1º, 19, e 144, todos da Constituição do Estado) (ADI n. 114.230-0/6-00, j. 27.07.2005, rel. Des. SINÉSIO DE SOUZA).

Pelo exposto, opino pela procedência do pedido, para se declarar a inconstitucionalidade das Leis nº 3.810/05 e 3.206/99 (esta em razão do efeito repristinatório), ambas do Município de Mauá.

 

São Paulo, 8 de julho de 2010.

 

         Sérgio Turra Sobrane

         Subprocurador-Geral de Justiça

         Jurídico

jesp